Sobre o dia das crianças. Ou sobre eleição.

Tempo de leitura: 11 minutos

A maioria dos amigos está angustiada. À exceção dos radicais (e são poucos na bolha pessoal), não importa para que lado penderam ou se estão imobilizados: a escolha de comportamento vem com sofrimento. Uns com mais certeza, outros com menos, pouquíssimos orgulhosos e, arrisco dizer, ninguém feliz de verdade. Confesso certa gratidão por esse mundo construído sem tantas discrepâncias e tão diferente da barbárie que acontece “lá fora”; seguimos irmanados numa dor que teme, responsavelmente, pelo “futuro da nação”, como cantava Legião Urbana.

É significativo que uma semana tão difícil termine numa sexta-feira de dia das crianças. Fiquei a pensar o quanto das crianças que fomos pode nos ser útil a atravessar esse período que promete ser longo. Cá de mim, lembrei episódios no mínimo curiosos:

1. Cabra cega e o gosto de “cabo de guarda-chuva”

Eu devia ter uns 5 anos. Brincávamos de cabra cega na varanda enorme, de piso vermelho sextavado, do lado da sala de jantar onde os adultos conversavam. Eu era a mais nova e, óbvio, o alvo preferido da chacota dos demais (hoje certamente chamariam de bullying rs). Quando vendaram meus olhos, ficou uma fresta na parte inferior do olho direito e, lógico, eu conseguia ver tudo. Não tive dúvida e gritei:

– Tá dando para ver aqui ó!

Foi uma risada geral.

– A besta contou que tá enxergandoooooo!

– Ôh coitadinha, tão certinha ela…

– Mas é burra, viu?

– Filha de Osmar e Terezinha, gente… Ela num rouba não!

Estava todo mundo descontrolado gargalhando do comportamento “ridículo” da caçula. E eu? Bem, eu não entendi nada. A graça da brincadeira não era conseguir “pegar” as pessoas enquanto cega? Não era esse o “combinado” que era a regra? Como assim eu poderia ver, não contar e ganhar o jogo trapaceando? Naquele instante, entendi que o mundo, e um mundo bem próximo, podia não ser tão honesto como eu imaginava. E que, apesar disso, não havia dúvida do que era certo e do que seria errado. Muito além do sentimento de solidão, experimentei, pela primeira vez, a certeza de quem era e que nada mudaria a escolha de continuar sendo. Mas senti um gosto de “cabo de guarda chuva” na boca. Ser o que é, “apesar de”, prometia não ser tão fácil assim. Está aqui o gosto de guarda-chuva, décadas depois, confirmando a suspeita.

2. A eleição e a perversão do sistema

Meu pai nunca foi político do tipo que disputa mandatos ou que aceita integrar governos. Dentre outras coisas, tinha receio de não conseguir manter-se fiel aos próprios valores caso mergulhasse nesse mundo. Propostas não faltaram, até para concorrer ao cargo de Governador. Ele agradeceu e soltou essa ao agente político que fez o convite: “Meu receio é andar no meio do chiqueiro; a lama lá de dentro suja quem se arrisca a entrar… além disso, quem anda com porcos farelo come”. Nessa toada, desde muito cedo, me advertiu: “não quero você metida com essas coisas; o negócio é estudar e conseguir fazer diferença de outro jeito”. O próprio fez políticas sociais por onde passou, sem nunca se meter com eleições nem em política partidária ou governamental, o que acabou sendo melhor do que o discurso repetido à exaustão.

Mas eis que estávamos na 3ª série primária (pois é; antes do tal “ensino fundamental” havia mesmo é o primário). E a “tia” (pois é; a gente chamava a professora de “tia”…) organizava a eleição do líder de turma. A eleição, como prevalecia à época, era indireta: a professora indicava quatro nomes e os alunos da série escolhiam o líder mediante voto secreto. No dia da indicação, a “Tia” indicou o nome do filho de um deputado muito, muito famoso na cidade. O menino era um idiota que, além de não estudar, era agressivo e batia em qualquer um que o desagradasse. Aí ela pensou, pensou, e indicou um outro: era um figuraça, mas até aquele momento tinha vindo nessa vida a passeio; não queria muito compromisso com a escola e com nada de sério. O terceiro nome foi de um colega super estudioso que foi logo dizendo que não tinha o menor interesse. E ela seguiu percorrendo as carteiras com o olhar, tentando achar um outro que pudesse ser indicado. Eu, que até então custara a me manter calada, não aguentei:

– Por que nenhuma menina pode concorrer?

Ela ficou lívida. E gaguejou.

– Ué. Poder… Poder, pode, ué!

– Pode messsssmoooooo?

Recuperando o controle da situação, respondeu brava:

– Ló-gi-co que PODE, Raquel!

– Aaaaahhh bom.

– É que ninguém quer!

Eu, que já conseguiria ficar calada a essa altura, achei a resposta um abuso e retruquei:

– Quem foi que disse que ninguém quer?

– Tem alguém aqui que quer? – e se dirigiu para o resto da sala, com um olhar intimidador…

Sem pestanejar, respondi:

– EU quero! Pode botar meu nome aí!

A professora me fulminou e até tremeu a boca de raiva ao escrever meu nome no quadro. E daí em diante seguiu-se uma eleição disputadíssima. O figuraça e o estudioso retiraram-se solenemente para longe daquele furdunço. O filho do político contou com o auxílio da máquina: o pai mandou fazer santinhos, a mãe distribuiu saquinhos de balas e chicletes na porta da escola, ambos genitores escreveram e imprimiram na gráfica da cidade o “projeto de governo” do “candidato”, providenciaram comício com música, dentre outras inacreditáveis medidas eleitoreiras. Eu? Bem… Tive de me virar com a ajuda principalmente da melhor amiga e de uma meia dúzia de auxiliares mirins. Porque mãe limitou-se a dizer “você que se meteu nisso, agora se vire” e pai permaneceu em silêncio todo o tempo. Até hoje não sei se por ódio de eu concorrer em uma eleição por iniciativa própria ou por orgulho jamais confessado ou as duas coisas juntas… O fato é que ajuda doméstica inexistiu, o que me privou, inclusive, da disponibilidade de verbas de campanha. Mal conseguimos fazer uma peça de teatro do “sítio do pica pau amarelo” e escrever um projeto numa cartolina antes do disputadíssimo debate em que, consta, saí vencedora. Nas eleições? Aí a história foi outra: empate nos votos dos alunos e derrota fragorosa nos decisivos votos dos professores.

Ali aprendi várias coisas. O mundo da política favorece quem já está no poder e quem é herdeiro dele. Eleições indiretas são um jeito de impedir a ascensão de quem tem base, mas não faz conchavo com o poder que tem a competência preliminar seletiva. Mulheres são indesejadas na política até mesmo por outras mulheres. Quem disputa as eleições e tem dinheiro, possui facilidades inacreditáveis durante todo o processo. Aliás, o processo eleitoral pode ser bem sujo, artimanhas nojentas são em regra utilizadas e é muito improvável ter sucesso com o uso exclusivo de recursos “limpos” e lícitos. A política formal assemelha-se, infelizmente, a um chiqueiro e escapar da lama do sistema, tendo sucesso ao final, é alternativa pouco factível. Isso não impede, contudo, a participação como resistência.

Sobre a resistência, penso que um episódio por existência terrena parece estar de bom tamanho. Feliz por ter cumprido o meu aos 07 (sete) anos, já que a eleição foi em fevereiro e sequer havia completado 08 (oito) anos apesar da terceira série. Feliz por ter descoberto, tão cedo, que coragem para resistir não depende de sexo, idade, dinheiro, apoio dos mais fortes e nem mesmo da derrota ao final. Basta disponibilidade e resiliência. É preparar o “lombo para tanta lambada”, com a certeza que valerá a pena. E essa é a parte que muita gente jamais entenderá: o que faz valer a pena não é ganhar; são os passos do caminho escolhido e percorrido, são as pessoas com quem caminhamos, são o que realizamos dentro e fora a cada passo e, principalmente, são as sementes que ficam dessa jornada.

3. Agressão e reação: sem escolha

Na década de 80, havia uma certa uniformidade no jeito de educar. Menos informação, os pais e as mães seguiam, em regra, uma mesma cartilha; tudo era meio ignorante, ninguém discutia muito se era certo ou errado e chegamos todos à vida adulta. Nossos pais tinham os mesmos valores, ressalvadas as exceções (eleitoreiras rs) que apenas confirmavam a regra. A criança tinha que fazer a cama (e não fazia e as mães gritavam e a gente fingia de surdo e o pau quebrava e…), respeitar os mais velhos (não importa que alguns fossem osso duro de roer), passar de ano e de preferência com nota boa (sem ganhar nenhuma compensação porque “não era mais que a obrigação”), sem que se excluíssem beliscões ou palmadas em momentos de descontrole materno motivado por pirraças ou graves “capiturias”.

Nesse mundo, tão seguro em seus erros e acertos, ninguém podia ser gratuitamente mau. Eis que um dia, a colega que era a maior da turma (e carregava a bandeira do Brasil no desfile de 7 de setembro por isso) estava de “ovo virado”. Chegou perto da minha melhor amiga, que usava duas “maria chiquinhas” lindas (as quais invejei toda a vida), puxou pra baixo ambas, soltou e a xingou. Eu estava em cima do murinho da escola. E, até ali, tinha sido uma menina 100% pacífica. Pois num instante “peguei uma carreira”, pulei em cima da agressora e arranhei o seu nariz. Não lembro como tudo terminou (verdadeiro bloqueio da primeira – e talvez única – briga da infância), mas tenho certeza que ninguém contou nada em casa. Eu apanharia, lógico. A agredida tomaria um sabão por não ter se defendido pessoalmente (desconfio que até hoje nunca conversamos sobre isso). E a “responsável por tudo”? ah! essa ficaria em prisão perpétua até o fim da adolescência porque a mãe dela era uma verdadeira onça.

Ali entendi que certas injustiças, mesmo que completamente desconhecidas até então, faziam nascer uma reação automática que não dava para segurar. Nem mesmo o autocontrole conquistado a duras penas na vida adulta tornou justificável assistir, muda e insensível, violência desse tipo absurdo. Há situações em que se calar significa ser conivente com o intolerável. E embora bater fosse (e seja) algo também errado, a defesa de determinados horrores exige postura contrária, veemente e firme. Ninguém sai feliz, é óbvio. A maioria sentimos medo das consequências, por óbvio instinto de sobrevivência. Mas não chega a ser “escolha” combater o que sabemos ser verdadeiro horror. Basta ser quem é. E seguir sendo. Viver é mesmo algo perigoso.

4. Moral da história

Quando líamos qualquer coisa na infância, buscávamos, ao fim, encontrar a “moral da história”. Hoje, não acredito mais em conclusões únicas, muito menos definitivas. Mas fico cá a pensar que: 1) é interessante descobrir bem cedo na vida que ser honesto pode até parecer ridículo e, ainda assim, vale a pena seguir fiel a esse objetivo; 2) mergulhar de cabeça em processos eleitorais é para poucos, pois o sistema pode ser bem sujo e triturar os forasteiros; apesar disso, vale a pena resistir e a coragem para tanto não depende de nada senão da disponibilidade pessoal e de um bocado de resiliência; 3) diante de violências absurdas, não dá para se calar, nem se fingir de morto; é preciso sair do conforto da omissão e combater o que é intolerável para que ainda tenhamos um mundo para deixar para nossas crianças.

Entrou na perna de pato

Saiu na perna de pinto

O Rei Sinhô mandou

Que tú me contasse mais cinco

 

Comentários abertos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4 Comentários


  1. Esse texto lindo foi uma lufada de ar fresco! Obrigada!

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  2. Bom Dia.
    A Dra Raquel acaba de ganhar uma leitora assídua e entusiasta de suas sábias palavras.
    Obrigado.

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