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Contrato administrativo. Responsabilidade do Estado contratante na Lei de licitações.
Considerando que o Estado não consegue, por meio dos seus servidores, realizar diretamente todas as atribuições necessárias ao cumprimento dos deveres que lhe são impostos, são firmados contratos administrativos por meio de que o Poder Público contrata terceiros para realizar tarefas de natureza diversa. Tais contratos variam da concessão de serviço público, por meio de que a Administração delega a prestação de um serviço público a uma pessoa privada que atuará em face do cidadão-beneficiário, que arcará com a remuneração da empresa, até o contrato de empreitada, que transfere a um terceiro a realização de uma obra pública e pela qual o Estado pagará.
Em relação ao contrato administrativo através de que o Estado contrata uma empresa para realizar uma obra, prestar um serviço ou fornecer um bem em seu favor, é certo que a pessoa privada necessitará de um quadro de funcionários que realize as atividades contratadas. Surge, então, a discussão a propósito da responsabilidade do Estado contratante no tocante às verbas trabalhistas devidas aos funcionários do contratado, na hipótese de inadimplência por parte dessa empresa. A esse propósito, destacam-se dois dispositivos da Lei Federal nº 8.666: o artigo 71 da Lei Geral de Licitações estabelece que “O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato”; o § 1º do citado artigo 71 prescreve que “A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis”.
Controvérsias jurisprudenciais
Ao decidir ações trabalhistas ajuizadas por empregados das empresas contratadas pela Administração Pública, prejudicados pelo não pagamento das verbas devidas, o Tribunal Superior do Trabalho assim enunciou por meio da Resolução 93/2003, que veiculou a Súmula 331: “II – A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (art. 37, II, da Constituição da República). (…) IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial”. Essa redação foi alterada pela Resolução nº 96/2000 que fixou a seguinte redação para a mencionada Súmula 331: “IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993)”.
Em outras palavras: apesar de o § 1º do artigo 71 da Lei Federal nº 8.666/93 expressamente afirmar que o inadimplemento da empresa contratada em pagar verbas trabalhistas aos seus funcionários não transfere à Administração Pública a responsabilidade por esse pagamento, o TST entendia haver responsabilidade subsidiária do Estado, enquanto tomador de serviços.
Tendo em vista a repercussão onerosa ao erário decorrente da imputação reiterada de responsabilidade subsidiária à Administração Pública perante os funcionários prejudicados pela inadimplência das empresas contratadas com base na Lei de Licitações, foi ajuizada a ADC nº 16 no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de fazer prevalecer a regra do § 1º do artigo 71 da Lei Federal nº 8.666. No julgamento realizado iniciado em outubro de 2008 e concluído em novembro de 2010, o STF, por maioria, entendeu ser constitucional o mencionado § 1º do artigo 71 da Lei Geral de Licitações e, portanto, inadmissível o teor da Súmula 331 do TST então vigente.
A Ministra Cármen Lúcia, em seu voto, pontuou que eventual descumprimento pela Administração Pública do dever de fiscalizar o adimplemento de obrigações trabalhistas por seu contratado não impõe automática responsabilidade subsidiária do Estado pelo pagamento de tais verbas, nem gera vínculo de natureza trabalhista entre a pessoa estatal e o empregado de empresa particular; concluiu, ainda, não haver qualquer inconstitucionalidade do § 1º do artigo 71 da Lei Federal nº 8.666/93. Após debate sobre o tema e voto minoritário exarado pelo então Ministro Carlos Ayres Britto, o Ministro Marco Aurélio entendeu que a Súmula 331 do TST fixava responsabilidade objetiva do Estado, desconsiderando preceito que não veiculava tal responsabilidade, tendo o Ministro Gilmar Mendes concluído que, de fato, o entendimento do TST revogava o artigo 71, § 1º do Estatuto das Licitações. Reconhecendo que o entendimento do Pleno do STF no sentido da constitucionalidade do § 1º do artigo 71 implicava mudança na posição do TST até então proclamada na Súmula 331, o acórdão ficou assim ementado:
“RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.” (ADC nº 16-DF, rel. Min. Cezar Peluso, Pleno do STF, DJe de 08.09.2011)
Diante da conclusão do julgamento na Corte Suprema, foi editada a Resolução nº 174/2011 que enunciou a atual redação da Súmula 331 do TST: “IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial;
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada;
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.”
À obviedade, o TST está submetido ao entendimento fixado pelo Pleno STF quanto à constitucionalidade das normas em sede de ação direta de constitucionalidade. Buscando conformidade com o julgado da ADC 16, proclamou que a responsabilidade da Administração Pública se daria somente no caso de conduta culposa, ou seja, se se omitisse em relação às suas obrigações de diligência ao contratar e ao fiscalizar o acordo firmado com a pessoa privada. O objetivo, portanto, foi reenquadrar a possível responsabilização do Estado no que tange ao pagamento das verbas trabalhistas. Não era mais possível fundamentar o dever de o Estado arcar com o pagamento das verbas trabalhistas na responsabilidade contratual, visto que o Pleno do STF na ADC 16 fixara a constitucionalidade do § 1º do artigo 71 da Lei Federal nº 8.666 ao excluir a responsabilidade do Estado contratante por inadimplência da empresa contratada. A alternativa, portanto, era caracterizar as condições para responsabilidade extracontratual do Estado neste caso, ou seja, quais as situações que, presentes, poderiam implicar a responsabilidade aquiliana da Administração Pública. O fato de o STF já ter pontuado a inviabilidade de responsabilidade objetiva nesta hipótese levou que o TST fixasse um mínimo de culpa como condição para responsabilização do Estado perante os funcionários das empresas contratadas. E a culpa não teria como base um vínculo contratual entre os empregados e o Estado, mas sim um dever de diligência descumprido pelo Poder Público a ensejar a responsabilidade aquiliana em face daqueles (terceiros, os empregados) que não receberam as verbas trabalhistas. O descumprimento desse dever estaria presente a) quando da omissão ou negligência em bem contratar uma empresa que termina por causar prejuízos ao funcionário (culpa “in elegendo) e/ou b) quando da omissão ou negligência em fiscalizar a empresa contratada que não paga corretamente seus empregados e, assim, lhes causa prejuízos (culpa “in vigilando”).
Diante desse raciocínio, o entendimento exarado pela Justiça do Trabalho em diversos processos foi no sentido de que, se ocorreu inadimplência da empresa contratada, a Administração Pública incorreu necessariamente na culpa “in vigilando”. O argumento é o de que, se o Estado tivesse fiscalizado corretamente o contrato administrativo firmado, nenhum prejuízo a empresa poderia causar aos seus empregados; abstrata e genericamente se considera que a fiscalização impediria a inadimplência trabalhista. Referida posição, em última instância, reproduz o entendimento da Súmula 331 do TST anterior à 2011, com automática responsabilização do Estado sempre que ocorre inadimplemento quanto ao pagamento de verbas trabalhistas. É conclusão óbvia a de que, embora aparentemente buscando observar o que fixou o STF na ADC 16, na prática insiste-se em recusar vigência ao artigo 71, § 1º da Lei nº 8.666. E com isso não se pode coadunar, com a devida vênia.
Dos desafios institucionais da Administração Pública e do Judiciário. Responsabilização do Estado por dívidas trabalhistas da empresa contratada: pressupostos.
Na verdade, é preciso o amadurecimento institucional dos órgãos administrativos responsáveis pelo controle dos acordos firmados pelo Estado e o aprofundamento do controle judicial realizado na Justiça do Trabalho sobre a matéria. O Estado, quando opta por contratar um terceiro, para fazer uma obra, prestar um serviço ou fornecer um bem de que necessita, assume o ônus de, por meio do procedimento licitatório, escolher adequadamente o interessado que melhor pode satisfazer a sua necessidade; para tanto, tem-se os requisitos de habilitação previstos no Estatuto das Licitações, bem como as normas que tratam da descrição do objeto, de modo a concretizar a isonomia e a proteção do interesse público primário no procedimento seletivo. Além disso, não se pode ignorar que é dever da Administração Pública fiscalizar o cumprimento das obrigações contratuais e legais pela empresa contratada durante todo o tempo de vigência do acordo (artigo 67 da Lei Federal nº 8.666), sendo certo que o Estado responda na hipótese de inadimplência do seu dever de controle.
Em contrapartida, se o Poder Público demonstra que fiscalizou adequadamente o contrato, inclusive os ônus trabalhistas da empresa perante os seus funcionários, não pode ser obrigado a pagar dívida trabalhista com base em responsabilidade subsidiária excluída por lei e afastada pelo Pleno do STF em controle de constitucionalidade.
No lugar da manipulação apenas abstrata de conceitos que terminam por, na prática, imputar responsabilidade subsidiária já afastada pela Corte Suprema, é mister aprofundar a produção probatória de modo a aferir a ocorrência de dolo ou culpa capaz justificar a responsabilidade da Administração Pública perante os empregados. É necessário analisar se o instrumento convocatório estabeleceu requisitos de habilitação proporcionais ao objeto que se pretendia contratar; se foi exigida, mensalmente, a apresentação de documentação relativa ao adimplemento dos ônus trabalhistas; se foi instaurado procedimento administrativo para apurar eventual inadimplência da empresa que se omitiu em pagar as verbas trabalhistas devidas aos empregados e se, em caso de prova de infração contratual pela empresa, o acordo foi rescindido com punição do contratado, após garantia de ampla defesa e contraditório, nos termos do ordenamento.
Diante desses aspectos, a serem apurados em cada caso concreto mediante adequada instrução probatória, se for objetivamente demonstrada a negligência do Estado, deve o Poder Público contratante pagar as verbas trabalhistas devidas ao funcionário da empresa contratada; ausente culpa ou dolo estatal, não há que se falar em transferência automática de responsabilidade à Administração Pública pela inadimplência da empresa contratada quanto ao pagamento das verbas trabalhistas.
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Excelente histórico de questão complexa e recorrente no cotidiano da Administração Pública. Para aprimoramento das práticas de gestão de serviços, como se faz necessário na fiscalização de terceirizações, o paradigma federal agora é a IN MPOG 05/17, que vale um arrigo também! Parabéns!
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Muito obrigada, Bárbara. Está anotada a dica do artigo que é excelente! No texto, com o objetivo de atingir também o nível estadual e municipal, a opção foi por não citar regulamentações administrativas federais. A IN MPOG 5/07 será útil como referência normativa quando tratar das dificuldades de gestão contratual: é um paradigma que poderá servir para Estados e Municípios editarem seus próprios atos regulatórios. Quando o artigo for divulgado, será um prazer ouvir suas ponderações. Grande abraço,