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1.Considerações Preliminares
Ao analisar o contexto que ensejou a ocorrência da tragédia de Brumadinho, alguns elementos vêm sendo destacados como, p. ex., a falta de servidores públicos da Agência Nacional de Mineração lotados no Estado de Minas Gerais para realizar a atividade de fiscalização das barragens de rejeitos de minérios e a insuficiência de recursos orçamentários disponíveis para o exercício das atribuições normativas e de controle pela entidade autárquica. Cumpre examinar, destacadamente, aspectos empíricos e jurídicos pertinentes a ambas realidades, a fim de que sejam possíveis conclusões sólidas sobre essas questões.
Sumário
2. A importância de um quadro de pessoal técnico e estável para o exercício de competência fiscalizatória ambiental
Desde a tragédia de Brumadinho, foi insistentemente divulgada a falta de pessoal suficiente nos quadros do Poder Público para o exercício da fiscalização ambiental. Em tese de doutorado defendida em 2017, o professor de Direito Ambiental Lyssandro Norton Siqueira já havia chamado a atenção para que “É preciso diminuir a retórica. O que adianta discutir hipóteses de exigibilidade do EIA-RIMA no licenciamento se não tivermos mais quem tenha capacidade técnica para examiná-lo? Qual a motivação para debatermos novos e preciosos projetos de recuperação de áreas degradadas se não há pela Administração Pública Ambiental quem possa assegurar tecnicamente a sua viabilidade e efetividade?”. Antes, explicitara objetivamente quanto à realidade do controle do meio ambiente, com base em informação do Tribunal de Contas da União:
“‘A insuficiência de capacitação dos servidores foi associada principalmente à necessidade de treinamentos para a identificação da flora e fauna mais comumente envolvidas em ilícitos ambientais, já que nem sempre é possível contar com apoio da área técnica correspondente. (…) Os problemas identificados anteriormente revelam fragilidades que comprometem a efetividade das atividades de fiscalização do Ibama.’ (…)’
Em vários Estados da Federação há uma grande carência de técnicos qualificados para atuação na área ambiental.
Nos Municípios a situação chega a ser ridícula. De 5.564 municípios brasileiros, apenas 47% possuem Conselho de Meio Ambiente. Isto significa que 3.125 Municípios brasileiros não possuem Conselho de Meio Ambiente. Destes apenas 33,8% realizaram reunião nos últimos 12 meses, ou seja, 3.919 Municípios não realizaram sequer uma reunião nos últimos 12 meses. Na região Norte este percentual cai para 28,5% e na região Nordeste para 21%, o menor do Brasil. Importante destacar que os principais atores no licenciamento ambiental são exatamente os Municípios e os Estados, os maiores fragilizados no federalismo brasileiro. A situação nos Municípios torna-se ainda mais grave, pois, conforme constata François Ost, as instâncias locais estão suscetíveis a uma maior pressão de grupos poderosos:
O fenómeno do regionalismo revela-se, a este respeito, bastante ambíguo: se, em princípio, é preciso regozijar-se quando os problemas conseguem ser resolvidos, segundo o princípio de subsidiariedade, e ao nível mais próximo possível dos cidadãos, é preciso, contudo, ter consciência de que os poderes municipais e locais nem sempre estão em condições para resistirem às pressões exercidas por poderosos grupos industriais, susceptíveis de dar emprego aos seus eleitores. Sem contar que a problemática ecológica, global e complexa por natureza, exige, muitas vezes, uma regulação de conjunto que ultrapassa as competências das autoridades locais.
Tal carência técnica e estrutural fragiliza o exercício pelo Poder Público de suas atribuições. O claro sucateamento da Administração Pública Ambiental é reflexo da pouca preocupação concreta da sociedade com o meio ambiente. Não que o país seja modelo de organização na saúde, segurança e educação, mas nessas outras áreas críticas, a presença da estrutura do Poder Público, com equipamentos e recursos humanos, é mais cobrada que na área ambiental, pela sensibilidade direta ao cidadão e seus familiares. A ausência completa, por exemplo, de professores em sala de aula para a educação básica geraria uma grande comoção social. Por outro lado, a mesma sociedade sequer toma conhecimento se existe, ou o que faz, um fiscal ambiental.”[1]
De fato, a insuficiência de pessoal na fiscalização das barragens era anunciada por órgãos de controle como o Tribunal de Contas da União que, em auditoria operacional realizada sobre a segurança das barragens de rejeitos de mineração, após o acidente da barragem de Fundão em Mariana, qualificou como deficiente a atuação do então DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), em razão de limitações orçamentárias, financeiras e de recursos humanos, malgrado a correção da política adotada na legislação de 2010. Entende-se necessário transcrever as observações relativas à estrutura funcional da então autarquia, agora Agência Nacional de Mineração, pela clareza e especificidade do relato estrutural, capaz de evidenciar uma das causas importantes da difícil realidade agora enfrentada:
“2.5 A fiscalização das barragens de rejeitos de mineração no âmbito do DNPM
- Conforme informado, a Lei da PNSB designou ao DNPM o papel de órgão fiscalizador das barragens para fins de disposição final ou temporária de rejeitos de mineração.
- O DNPM é autarquia federal vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME) e, nos termos do seu Regimento Interno (art. 2º), aprovado pela Portaria MME 247/2011, tem por finalidade promover o planejamento e o fomento da exploração mineral e do aproveitamento dos recursos minerais e superintender as pesquisas geológicas, minerais e de tecnologia mineral, bem como assegurar, controlar e fiscalizar o exercício das atividades de mineração em todo País.
- Cabe ao DNPM, entre outras atribuições, fiscalizar a pesquisa, a lavra, o beneficiamento e a comercialização dos bens minerais, podendo realizar vistorias, autuar infratores e impor as sanções cabíveis, além de baixar normas em caráter complementar e exercer a fiscalização sobre o controle ambiental, a higiene e a segurança das atividades de mineração.
- Nesse contexto, embora a PNSB tenha sido estabelecida apenas em 2010, a competência para fiscalizar barragens de rejeitos já se encontrava indiretamente sob a guarida do Departamento, inserida na sua atribuição de fiscalizar o exercício das atividades de mineração.
- O advento da Lei 12.334/2010 e da PNSB representou uma nova perspectiva sobre a segurança de barragens e implicou novas e específicas atribuições designadas à Autarquia, tais como implantação e manutenção de cadastro, a classificação das barragens, as regulamentações relacionadas aos planos (PSB e PAE) e às inspeções a cargo do empreendedor.
- Na estrutura organizacional do DNPM, não há unidade específica encarregada da fiscalização de barragens de rejeitos, sendo essa atividade incluída no rol geral de fiscalização da atividade minerária
(…) 3 ACHADOS DE AUDITORIA (…)
- A Lei 12.334/2010 estabeleceu novo marco regulatório para o setor minerário ao regulamentar questões específicas sobre a gestão da segurança das barragens de mineração. (…)
- As apurações feitas na auditoria levam à conclusão que, em termos gerais, pode-se afirmar que a Política é adequada, do ponto de vista jurídico-institucional, para o cumprimento dos objetivos regulatórios previstos no art. 3º da Lei 12.334/2010, mormente no que toca à definição de padrões de segurança com o objetivo de reduzir a possibilidade de acidentes.
- Constatou-se que é clara a competência do DNPM em relação à fiscalização das barragens de rejeito, conforme disposto no inciso III, do art. 5º, da Lei 12.334/2010, cabendo ao empreendedor a responsabilidade legal pela segurança da barragem, por meio das ações necessárias para a sua garantia.
- Não foram identificadas lacunas ou sobreposição de funções entre os órgãos e atores envolvidos na Política (…)
- A despeito de eventuais inconsistências técnicas previstas nos regulamentos, pode-se dizer, portanto, que o marco regulatório definido pela PNSB possui, no geral, os pressupostos necessários para garantir a gestão da segurança das barragens de rejeitos no País.
- No entanto, conforme será tratado a seguir, neste relatório, não se deve ignorar a necessidade de avaliação criteriosa da implementação da política regulatória, pois muitas dificuldades surgem no cumprimento dos regulamentos e nos processos de fiscalização, fatores esses que devem ser analisados com vistas ao constante aprimoramento do marco regulatório. (…)
- A própria contratação da assessoria técnica especializada demonstra que o DNPM não tem capacidade para verificar as informações declaradas pelos empreendedores e analisar se eram razoavelmente corretas as classificações de risco das barragens sob sua jurisdição, confirmando a avaliação da equipe de auditoria de que o DNPM não dispõe de meios e instrumentos concretos para, efetivamente, auxiliar na verificação e conferência sistemática, rotineira e tempestiva da veracidade dos dados informados no cadastro pelos empreendedores. (…)
- O Departamento argumenta que a carência de mão de obra dificulta a implementação efetiva de rotina de análise documental, tendo em vista que, como visto, esse processo carece de procedimentos automatizados e depende do uso intensivo de recursos humanos.
- No que tangencia a definição de prazos internos e a necessidade de registro das análises empreendidas, ainda que de checklist, observa-se também a omissão do Manual de Fiscalização nesse sentido.
- Como consequência dessas situações apresentadas, tem-se que a fiscalização exercida pelo DNPM do ponto de vista do controle documental é precária, limitada e incompatível com as boas práticas de controle, o que impacta a atuação da Autarquia enquanto órgão fiscalizador da PNSB. (…)
3.2.3 Planejamento de vistorias (…)
- Os números levantados pela auditoria revelam que, do total do cadastro de barragens de rejeitos de mineração no Brasil inseridas na PNSB, tão somente 41% já foram vistoriados ao menos uma vez pelo DNPM, dado este especialmente relevante em se considerando a diretriz de elaborar planejamento de longo prazo com vistas a abarcar a totalidade de barragens em quatro anos.
- Sobre essa questão, o DNPM, quando da fase de comentários dos gestores (peça 51), argumentou que, em face do rol de atribuições a cargo da Difis e das limitações de recursos humanos e financeiros, a autarquia não tem como fiscalizar anualmente todas as barragens de rejeitos existentes no País. Por essa razão, segundo esclarecido, a fiscalização é realizada por amostragem com base em critérios de prioridade que não se restringem apenas à classificação de risco, ou seja, também são levados em conta critérios da classificação por dano potencial associado ou, ainda, as barragens sem a declaração de estabilidade emitida ou emitida sem garantir a estabilidade da estrutura (…)
- Outro fator identificado foi, na falta de relações hierárquicas entre a Difis e as áreas de fiscalização das superintendências regionais, a ausência de mecanismos institucionais de enforcement no âmbito do próprio processo de fiscalização da segurança de barragens no DNPM, capazes de garantir a aplicabilidade e o cumprimento efetivo das diretrizes e dos planos de fiscalização elaborados. Um exemplo desse tipo de controle seria o requisito de que esses planos fossem aprovados pelo Diretor-Geral, diretamente ou por delegação de competência para a própria Difis, e que, ao final do período de vigência, houvesse instrumentos de avaliação quanto ao seu efetivo cumprimento, inclusive por meio de indicadores de desempenho que indicassem, qualitativamente, a atuação de cada superintendência (…)
- Ainda no tocante às causas, o DNPM ponderou que o alto volume de demandas externas, tais como as exaradas no âmbito do Poder Judiciário ou do Ministério Público, impactam o planejamento das ações de fiscalização das superintendências. Em Minas Gerais, por exemplo, essa demanda externa consome cerca de 30% da força de trabalho do corpo técnico da Superintendência. In verbis (peça 15, p. 14): ‘cumpre destacar que em atendimento à audiência conciliatória na Justiça Federal de Minas Gerais, em função da ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público Federal de Minas Gerais, a Superintendência do DNPM/MG realizou (…), entre 2012 e 2015, fiscalização em quarenta barragens de mineração selecionadas pelo MPF/MG, em face de ausência de declaração de estabilidade junto ao órgão ambiental estadual, [independentemente] de sua classificação de risco. Essa ação fiscalizatória continua a ter desdobramentos, exigindo novas vistorias em atenção a demandas judiciais.’
- A par dessa questão, há que ser sopesado que a instabilidade orçamentária do órgão e a carência de recursos humanos possivelmente prejudicam a consolidação do processo de planejamento por parte das superintendências, uma vez que as fiscalizações in loco são atividades dependentes da emissão de diárias e passagens, despesas estas diretamente afetadas pelas disponibilidades financeiras da entidade. Demais disso, em virtude mesmo da natureza da ação, eventuais desequilíbrios na distribuição ao longo do exercício financeiro não conseguem ser compensados quando da liberação de montante de recursos nos últimos meses, em razão de limitações de tempo e recursos humanos.
- Toda essa situação, suportada pelas estatísticas supra apresentadas, resultam na ineficácia do processo de planejamento do DNPM quanto à fiscalização da segurança de barragens de rejeitos, como um todo, e dos planos de fiscalização que vêm sendo elaborados anualmente pela Difis, os quais têm se tornado, de fato, quase letra morta frente às prioridades e às realidades de cada superintendência.
(…) 268. Configura-se, pois, situação que pode resultar em fiscalizações limitadas e muito dependentes da capacidade e expertise individual dos técnicos envolvidos, impactando a atuação global do DNPM enquanto órgão fiscalizador.
3.3.2 Estrutura de recursos humanos
- Segundo o DNPM, a Autarquia conta com quadro técnico insuficiente diante da demanda de trabalho e elevado percentual de servidores aptos a se aposentar.
- A Lei 11.046, de 27/12/2004, estabeleceu o plano de carreira (PCC) e o plano especial de cargos (PEC) do DNPM e criou o quantitativo de 1.200 cargos para a carreira, sendo seiscentos cargos de especialistas em recursos da mineração, duzentos de analista administrativo, duzentos de técnico em atividades da mineração e duzentos de técnico administrativo.
- Somando-se a esse quantitativo os cargos vagos de nível superior e intermediário do quadro de pessoal do DNPM, pertencentes ao plano especial de cargos, conforme previsto no art. 4º da mencionada Lei, o DNPM conta com o total de 1.603 vagas criadas.
- Após o advento desse normativo, a Autarquia realizou dois concursos públicos, um em 2005 e um em 2009. Desde então, não foi realizado outro concurso público, nem mesmo para a reposição de vagas decorrentes de aposentadorias e falecimentos.
- Das 1200 vagas criadas, atualmente, 450 estão ocupadas. Apesar da autorização do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP) para preenchimento de 556 vagas, não houve liberação do próprio Ministério para a nomeação de candidatos aprovados e, por consequência, preenchimento das vagas autorizadas remanescentes (106), por força da Portaria MP 39, de 28/3/2011.
- Segundo o DNPM, mediante Ofício 331/2013 – GAB/Superintendência/DNPM/MG (peça 32, p. 101), mesmo após diversas formalizações de pedidos para preenchimento de vacâncias, apenas dez vagas foram liberadas, quase na iminência do término da vigência do concurso.
- Assim sendo, sem considerar as vagas provenientes do PEC, a área de especialista em recursos minerais encontra-se com 256 vagas ocupadas, o que equivale a 42% do total de vagas criadas pelo plano de carreira da Autarquia. A área de técnico em atividades de mineração preenche o total de 20% das vagas previstas legalmente (Gráfico 12). (…)
- Segundo estimativas do DNPM (peça 32, pp. 37 e 44), o atual quadro de servidores da Autarquia equivale a 62% do total que ela deveria ter para a adequada realização de suas atividades finalísticas. A Superintendência de Minas Gerais, ainda conforme o estudo promovido pela Autarquia, está com o maior déficit de servidores. Atualmente, conta com 79 servidores, enquanto seriam necessários 384 para atender a demanda de trabalho daquela Unidade.
- Além disso, o DNPM conta com um percentual elevado de servidores que recebem abono de permanência, totalizando 41% dos servidores da área administrativa e 23% dos servidores da área finalística. Nessas condições, esses servidores podem se aposentar a qualquer momento, o que impactaria o andamento dos trabalhos realizados pela Autarquia.
- Registra-se que a precariedade de recursos humanos do Departamento foi mencionada em outros trabalhos realizados por este Tribunal e pela Controladoria-Geral da União (CGU), a exemplo do Acordão 3.004/2011-TCU-Plenário, referente ao TC 027.818/2011-0, por meio do qual o TCU recomenda ao DNPM que envide esforços para adequar a área de fiscalização às atividades de exploração mineral nas respectivas unidades da federação. No mencionado trabalho, há uma menção de alerta da CGU, no relatório anual de contas, quanto à insuficiência do quadro técnico na Autarquia. (…)
- Dessa forma, em fevereiro de 2016, o DNPM ainda encontra-se com número de servidores abaixo do que havia em 1989, considerando que dispõe de 1.171 servidores lotados (dados atualizados para o mês de maio de 2016, encaminhados pelo DNPM em resposta ao relatório preliminar, indicam quantitativo total de 934 servidores). Constatou-se também que o progressivo esvaziamento de pessoal do DNPM até o ano de 2005 ainda não havia sido completamente superado com os concursos públicos realizados nos últimos anos.
- Tendo em vista a complexidade e a demanda de trabalho que o setor minerário requer e considerando que recursos humanos são elementos indispensáveis para a realização das ações de fiscalização, a atual situação quanto ao déficit de servidores da Autarquia compromete o alcance dos resultados esperados para a necessária regulação e fiscalização do setor (…)
- Por todo exposto, conclui-se que a situação atual do DNPM, pelo elevado percentual de aposentadorias iminentes, além do insuficiente quadro de servidores de carreira, cujo quantitativo encontra-se, inclusive, em patamar abaixo do número de servidores em 1989, afeta a atuação desse órgão fiscalizador quanto ao cumprimento das atribuições legais previstas, incluindo a fiscalização da segurança de barragens de rejeitos de mineração, e ocasiona probabilidade de colapso da Instituição no curto prazo (…)”
Diante dos dados trazidos pela unidade técnica do TCU, o Ministro Relator, em seu voto, reconheceu que “Quanto ao processo de fiscalização das barragens a cargo do DNPM, chegou-se à conclusão que a atuação da autarquia é frágil, deficiente e carente de uma coordenação adequada, não atendendo, em consequência, aos objetivos da PNSB” e, dentre as causas diversas enumeradas, destaca-se: “20. Para piorar o quadro, limitações de ordem orçamentária, financeira e de recursos humanos impactam de maneira importante o desempenho do DNPM no que diz respeito à sua atividade fiscalizatória. Na dimensão dos recursos humanos, a situação é semelhante. 23. Por limitações orçamentárias, o DNPM não foi autorizado a preencher a totalidade de vagas de especialista em recursos da mineração. Atualmente, apenas 42% das vagas criadas pelo plano de carreira (Lei 11.046/2004) estão preenchidas. A situação mais grave é da Superintendência de Minas Gerais (justamente o Estado onde ocorreu o desastre da Barragem de Fundão), que conta com 79 servidores, ante a necessidade de 384 para atender a demanda naquela unidade, segundo estimativas do DNPM. Sem contar o prognóstico ruim, ante o elevado número de servidores que estão recebendo o abono de permanência, que, portanto, já reúnem os requisitos para requerer a aposentadoria. O problema já havia sido apontado pelo TCU. Em levantamento realizado em 2011 (TC 005.711/2011- 8), verificou-se que o DNPM, em 1989, quando integrava a estrutura do Ministério de Minas e Energia, contava com 1.430 servidores. Em 2005, já transformado em autarquia, o órgão possuía apenas 811 servidores efetivos. O déficit de mão de obra foi agravado com a implementação da PNSB, responsável pelo incremento de atribuições à autarquia, como já mencionado.”[2]
Sublinhe-se que no próprio site da Agência Nacional de Mineração encontra-se relatório de gestão do exercício de 2017, com informações que corroboram as dificuldades da entidade em cumprir suas atribuições, senão vejamos:
“Desde o ano de 2015 o Departamento Nacional de Produção Mineral fez solicitação de autorização para realização de concurso púlico (sic) para provimento de cargos efetivos, que em 2017 teve os autos devolvidos para atendimento dos critérios do Decreto nº 6.944/09 (Processo nº 48400.001539/2015-95), que dispõem sobre normas gerais relativas a concursos públicos, mais especificamente ao art. 2º.
A Autarquia identificou um déficit de servidores frente às atribuições regimentais e um passivo gerado, destacando-se a relevância dos acontecimentos marcantes para a mineração no ano de 2015 – desastre de Mariana – e o aumento substancial das demandas junto ao DNPM. O levantamento das necessidades de pessoal apurado, infere que o quantitativo de pessoal necessário está aquém das vagas apuradas dentro dos limites legais.
Uma análise dos quadros de Gestão de Pessoas demosntra (sic) baixo número de servidores para atender as atribuições dos diversos setores e a expectativa do impacto das futuras aposentadorias (percentual de servidores com abono), e evasão dos contratados nos últimos concursos.
O DNPM recebeu em 2010 a incumbência da gestão de empregados anistiados oriundos das extintas Companhia Vale do Rio Doce e Companhia Brasileira de Projetos Industriais. O quantitativo de empregados geridos pelo DNPM, em 2014, era de 664 funcionários que passaram a fazer parte do quadro em extinção da Autarquia, embora com exercício em outras instituições. As unidades de Minas Gerais e Espírito Santo absorveu (sic) um quantitativo maior de empregados públicos anistiados.
A administração do DNPM não estava preparada para assumir tal responsabilidade, em virtude de não contar em seus quadros com equipe experiente em CLT, uma vez que o regime próprio da autarquia é o RJU. Para a realização das ações pertinentes ao ingresso de tais funcionários no DNPM, foi constituído um Grupo de Trabalho e providenciado curso de capacitação na área de administração de pessoal.”[3]
Observe-se que não há qualquer elemento que autorize afastar a existência dos problemas relatados pela estrutura administrativa e pelos órgãos de controle. Inclui-se aí a edição da Lei Federal nº 13.575, de 25.12.2017, que extinguiu o DNMP (Departamento Nacional de Produção Mineral) e criou a ANM (Agência Nacional de Mineração). No que tange às competências fiscalizatórias exercidas pelos servidores da autarquia o diploma legal limitou-se a absorver os quadros anteriores:
“Art. 23. Fica criado o Quadro de Pessoal da Agência Nacional de Mineração (ANM), composto das Carreiras e do Plano Especial de Cargos de que tratam os arts. 1º e 3º da Lei nº 11.046, de 27 de dezembro de 2004.
Art. 24. Ficam redistribuídos de ofício, com fundamento no § 1o do art. 37 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, para o quadro de pessoal efetivo da Agência Nacional de Mineração (ANM) os cargos vagos e ocupados das carreiras criadas pelo art. 1º da Lei nº 11.046, de 27 de dezembro de 2004, e os cargos ocupados das carreiras criadas pelo art. 3º da Lei nº 11.046, de 27 de dezembro de 2004.”
As informações atualmente veiculadas pela imprensa são no sentido de que a ANM, que normatiza e fiscaliza as barragens de rejeitos de minério, possui 74 servidores lotados no Estado de Minas Gerais.
Não há dúvida quanto à insuficiência do pessoal disponível, sendo certo que nenhum modelo jurídico abstrato logra efetividade e sucesso no alcance dos resultados sem uma estrutura mínima de agentes comprometidos na sua realização. Daí se afirmar que modificar a lei, os decretos e as normas regulatórias ambientais de nada servirá, se não se tornar prioridade formar um quadro de pessoal em número suficiente, com condições de trabalho e devidamente treinados para uma atribuição técnica complexa como a fiscalização em matéria ambiental.
2.1. A eficiência como princípio vinculante e o significado a ela inerente
Em situações de crise é comum que governantes e controladores invoquem a eficiência como o princípio a orientar as mudanças que precisam ser adotadas. Como algumas consequências diretas a serem perseguidas na realidade administrativa apontam-se com base no princípio constitucional expresso no caput do artigo 37 da CR:
“- vincula os comportamentos positivos da Administração em favor dos cidadãos, bem como sua atividade interna instrumental da consecução das atuações finalísticas;
– cabe ao Estado otimizar resultados e maximizar as vantagens de que se beneficiam os administrados, mediante uma melhor utilização dos recursos públicos, substituição de mecanismos obsoletos, bem como uma maior produtividade e melhor qualidade nas atividades;
– requer gestão com efetiva participação democrática, capaz de, senão evitar, diminuir a burocratização e lentidão administrativas e, ao mesmo tempo, de obter um maior rendimento funcional e rentabilidade social, sem desperdício de material ou dos recursos humanos;
– necessária uma adequação técnica aos fins da Administração, bem como um planejamento adequado da atividade pública seguido de uma execução aperfeiçoada, sujeita ao controle que assegure presteza, perfeição e rendimento funcional;
– a utilização das inovações científicas e tecnológicas existentes, bem como o empenho efetivo no aperfeiçoamento das técnicas utilizadas, podem viabilizar a melhoria e expansão da atividade pública (realidade contemporânea do emprego de inteligência artificial e Administração Pública em rede);
– duração razoável do processo, inadmissibilidade de omissão ilícita no exercício das competências administrativas.[4]
Em primeiro plano, sublinhe-se que nenhum desses objetivos imputados à concretização em virtude da eficiência é faticamente realizável se não houver pessoal qualificado suficiente que aproxime o Estado dos cidadãos, que esteja comprometido com otimizar resultado, maximizar vantagens e realizar uma participação democrática, com menos burocracia desnecessária. É igualmente incabível pretender adotar inovações tecnológicas e maior celeridade sem servidores qualificados, em número bastante ao exercício das atribuições públicas.
Na tentativa de operacionalizar, no mundo real da Administração Pública, a eficiência consagrada em diversos dispositivos da CR (artigo 74, II; artigo 37, “caput”, artigo 37, § 3º e artigo 175) e na legislação vigente (Lei Federal n° 8.987/95 – artigo 6°, §1°, Decreto Lei n° 200/67 – artigo 14; Lei Federal n° 9.784/99 artigo 2°), órgãos de controle têm feito análises a propósito das estruturas orgânicas e funcionais do Estado. Destacam-se os seguintes julgados do TCU:
a) Eletrosul (analisa prevenção; eficiência): Acórdão nº 605, Processo nº 019.140/2014-2, rel. Min. José Múcio Monteiro, Pleno do TCU, ano do acórdão 2015;
b) Análise de eficiência e governança em segurança pública: Acórdão nº 1042, Processo nº 018.922/2013-9, rel. Min. José Jorge, Pleno do TCU, ano do acórdão 2014, Ata 13/2014;
c) Análise da eficiência no setor de saúde (longo exame de diversos parâmetros da atividade administrativa; excelente fundamentação): Acórdão nº 693, Processo nº 032.624/2013-1, rel. Min. Benjamin Zymler, Pleno do TCU, ano do acórdão 2014, Ata nº 09/2014;
d) sobre eficiência e governança na Administração Pública Federal: Acórdão nº 644/2014 (número anterior do acórdão 3023/2013), Processo nº 022.577/2012-2, rel. Min. Marcos Bemquerer, Pleno do TCU, Ano do acórdão 2014.
É esse o trabalho que já se fez anteriormente no setor de fiscalização ambiental de rejeitos minerários e que certamente será retomado após a tragédia de Brumadinho. A esse propósito, invoca-se a necessidade de não se confundir eficiência com o mero “alcance de resultados matemáticos”, correspondente à noção de eficácia da Ciência da Administração. Que se busque a eficiência entendida como efetividade administrativa, assim compreendida:
“Do artigo 37, caput da Constituição resulta o dever de buscar a efetividade administrativa, a qual exige o exercício imediato e célere das competências, com a qualidade necessária ao atendimento das necessidades sociais, de modo que as normas que prescrevem a boa administração tornem-se realidade objetiva e universal. A efetividade surge quando se alcançam os resultados através do emprego dos meios adequados.
Na busca pela efetividade administrativa encontra-se implícita a vedação de que se a reduza à perseguição exclusiva de resultados lucrativos. À Administração incumbe a concretização do ordenamento, incluindo-se o atendimento às necessidades dos cidadãos. Afasta-se a desídia e o menosprezo pelas demandas sociais e se fortalecem as ações ex officio por meio de que sejam concretizados os cânones constitucionais.
A efetividade refere-se, assim, à realização dos fins públicos e pressupõe que o ordenamento disponha dos instrumentos necessários à tutela de direitos e que o Estado os utilize na realidade administrativa.
Na quase totalidade dos casos, é indispensável a presença cumulativa da eficiência e eficácia administrativas (conforme conceitos da Ciência da Administração). O resultado positivo do comportamento administrativo depende do equilíbrio da equação que se compõe pelos meios empregados e resultados perseguidos com a finalidade de proteção do interesse público.”[5]
A efetividade na regulamentação ambiental das barragens requer, assim, que sejam consideradas as necessidades sociais de segurança quanto à preservação da vida humana e dos recursos naturais, o que só se tornará possível com um número suficiente de agentes públicos treinados para cumprir essa tarefa. Tais servidores devem ter a si garantidos os instrumentos necessários ao trabalho, sendo certo que o atingimento dos resultados depende da disponibilização dos meios indispensáveis. E dentre esses instrumentos, destaca-se a estabilidade como uma garantia essencial ao exercício das competências regulatórias, fiscalizatórias e eventualmente punitivas.
2.2. A estabilidade como condição de trabalho para quem regulamenta, fiscaliza e, se necessário, pune atividades econômicas privadas
Além de se ter servidores em número suficiente, devidamente treinados e com condições materiais de trabalho, é preciso que o pessoal encarregado da normatização e do exercício da polícia administrativa ambiental tenha garantia que não será sumariamente afastado das suas funções, como, p. ex., mediante demissão sem justa causa nos termos da CLT, na hipótese de o resultado das suas atividades desagradar grupos políticos ou econômicos privados. Em mais de uma oportunidade já se sustentou a essencialidade da estabilidade aos servidores da Administração direta, autárquica e fundacional. Reiteram-se, integralmente, as razões aduzidas no presente artigo:
“Periodicamente os governos se insurgem contra a estabilidade dos servidores públicos. Entre os argumentos, destaca-se que essa garantia, além de insuportável para os falidos cofres públicos, significa ‘manter gente preguiçosa e descomprometida’ ocupando lugar no Estado. Para analisar criticamente a questão, temos de entender o que é estabilidade, quais são suas vantagens e seus riscos.
Estabilidade não é petrificar nos quadros públicos gente ruim de serviço. Isso porque, antes de a conseguir, o servidor precisa ser aprovado em concurso público cujo objetivo é aferir seu conhecimento teórico; depois de empossado, por três anos ele é avaliado periodicamente quanto às habilidades para o cargo. Se é aprovado nesse período que se chama ‘estágio probatório’, isso não significa que ‘ficará para sempre nos quadros do Estado’. Afinal, se cometer uma infração grave, após processo disciplinar, a própria Administração Pública deverá puni-lo com demissão. Mais do que isso: se na avaliação de desempenho, que também é prevista para os estáveis, demonstrar não manter as aptidões para o cargo, também nesse caso poderá ser expulso do Estado. Isso sem mencionar os efeitos de eventual sentença penal ou de improbidade administrativa que determinem a perda da função pública.
Especificamente quanto à intenção de acabar com a estabilidade para ‘equacionar os gastos e os limitar aos parâmetros da LRF’, vale lembrar que, no ordenamento brasileiro, após tomadas medidas específicas (como corte de 20% dos cargos comissionados e funções de confiança), é possível demitir servidores estáveis, para retornar os gastos com pessoal ao teto da Lei Complementar nº 101. Só não vale começar cortando os estáveis e deixar intactos os nomeados sem concurso para atribuições de chefia, assessoramento e gestão. Também é preciso cuidar de reduzir os que ainda estão em estágio probatório, antes da exoneração dos estáveis. Por fim, os critérios de exoneração deverão ser objetivos, respeitar isonomia e impessoalidade, atender a publicidade e transparência, não podendo depender da ‘livre e ilimitada’ vontade dos governantes. São restrições mínimas para um Estado que se pretende Democrático de Direito
São claras as vantagens de que atividades estatais típicas, essenciais e rotineiras como, p. ex., fiscalização sanitária, segurança pública, previdência, arrecadação tributária, sejam realizadas por servidores estáveis, com direitos e obrigações previstos em lei e não por contrato: a natureza da função a ser exercida é pública, a natureza do recurso utilizado como contraprestação do trabalho é pública, os fins a serem atendidos são públicos, o que deixa clara a pertinência de as normas regulamentadoras da relação devem ser públicas. Servidores estáveis ficam a salvo da descontinuidade governativa, a cada nova eleição. E só quem detém o controle do próprio sustento mantém o domínio da sua vontade e a independência para exercer difíceis atribuições que, inclusive, restringem universos alheios: de grandes empresas a cidadãos diversos. A estabilidade também funciona como freio para oscilações radicais entre os extremos ‘pró-Estado’ e ‘pró-indivíduo’, afastando os riscos da deletéria política episódica. Mais do que isso, a estabilidade evita os riscos de apadrinhamento numa sociedade com velhas tradições nepotistas como a brasileira; contorna-se o risco de se degenerar a troca de pessoal nos quadros públicos em partidarismo.
Proteções mínimas como a estabilidade servem de anteparo para pressões indevidas e massacres institucionais de órgãos corroídos pelo poder. Muito longe de ‘proteger vagabundo’, a estabilidade é um dos instrumentos jurídicos que protege os que trabalham e incomodam, os que não compactuam com acordos espúrios e, em regra, são esmigalhados por quem, ocupando o poder, têm a voz do relato oficial. Sem ocupar os intestinos do Estado e ser dali expulso, é bem improvável que se alcance a importância de um modelo estatutário com previsão da estabilidade, por mais que as garantias legais sejam débeis diante de um Parlamento fragilizado.
Para quem diz que as formas de controlar a eficiência do servidor estável ‘não funcionam de jeito nenhum’ e o único jeito é ‘acabar com a estabilidade’, vale lembrar: se um problema tem causas, a solução adequada é atuar nessas causas, corrigindo-as. Não adianta ignorar as causas e criar outro problema, que traz em si o potencial de ser pior que o primeiro. Em outras palavras, se os mecanismos de controle da atuação do servidor não funcionam atualmente em todos os órgãos, é preciso definir e implantar procedimentos que os tornem eficazes. Se os gastos com pessoal são excessivos, é indispensável pôr fim aos vínculos inconstitucionais (como, p. ex., contratos temporários, sem concurso, para exercício de atividades permanentes de necessidade contínua; cargos comissionados para atribuições técnicas, dentre outros). Medidas dessa natureza, sim, podem restaurar a legalidade da estrutura orgânica e de ação do Poder Público. Escolher, em vez de adotar tais providências, simplesmente matar a estabilidade, porque não nos dispusemos a fazer funcionar um sistema jurídico adequado, é criar um problema maior do que o que temos hoje. Que tenhamos maturidade, conhecimento e disposição para evitar mais esse caos.” [6]
Cabe reconhecer a importância de não se fragilizar o vínculo funcional estabelecido com o Estado de um servidor que tenha por função entrar numa empresa do porte da Vale, fiscalizar uma barragem de rejeitos minerários, e fixar a necessidade do seu descomissionamento, com repercussão que pode chegar a 10% do lucro dos seus investidores que variam desde grandes fundos como o da Petrobrás e da Previ até investidores estrangeiros. Se, no dia seguinte a eventual ato de interdição, o agente público sujeitar-se ao desfazimento do seu vínculo e encerramento do exercício das atribuições profissionais, é inevitável o receio em cumprir as suas atribuições. O medo quanto à própria sobrevivência e da sua família traz em si, quase inevitável, o germe do não exercício adequado das suas competências. É verdade que a estabilidade, sozinha, não é suficiente para assegurar que o servidor faça o seu trabalho, mas é induvidoso que, sem ela, dificilmente ele conseguirá fazê-lo.
Qual o destemor que se espera de um fiscal do meio ambiente, ao analisar uma situação que exija o encerramento de uma atividade de uma grande empresa internacional, se ele tem ciência de que, no futuro, poderá estar desempregado em razão de demissão resultante de pressões políticas e econômicas ou, pior, ainda ser submetido a situações como questionamentos que buscam caracterizar sua ação como ilícita em diversas esferas? Como alcançar efetividade no controle ambiental sem um servidor ao qual se reconheçam as prerrogativas necessárias ao exercício de tarefas tão desafiadoras, com potencial constante de desagrado a grupos econômicos poderosos e interesses políticos desconhecidos? Quando não há a garantia da estabilidade, reconhecida regularmente ao servidor efetivo após aprovação no estágio probatório, não é raro que tentativas de interromper a atividade de profissionais atuantes ocorram a partir de ameaças de exonerações de cargos comissionados, extinções de contratos temporários (artigo 37, IX da CF) e de contratos administrativos firmados com base na Lei nº 8.666. Esse tipo de realidade fragiliza e compromete uma realidade já sensível da atividade administrativa irrenunciável. É preciso humildade e coragem de designar os riscos prováveis e, agindo com precaução e prevenção, estruturar um modelo capaz de os evitar.
Destaque-se que, após a catástrofe do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, vem impressionando todo o Brasil a atuação do Corpo de Bombeiros em condições extremamente adversas, ao que se acrescenta o trabalho da Defesa Civil, dos integrantes das diversas instituições policiais, bem como de órgãos como a advocacia pública e defensoria pública. Todos esses servidores, comprometidos com a realização do interesse público e com a dignidade da pessoa humana, evidenciam com o seu trabalho a importância de se outorgar estabilidade como uma garantia instrumental à eficiência administrativa. Muitos certamente exerceriam a mesma atividade sob outro vínculo, mas inúmeros seriam impedidos, antes disso, em razão de decisões arbitrárias, comprometidas por aspectos subjetivos intoleráveis quando se trata de atividades estatais de tamanha relevância. Reitera-se, sempre: estabilidade não é luxo, nem mesmo prêmio para desidioso; estabilidade é condição indispensável à eficiência administrativa e ao adequado exercício das competências públicas.
3. A importância do controle da juridicidade das alocações orçamentárias
As avaliações sobre os investimentos realizados para estruturação do controle ambiental indicam a insuficiência do orçamento destinado ao setor. A liberdade com que são feitas as alocações orçamentárias, sem se entender cabível controle de juridicidade em razão da discricionariedade das escolhas, apenas agrava uma realidade que já se mostra dramática. A esse respeito, adverte-se, mais uma vez:
“ORÇAMENTO – Visão prospectiva:
A prática de subestimativa de receitas nos projetos de leis orçamentárias anuais da União, Estados e Municípios precisa ser devidamente acompanhada no cotidiano público brasileiro. Se há excesso de arrecadação (arrecada-se além do previsto no orçamento inicialmente), não há destino previsto em lei para esses valores; tais receitas podem ser aplicadas e usadas como margem de manobra política adicional, nem sempre comprometida com as necessidades sociais. Esse tipo de prática requer controle dos limites constitucionais, inclusive de natureza principiológica, diante dos aspectos específicos da realidade social e administrativa a que se destinam os recursos.
De fato, as prioridades eleitas para emprego de recursos públicos no orçamento precisam ser fiscalizadas. Desde a elaboração das leis orçamentárias é preciso controlar aspectos já dispostos na Constituição e demais leis (ex: o mínimo que deve ser aplicado em saúde e educação), bem como a razoabilidade de outras escolhas feitas (ex: qual a razoabilidade de construir uma quadra de esporte em um lugar onde o esgoto sanitário corre a céu aberto?).
Assim sendo, cabe o controle da discricionariedade alocativa, questionando-se se há fundamento constitucional e legal para determinada previsão de emprego de receita, se um dado contingenciamento é cabível ou não, se eventual redução de gasto é possível diante da realidade e das normas vigentes, dentre vários outros aspectos.
Trata-se do chamado “controle de juridicidade” a incidir também sobre as questões orçamentárias, principalmente quando há repercussão direta nas políticas públicas (planejamento e execução).”[7]
Também já se advertiu para a necessidade de rever o entendimento de que a escolha, pelo Poder Público, das searas onde empregar recursos do erário é integralmente discricionária, sem possibilidade de controles externos vinculados relativos, inclusive, a princípios e a regras constitucionais:
“ORÇAMENTO – Visão crítica:
A despeito da tendência contemporânea de estabelecer discricionariedade absoluta da execução orçamentária, com garantia do caráter 100% autorizativo do orçamento, é preciso analisar criticamente as consequências de tais entendimentos. É certo que é impossível antever normativamente todas as hipóteses de revisão do orçamento, sendo necessário suplementar rubricas, deixar de realizar determinadas despesas, dentre outras situações. Daí a liberdade que se dá, inclusive por lei, ao executor encarregado de finalidade de promoção legítima dos gastos públicos. Contudo, é necessário que sejam construídos e, em seguida, impostos limites ao desvirtuamento do planejamento orçamentário; isso para evitar que o orçamento discutido e aprovado termine, na prática, sendo minimamente executado, realidade comum.
Os mecanismos mínimos de controle dos processos de aprovação e execução do orçamento ainda são obscuros, desarmônicos entre si e com as necessidades sociais, sendo comum que se tornem objeto de negociação política afastada das exigências mínimas de moralidade: é preciso ampliar o conhecimento técnico sobre aspectos básicos como a metodologia de cálculo das receitas e despesas obrigatórias, sem afastar a coercetividade de ambas em searas fundamentais à sociedade.
Não se ignore que os entes federativos, não raro, empenham menos de 50% do orçamento anual no próprio exercício financeiro, sendo inferior a 10% os valores liquidados e pagos nesse exercício; trata-se de competência que implica controle da inexecução parcial advinda tanto de falhas no planejamento quanto dos atos administrativos de execução do gasto (erros na solicitação da compra, serviço ou obra; licitação; contrato ou convênio; empenho; liquidação e pagamento); em outros casos, tem-se contingenciamento preventivo indevido de despesas.”[8]
É preciso reconhecer que é inadmissível deixar de investir nos recursos necessários a atividades de controle ambiental sem as quais barragens estouram e centenas de pessoas morrem, preferindo realizar propagandas de ações governamentais ou comemorações em datas festivas ou ações outras que à luz da dignidade da pessoa humana e eficiência administrativa não possuem o mesmo “status”. O Direito, que sempre serviu como instrumento de preservação do Poder, torna-se mecanismo de teratologias que têm como resultado homicídios e outros crimes que merecem idêntico rechaçamento social. E é exatamente isso que tragédias como a de Brumadinho denunciam como realidade intolerável, que merece combate por cada um de nós, agentes públicos e cidadãos brasileiros.
4. Conclusões
Diante das ponderações levadas a efeito pode-se afirmar que:
– o quadro de pessoal da agência nacional de mineração (ANM) era insuficiente para o exercício das atribuições de fiscalização e eventual punição ambiental, inclusive no Estado de Minas Gerais onde ocorreu a tragédia de Brumadinho;
– sem servidores em número suficiente, devidamente treinados e com as garantias necessárias ao exercício das suas atribuições (como a estabilidade), o discurso da eficiência se torna retórico e sem qualquer potencial de concretização da efetividade administrativa prevista constitucionalmente;
– é necessário viabilizar o controle das alocações orçamentárias, de modo que competências relevantes como normatização, fiscalização e punição no setor de preservação do meio ambiente sejam realizadas sem que se coloque em risco a sobrevivência de recursos naturais indispensáveis às gerações presente e futuras, nem mesmo centenas de vidas humanas.
[1] SIQUEIRA, Lyssandro Norton. Qual o valor do meio ambiente? Rio de Janeiro: Lumen, 2017, p. 141-143; 148.
[2] Acórdão nº 2.440/2016, Processo nº TC 032.034/2015-6, rel. Ministro José Múcio Monteiro, Pleno do TCU, sem destaque no original.
[3] Relatório disponível em http://www.anm.gov.br/acesso-a-informacao/prestacao-de-contas-1/relatorio-de-gestao-exercicio-2017. Acesso em 31.01.2019. Sem destaque no original.
[4] Post divulgado em 19.12.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.
[5] Post divulgado em 01.09.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.
[6] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Lá vem o “fim da estabilidade”. De novo… Disponível em http://raquelcarvalho.com.br/2018/12/06/la-vem-o-fim-da-estabilidade-de-novo/ Acesso em 31.01.2019. Divulgado no Jornal Estado de Minas de 07.12.2018.
[7] Post divulgado em 14.01.20198 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.
[8] Post divulgado em 07.01.20198 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.