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“Como pode, depois de 100 dias, ainda não termos resposta? Como podem as instituições estarem tão corroídas? Como pode crianças seguirem sendo assassinadas, e a gente viver com a lástima da mãe – “meu filho morreu com sede” – a perturbar nosso sono? Como seguir?”
Não há quem não tenha escutado uma dessas indagações nos últimos dias. Perguntas sem respostas, por óbvio. Embora algumas desconfianças óbvias se apresentem.
Instituições são organismos que, constituídos, têm existência independente de cada um que as integra. Cada instituição tem um primeiro e principal compromisso: sobreviver. Há um pacto silencioso de fidelidade a essa sobrevivência. Se alguém quebra o pacto, mesmo seja um dos seus membros, ela se volta contra o “traidor”, para o destruir. Não importam anteriores divergências políticas internas, o grupo que o “traidor” integrava, nada disso é relevante diante da necessidade de acabar com a ameaça institucional. Há um objetivo uníssono de botar fim àquele ou àquilo que pode comprometer a existência e/ou estabilidade do organismo. Depois de superado isso, aí sim, é possível retornar às antigas disputas. Antes, contudo, há que se “enquadrar” (se possível), ou destruir (se impossível enquadrar) a terrível ameaça.
Marielle era uma ameaça. Interna e externa. Uma ameaça “não enquadrável” a limites toleráveis. Se fosse “só” alguém de fora do sistema e o poder interno dele fosse suficiente, a facilidade de esmigalhar seria manifesta e talvez não “exigisse” o homicídio. Mas não era assim. Tratava-se de alguém “de dentro”, uma “força da natureza” como li em algum texto e, muito perigoso, alguém numa situação frágil: mulher, nenhuma proteção efetiva e proporcional ao poder vigente, que buscava preservar independência e lutar por seus valores, com a coerência possível a nós, humanos. Nesse contexto, não foi a primeira, nem a única: perdeu a vida.
Todos os dias há notícias de gente morta nas instituições. Morre quem desiste e passa a fazer um trabalho burocrático. Morre quem se corrompe e entra para o sistema. Morre quem sai da instituição porque não aguenta o peso do jogo perverso. Morre quem para de enxergar porque, caso contrário, não aguenta a própria covardia. Morre quem enlouquece entre o dilema moral – ser quem é – e os limites reais das profissões exercidas dentro ou próximas ao Poder.
Nesse contexto, desconfio que Marielle é quem vive. Mesmo. Mas é uma perspectiva de vida triste. Para continuar sendo quem sempre foi até o fim, viva no destino escolhido, terminou assassinada. Marcos Vinicius, 14 anos, também foi morto. O sistema o matou. Um sistema cheio de gente morta. Morreu com sede, Marcos Vinicius. A mãe sobreviverá o resto dos dias com essa frase na cabeça. Eu também, confesso. E entre tanta morte e tanta dor, me pergunto, mais uma vez, como seguir.
Mais uma vez, a profissão de fé com o rosto molhado:
Quando não há saída, quando somos reféns e absorvemos a completa falta de controle diante do sofrimento e do absurdo generalizado, que consigamos resistir. Que possamos encontrar outros que também tentam e que haja coragem para nos abraçar. Um abraço forte, daquele tipo que alimenta a alma e que grita: vamos resistir juntos sendo quem somos. E é só isso. A esperança de encontrar amor para seguir sendo quem somos.
Amém