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Sumário
- 1. A crise do Estado Brasileiro e a advocacia pública na Constituição.
- 2. A importância da exclusividade da representação e da consultoria por membros das carreiras dos artigos 131 e 132 da CR: o advogado público como um pré-juiz.
- 3. Searas de atuação da advocacia pública de ampla repercussão social. Os riscos de fragilizar o regime jurídico desse profissional.
- 4. A importância da independência técnica do advogado público. Prerrogativas como instrumentos de garantia profissional e social.
- 5. Conclusões finais.
1. A crise do Estado Brasileiro e a advocacia pública na Constituição.
O Estado Brasileiro vem passando por crises cíclicas e contínuas, que atingem os diversos Poderes do Estado, deixando a população com sensação de desproteção, falta de esperança e ausência de motivação para transformação da realidade política, administrativa e econômica.
Em momentos como esse, desafia-se o surgimento de uma advocacia pública forte, não subserviente a interesses governamentais transitórios, capaz de evitar desvios, de construir alternativas de execução de políticas públicas essenciais, bem como de enxugar estruturas administrativas de modo a tornar concreto um mínimo de eficiência. A tarefa do advogado público é sustentar o cumprimento das normas e viabilizar a prevalência dos interesses da sociedade, trabalhando ao lado dos governantes, gestores e servidores de modo a traduzir os deveres, limites e prerrogativas jurídicas que incidem na execução das competências do Estado. Para que essa tarefa possa ser exercida, é preciso dar cumprimento aos dispositivos da Constituição da República que estruturam a advocacia pública, em especial os artigos 131 e 132 que tratam da advocacia pública federal e estadual.
O artigo 131 da Constituição foi expresso ao determinar que a Advocacia-Geral da União é quem representa a União, judicial e extrajudicialmente, tendo a Orientação Normativa AGU nº 28, de 09 abril de 2009, consagrado a exclusividade das atividades de consultoria jurídica e assessoramento no Poder Executivo Federal pelos membros da AGU. O § 2º do artigo 131 da CR, por sua vez, estabelece que “O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição (…) far-se-á mediante concurso público de provas e títulos”. Decorre da literalidade do artigo 132 da CR que a advocacia pública dos Estados-membros se dará por Procuradores organizados em carreira, admitidos na carreira por concurso público de provas e títulos, que exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica do Estado. O entendimento jurisprudencial prevalecente sobre a questão é de que os únicos cargos que podem ser ocupados por comissionados são o de chefia (se lei específica não exigir que seja da carreira) e seu substituto. Os demais dos cargos são obrigatoriamente privativos de procuradores públicos, vinculados a cargos efetivos após aprovação em concurso público. Não foi em outro sentido o inteiro teor do parecer exarado pelo MPF na ADI nº 4.261 interposta pela ANAPE em defesa da exclusividade da carreira no exercício da advocacia pública. Citam-se, ainda, as decisões proferidas nas ADI’s nº 159, 881, 1.679, 2.581, 2.682 pelo Supremo Tribunal Federal.
2. A importância da exclusividade da representação e da consultoria por membros das carreiras dos artigos 131 e 132 da CR: o advogado público como um pré-juiz.
A importância da exclusividade da representação e consultoria do Estado por advogados públicos aprovados em concurso resulta clara do conjunto de tarefas que devem exercer cotidianamente. Nem sempre o assessoramento prévio ou as propostas de mecanismos que reconduzem as medidas administrativas à juridicidade correspondem à expectativa imediata dos órgãos públicos e dos seus gestores transitórios. A despeito dos possíveis obstáculos, cabe ao advogado público, nas situações descritas, pronunciar-se comprometido com os interesses da sociedade, fazer prevalecer a correta compreensão da indisponibilidade do interesse público e estabelecer as balizas da legalidade que não podem ser ultrapassadas quando da discricionariedade. Isso sem pretender tornar-se ele, o advogado, em verdadeiro gestor público, mas, ao mesmo tempo, sem ignorar a amplitude da tarefa que a consultoria lhe impõe em face de um sistema jurídico aberto como o regime jurídico administrativo contemporâneo. Trata-se de um desafio que não é fácil de se enfrentar sem um mínimo de segurança quanto à sobrevivência profissional, ainda mais em momentos turbulentos e de crise como os enfrentados nos diversos níveis federativos do Brasil nos últimos anos.
A respeito da atividade do advogado público ao viabilizar políticas públicas quando interpreta as normas jurídicas e ao funcionar como um espaço que permite trânsito horizontal e vertical de saberes técnicos na estrutura da Administração, tem-se o reconhecimento doutrinário sobre os diversos atores da Ciência do Direito hoje serem, também, formuladores das soluções jurídicas, buscando, em face do ordenamento e de todas as interpretações que possa ter, a norma mais adequada numa perspectiva de Estado Democrático de Direito.
O sucesso na execução desse munus pode tornar desnecessária a incidência ou continuidade de controles repressivos deflagrados pelos cidadãos ou por instituições como Ministério Público e processados perante o Judiciário, com o fim de assegurar o equilíbrio entre os Poderes e a consecução das competências estatais. Isso porque, na realidade do funcionamento dos diversos Poderes, o advogado público é um pré-juiz, pois em primeiro plano tem conhecimento das carências que precisam ser atendidas pelo Executivo, da estrutura orgânica existente, dos interesses em conflito, dos limites orçamentários e das condições empíricas para atividade estatal. Antes de todos, sem os filtros de um processo judicial ou de um inquérito, pode captar diretamente na realidade administrativa os diversos aspectos dos principais problemas que o Estado enfrenta. Com a eficiência necessária, poderá identificar, previamente, vultosos problemas futuros e, subserviente à precaução e prevenção, advertir os gestores e autoridades públicas dos riscos de seguirem caminhos nebulosos, aparentemente tentadores, mas fatais do ponto de vista da sobrevivência social, econômica e até mesmo política. É preciso isenção para dar a orientação jurídica correta no momento adequado, capaz de encerrar litígios e economizar os recursos do erário, evitar ofensas a direitos dos cidadãos e ainda aperfeiçoar a estrutura administrativa antes do caos instalar-se. À obviedade, profissionais com tais encargos somente conseguem apontar os caminhos jurídicos viáveis se têm a si assegurada independência, sem riscos de serem coagidos em outras instituições do próprio Executivo.
Diante de um noticiário nacional que reiteradamente apresenta notícias de fraudes e corrupções em todas as esferas, é certo que é o advogado público, próximo da realidade administrativa, quem tem melhores condições de identificar o potencial de desvio antes da compras e obras públicas, evitando a ocorrência dos ilícitos. Uma carreira fraca, com abandonos frequentes, impede que a experiência se acumule e dificulta uma atuação articulada combativa. Eternizam-se vícios e se impede o aperfeiçoamento das estruturas de contratação, situação intolerável.
Uma advocacia pública desvalorizada dificilmente permanece motivada para buscar saídas jurídicas que realmente colaborem no aperfeiçoamento da saúde, educação e segurança pública, serviços públicos essenciais à população. Torna-se mais fácil a captura dos espaços públicos por interesses privados, transitórios e comprometidos somente com resultados econômicos que não equivalem ao atendimento das demandas da sociedade.
Registre-se que é o advogado público quem, no exercício das suas atribuições, mais tem condições de identificar fraudes tributárias e manipulação ardilosa do sistema tributário que o torna mais injusto, além de combater a evasão fiscal que, em última instância, agrava os problemas enfrentados pelo Poder Público.
É preciso que a população perceba que o que se deixa de arrecadar de grandes empresas e contribuintes, com descumprimento das leis tributárias constitucionais vigentes, é muito mais do que os já absurdos desvios decorrentes da corrupção. Necessitamos de profissionais com independência para orientar tecnicamente a arrecadação sem a qual nenhum serviço público pode ser prestado, de forma a torná-la menos injusta e mais eficiente.
Destaca-se, ainda, dentre as atribuições de um advogado público, o dever de analisar editais de concurso público e de licitações, comparecer a sessões e reuniões em que lhe cabe orientar juridicamente as autoridades e servidores, sugerir providências que restaurem juridicidade em atos viciados, dentre outros deveres. Qual a segurança que um profissional terá de se manifestar negativamente em face de um edital, recomendando alterações necessárias, se a seguir é possível afastá-lo das suas atribuições (rescindindo seu contrato ou exonerando-o emotivamente do cargo comissionado) ou se o Executivo pode valer-se de um órgão de controle interno para tentar coagi-lo com controle exercido por comissões integradas por servidores dos quais sequer se exige o mesmo conhecimento jurídico aferido no concurso para admissão na carreira, sobre matérias diversas pertinentes à orientação dada? Qual a independência que teria um profissional da advocacia pública de, numa reunião diante de Secretários, afirmar a inconstitucionalidade de determinado plano, se o Chefe do Executivo tem hierarquia direta em face de cargos como Corregedor e Subcorregedores, de provimento comissionado, e, a partir das determinações superiores destes, podem ser instauradas investigações, correições e apurações com manifesto potencial constritivo da atividade de um membro da advocacia pública, que tenha motivadamente se manifestado contrariamente a projetos políticos importantes ao governo? Qual o destemor que se espera de um advogado público, ao analisar uma situação que exija invalidação e correção de comportamentos estatais, se o profissional tem ciência de que, no futuro, poderá estar desempregado ou, pior, ser submetido a situações como questionamentos feitos por servidores técnicos que o pressionam sem nem mesmo compreenderem a especificidade, densidade e comprometimento necessários a uma carreira com as responsabilidades impostas na Constituição, estando muitas vezes sujeitos a metas como número de demissões em um determinado exercício? Como alcançar efetividade na advocacia pública sem um profissional ao qual se reconheça as prerrogativas necessárias ao exercício de tarefas tão desafiadoras? O que justifica a preservação de atos de consultoria por milhares de servidores comissionados e contratados temporários, ao que e acresce, quanto aos concursados, a ausência de consagração expressa no ordenamento de garantias basilares como a inamovibilidade e a vitaliciedade em se tratando de profissionais que, no exercício das suas atividades, podem evitar grandes desvios, desonerando instituições controladoras como Tribunais de Contas, Judiciário e Controladorias? Qual a razão de fragilizar exatamente aquele que, garantido no cumprimento dos seus misteres, é capaz de abortar ilegalidades com alto grau de sacrifício social e, ainda, que é capaz viabilizar a correta execução das políticas públicas de que tanto carecem os cidadãos?
Não é raro que tentativas de interromper a atividade de profissionais atuantes ocorram a partir de ameaças de exonerações de cargos comissionados, extinções de contratos temporários (artigo 37, IX da CF) e rescisões de contratos administrativos firmados com base na Lei nº 8.666. Em relação aos membros da advocacia pública, identificam-se representações em órgãos de controle, remoções indevidas, investigações múltiplas, instauração de sindicâncias, imposição de normas inexequíveis, ajuizamentos de ações de indenização, exigências de relatórios múltiplos, afastamentos cautelares, representações criminais desarrazoadas, dentre outros aspectos. O profissional, afogado em meio a tantos procedimentos, preocupado com sua sobrevivência na profissão e com a preservação da sua sanidade pessoal, não consegue continuar a cumprir os deveres inerentes ao seu cargo, interrompendo a ação que desagrada os interesses alheios à coletividade. Não só na magistratura, mas também no Ministério Público, os órgãos superiores encontram-se habituados com essa realidade cujo objetivo é minar a eficiência da instituição. Utiliza-se o medo de retaliações e turbulências futuras como meio de gestão administrativa, com o objetivo de imobilizar profissionais cuja ação se mostra potencialmente contrária a determinados interesses. De fato, em ambientes nos quais paira uma ameaça, é habitual uma sensação de perda e de vazio no sentido específico do trabalho a se desenvolver. A sensação de “caça às bruxas” fora das regras e da lógica constitucional leva a que a resistência inicial acabe se esvaindo; o incremento da força e a banalização das pressões imobiliza o antigo quadro comprometido de pessoal e conduz à desistência de efetividade, precarizando o exercício das competências do órgão. Essa realidade não é estranha ao cotidiano da advocacia pública, embora pouco estudada e quase nunca revelada, pelo receio comum diante de possíveis retaliações. Assim, cria-se o ambiente perfeito para a manutenção de um ordenamento que permanece omisso em relação às garantias de que necessita o advogado público para, com o destemor necessário, enfrentar os seus desafios cotidianos.
Advirta-se a obviedade segundo a qual o advogado público não está obrigado a defender atos ilegais, nem litigar de má-fé; não é seu dever proteger interesses privados ou governamentais transitórios quando não convergentes com o interesse público primário. O dever que lhe é imposto é com a atividade estatal capaz de concretizar os ditames do ordenamento. Isso até mesmo em se considerando que advogado público não é cúmplice. Insiste-se, pois, ser indispensável que tenha condições de atuar com independência e eficazmente, de modo a obter uma resposta jurídica correta, célere e protetiva do interesse público. O ordenamento não instituiu um sistema em que exige de um advogado público solidez jurídica e coragem material no cumprimento dos seus deveres para depois o deixar refém da possibilidade de ser pressionado com eventual extinção de vínculo ou mesmo por órgãos de controle interno do Executivo, com ameaças relativas a punições nas mais diversas esferas.
Para ser possível ao advogado público desincumbir-se das suas difíceis competências, a independência técnica e a ausência de controles e de medidas administrativas que o subjuguem são meios necessários ao cumprimento das funções que lhe foram atribuídas pela Constituição. Daí os artigos 3º e 7º, XIX da Lei Federal nº 8906/94 (Estatuto da Advocacia) estabelecerem o dever de o advogado manter a independência em qualquer circunstância e impedirem o seu depoimento como testemunhas em processos em que tenham atuado. Não é outro o objetivo da jurisprudência ao interpretar o artigo 132 da CR e insistir na independência da carreira constituída por efetivos, com habilidades jurídicas aferidas em procedimento rigoroso de concurso público, tendo o Ministro Carlos Ayres afirmado na ADI nº 4261 que independência e qualificação devem presidir a atuação de consultoria e representação jurídica. Não se ignore a inviolabilidade do advogado por atos e manifestações no exercício da profissão consagrada no artigo 133 da Constituição da República, bem como a ausência de qualquer subordinação a órgão de controle, tendo em vista o livre exercício da sua profissão (artigo 5º, XII da CR).
É sob essa perspectiva que é preciso avaliar as normas e comportamentos administrativos que recaem sobre a advocacia pública, tendo em vista o reconhecimento do seu caráter fundamental como instrumento de concretização do Estado Democrático de Direito. Quando se preservam prerrogativas consagradas na ordem jurídica aos Procuradores do Estado, a sociedade é que têm protegidos os seus interesses primários, pois ela depende da advocacia pública ter condições de enfrentar cotidianamente as competências de consultoria, representação judicial e extrajudicial das pessoas jurídicas de direito público e, assim, tornar viáveis juridicamente as ações públicas indispensáveis à coletividade.
Um advogado público receoso de pressões futuras e refém do medo significa instituir uma infraestrutura humana inadequada e ineficiente, visto que incapaz de operacionalizar regime jurídico de direito público, o que compromete a própria juridicidade do processo político e administrativo do Estado contemporâneo. Não são raros problemas dessa natureza em diversas esferas, principalmente em razão de consultorias exercidas por servidores comissionados, demissíveis a qualquer momento (e, conforme praxis administrativa, sem motivação), bem como por contratados temporários ou funcionários de empresas contratadas diretamente, por inexigibilidade ou dispensa de licitação. A fragilidade profissional decorrente da natureza dos vínculos traz o potencial comprometimento da isenção e força necessárias para preservação do bloco de juridicidade e de eficiência, sem o que serão agravados os problemas e caos administrativo atuais. É tempo de interromper o ciclo vicioso que ousa qualificar como “privilégios” as prerrogativas que são meros instrumentos garantidores da independência necessária ao exercício da profissão em favor da própria sociedade.
5. Conclusões finais.
Em relação à advocacia pública, cumpre reconhecer que a assunção da amplitude das competências constitucionais ocorreu somente nas últimas décadas. Até por isso ainda é incipiente a compreensão da manipulação ardilosa possível de instrumentos previstos no ordenamento para outros fins, como contratações temporárias, contratos administrativos firmados por inexigibilidade de licitação, nomeações para cargos comissionados e exercício do poder disciplinar por Corregedorias. A maioria dos órgãos de Estado e a própria advocacia pública não se dá conta da forma usada para transformar esses instrumentos em meios de impedir o exercício de importantes atribuições dos advogados públicos. É esse equívoco que se deve evitar, de modo que o sistema jurídico seja interpretado com razoabilidade, sem que se criem de “contratação alternativos”, submissão indevida dos profissionais mediante ameaças de mudanças de lotação ou de abertura de processos disciplinares o que desagua no recuo temerário no cumprimento dos deveres, mecanismos de controle e de fiscalização que terminem por paralisar a atividade-fim da instituição essencial à administração da justiça.
A doutrina já vem advertindo para a relação de dependência entre eficiência das atribuições dos Procuradores, segurança jurídica em favor da sociedade e a garantia dos instrumentos necessários para consecução desses elementos, com exclusão de quaisquer medidas que possa comprometer tais finalidades, em especial a garantia da independência.
Reitera-se, nesse contexto, que uma Advocacia Pública forte, competente, independente, técnica e com atuação eficiente torna desnecessário boa parte do trabalho do Ministério Público e do Judiciário. O advogado público, próximo da realidade administrativa, evita que os problemas ocorram, o que dispensa o esforço dos órgãos de controle. No lugar de combater incêndios (com a atuação de órgãos do Judiciário, MP, Tribunais de Contas), que o Estado se convença da importância de NÃO DEIXAR RISCAR O FÓSFORO. E essa função, sem impedir a atividade administrativa, quem pode assumir com maior potencial de sucesso é o advogado público. O que se requer é a estruturação de um sistema em que o trabalho profissional dos membros das carreiras previstas constitucionalmente viabilize à Administração cumprir as suas obrigações, o mais celeremente possível, sem vícios que alimentem os temores e desesperança dos cidadãos.