O Museu Histórico Nacional em cinzas: mais um cadáver (TECLA SAP)

Tempo de leitura: 14 minutos

1. O contexto: um desabafo sem Direito

Não liguei a televisão no domingo. Também não abri portais de notícias. A tarefa era assistir minhas próprias aulas para resumir o conteúdo e, assim, disponibilizar ao aluno antes dele se inscrever nos cursos de direito administrativo que serão lançados (com algum atraso) em setembro. Um trabalho chato e necessário, já que as pessoas têm direito de saber o que realmente lhes interessa antes de escolher cada módulo. De vez em quando, como todo mortal viciado, interrompia o trabalho e me rendia às redes sociais. Às 20 horas, vi as primeiras fotos de incêndio. De início, não li as legendas. A imagem já incomodava e eu pensava, infantilmente: não há de ser algo sério… Era. Lógico que era. Bastava enxergar. Na primeira foto que tinha escrito em cima “Museu Nacional” e embaixo “Rio de Janeiro”, petrifiquei. A sensação de “não pode ser”, “não acredito”, “é absurdo demais para estar acontecendo”, que invadiu cada brasileiro com um mínimo de sensibilidade, deu um azedume no estômago. E uma sensação de horror surgiu à medida que compreendi que quase tudo tinha virado cinzas. O Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, localizado na Quinta da Boa Vista, tornou-se o mais recente cadáver dos graves (e até agora insolúveis) problemas do nosso país. Só mesmo Valter Hugo Mãe, esse poeta português que parece entender o Brasil melhor do que nós mesmos, para explicar: “O Brasil está em guerra consigo mesmo.”

É guerra. Se não há décadas, há séculos sendo travada. E as mortes se seguem. Evitáveis, decorrentes de escolhas erradas dos generais que se sucedem sem realmente se importar com aqueles que comandam. Os soldados, a maioria entre subservientes e anestesiados, seguimos na frente de batalha, muitos sem ter noção do terreno em que tentam sobreviver e do quão perdidas já são as suas vidas. Caminhamos em direção à morte com requintes de crueldade, cercados por ela, já imunes diante do odor da podridão. Alguns mergulham na saída fantasiosa do Guido de “A Vida é Bela”, outros engajam na infantaria e, de peito aberto, lançam-se às metralhadoras que lhes são dirigidas e há quem somente caminhe, passo a passo, refém de uma matrix que desconhece. Pensei que, embora não haja uma saída, vale, no mínimo, tentar entender como viemos parar aqui e como aqui permanecemos, por tanto tempo, sem uma luz qualquer no fim do túnel. Prefiro o fim explicado à ignorância da pedra. Talvez a consciência até facilite a resistência. Porque é isso: resta-nos insistir em resistir. Até a morte. E que ela não seja tão violenta como a que presenciamos na noite do último domingo.

2. Prevenção e precaução: o que negamos

No curso “Avançado” de Direito Administrativo, me propus a analisar normas e fazer questionamentos de uma forma aprofundada, longe da superficialidade que a moderna “ausência de tempo” nos impõe. Em um mundo no qual as pessoas não têm mais do que um minuto para entender “tudo” e, de preferência, “em uma imagem que permita decorar”, é quase quixotesco lecionar um curso cujos cincos primeiros módulos correspondem a 40 horas-aula, com direito a análise crítica dos conceitos clássicos, recentes inovações, decisões dos tribunais, obras e artigos doutrinários diferentes. Pois é só por essa escolha arrojada que, na aula 14 (quatorze, é isso mesmo) do módulo 1 (regime jurídico administrativo e princípios) temos uns vinte minutos de prosa sobre dois parâmetros importantíssimos e às vezes ignorados no direito administrativo: prevenção e precaução.

As ideias de prevenção e precaução foram “roubadas” pelo Direito Administrativo do Direito Ambiental. Lá, foi mais fácil entender que, se um dano é certo ou provável, e você não faz nada para o evitar, quando der errado você tem responsabilidade na merda toda (desculpem o linguajar, hoje estou dispensando os freios da elegância social). O objetivo não é deixar que tudo que pode “dar errado” realmente “dê errado” para, então, responsabilizar quem se omitiu. Na verdade, anunciar que cabe a responsabilização é um modo de fazer com que sejam evitados os danos prováveis ou possíveis. Mais ou menos como dizer: “prestenção que isso aqui vai dar ou pode dar errado; evita essa merda, se não você vai se ferrar e terá de responder pela lama toda quando ela surgir”.

A finalidade é, portanto, não deixar que algo ruim, perceptível antes de ocorrer, venha de fato acontecer. Etimologicamente, falar em prevenção é usar um substantivo que vem do verbo prevenir, ou seja, significa ato ou efeito de se antecipar, de chegar antes. Falar em precaução é empregar um substantivo do verbo precaver-se (do latim prae = antes e cavere = tomar cuidado) que também sugere cuidados antecipados, ou seja, uma cautela para que uma atitude ou ação não venha a se concretizar ou resultar em efeitos indesejáveis. No Direito Administrativo há quem diga que essas duas noções são falsos princípios, outros lhe recusam o status de normas implícitas no texto constitucional (deduzidas da eficiência – norma de maior densidade normativa – e induzidas de regras como proteção ao meio ambiente e proteção ao patrimônio histórico, dentre outras), sendo certo que, no Brasil, o ordenamento não consagre prevenção e precaução como princípios expressos, rara é a doutrina que trata dos mesmos e poucas decisões, em regra do STF, referem-se a essas normas como obrigatórias e vinculantes do Poder Público.

Esse desconhecimento, essa falta e tantas negativas evidenciam o que não queremos enxergar: para sobreviver é preciso prevenir, é indispensável se precaver. E isso exige coragem para identificar onde estamos (em geral, no meio da lama de um chiqueiro), definir onde queremos chegar (um espaço mais digno e seguro de existência), planejar o caminho trabalhoso que deverá ser percorrido (não adianta pegar a estrada sem se preparar) e dar cada passo, o mais brevemente possível, com políticas públicas e atos administrativos que nos tirem da lama, por mais que seja difícil e dolorido caminhar. No entanto, a maioria de nós, os governos, as estruturas de controle e quem mais imaginarem preferimos colocar uma viseira e sequer enxergar os problemas. Afinal, se os identificamos, se nominamos os perigos, será preciso tomar atitude: planejamento e ação. Covardemente, fechamos os olhos, nos alienamos, fingimos que a culpa é sempre “do outro”, quem quer que seja ele: o partido político oposto, o “Estado” – essa figura etérea e dantescamente infernal, ou “eles” – os corruptos, os preguiçosos, os incompetentes, os egoístas, os maus.

A primeira providência é, antes de tudo, admitir que prevenção e precaução são princípios que decorrem dos princípios expresso da eficiência e implícito da segurança jurídica. A segunda é entender o significado que a maioria da doutrina e a jurisprudência do STF a eles atribui, a saber: a prevenção obriga que o Poder Público evite danos cuja ocorrência se mostra certa; diante da incerteza, mas da probabilidade de os riscos ocorrerem, a precaução impõe a adoção de medidas antecipatórias capazes de evitar os prejuízos, principalmente se a sua ocorrência implica irreversibilidade grave.

A Carta do Meio Ambiente de 2005 já consagrara, no artigo 5º que, segundo o princípio da precaução, “quando a ocorrência de um dano, apesar de incerto em face do estado de conhecimentos científicos, puder afetar de modo grave e irreversível o meio ambiente, as autoridades públicas providenciarão, nas áreas de suas atribuições, a implementação de procedimentos de avaliação dos riscos e a adoção de medidas adequadas à finalidade de evitar a produção do dano”, decorrendo do artigo 3º que “toda pessoa, nas condições disciplinadas em lei, deve prevenir os prejuízos que eventualmente possa causar ao meio ambiente ou, na omissão, limitar as consequências.”

Essas exigências não se restringem, à obviedade, à competência ambiental; ao contrário, repercutem nas diversas searas de atuação do Estado, sendo que, no tocante às políticas públicas, vinculam desde a sua concepção, planejamento de etapas, execução, até o controle superveniente. Em países como a França, em que o estudo da precaução e prevenção se dá de modo mais aprofundado, autores como Philippe Kourilsky e Geneviève Viney explicitam que o princípio da precaução define a atitude que deve ser observada por toda pessoa que tome decisão concernente a uma atividade de que pode razoavelmente resultar dano grave à saúde ou à segurança das gerações atuais ou futuras, ou para o meio ambiente, incluído aqui o patrimônio cultural.[1]

É preciso acompanhar a evolução do risco, reduzindo-o a um nível aceitável ou, se possível, eliminando-o, e informando às pessoas para adoção de medidas concebidas por tratá-lo. Para tanto, os perigos que possam atingir o meio ambiente, inclusive o patrimônio público cultural, a segurança e a vida das pessoas, devem ser definidos, analisados, analisada sua evolução e graduados. Além disso, é necessário que as consequências de diferentes opções sejam comparadas, uma análise econômica seja efetuada como preparação à decisão, a estrutura de evolução dos riscos seja formatada de modo independente, a decisão tomada seja revisável e a solução reversível e proporcional, seja previsto um programa de pesquisa que procure uma saída para a incerteza e para os riscos, os circuitos de decisão e os dispositivos securitários adotados sejam apropriados, confiáveis e sujeitos a uma análise de qualidade segura, sendo assegurada transparência que permita ao público ser bem informado ou associado.

É tudo isso que, no Brasil, em regra, não reconhecemos como norma principiológica vinculante. Aliás, a maioria sequer tem ciência de qualquer desses aspectos, o que deixa confortáveis governos omissos em fazer um mínimo de gestão de riscos em relação a setores tão relevantes como saúde, proteção do meio ambiente (incluído o patrimônio público cultural), educação e segurança pública. E – pasmem! – no próprio STF já há manifestações a propósito da precaução e da prevenção, de modo a assegurar a sua observância. O ministro Ricardo Lewandowski, ao decidir a ADI 4.066, afirmou que, mesmo se há alguma  dúvida  com  relação  à  lesividade  de uma dada situação,  é  o  caso  de  se  aplicar  o  princípio  da  precaução,  segundo  o  qual,  para  que  haja proteção, serão aplicadas pelos Estados, de acordo com as suas capacidades, medidas preventivas: “Onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis, não será utilizada a falta de certeza científica total como razão para o adiamento de medidas eficazes, em termos de custo” que sejam capazes de evitar os danos.

Hoje, pagamos o preço pelo desconhecimento, pela ignorância de parâmetros já adotados pelo STF e pela aposta geral de que “o pior não vai acontecer”. É hora de botar os pés no chão. Vou dizer algo horrível e óbvio: O pior acontece sim se você não faz nada para evita-lo. As pessoas morrem na porta das UPA’s porque não ocorreu o planejamento adequado, nem a execução mínima dos serviços de saúde; barragens de rejeitos se rompem sem os alarmes soarem para advertir à população que está no caminho da lama e vidas, lares e histórias se perdem para sempre; museus de 200 anos queimam quando, por décadas, todos os governos federais e estaduais foram irresponsavelmente criminosos em não promover a sua restauração;  prédios públicos no centro da maior capital do país também pegam fogo e caem, matando mais gente, em razão da desídia das esferas titular do bem e responsável pela fiscalização da ocupação urbanística local; crianças chegam à vida adulta analfabetas funcionais quando a política educacional é incompetente e ignora os desafios do mundo real; comunidades explodem em confronto do tráfico, a vitimar inocentes, quando ninguém tem coragem de enfrentar a criminalidade dentro e fora do Estado com maturidade, coragem e competência mínima.

Não se trata de incorporar um pessimismo imediatista e apavorado, que seja refém do medo quanto a perigos inexistentes, mas se requer lucidez para enxergar riscos certos ou prováveis e comprometimento em impedir que os perigos se transformem em realidade, sem a ilusão infantil de que “nada de errado vai acontecer simplesmente porque eu não quero”. Se seguirmos com esse nível de imaturidade covarde e de cegueira, seguiremos colhendo nossos cadáveres. E pior: nos colocando todos como vítimas e sem assumir a parte de responsabilidade que nos cabe nesse quinhão de convívio coletivo (chama sociedade, para quem não foi apresentado à ideia e insiste em se manter na bolha egoística de eu-indivíduo-e-somente-os-“meus”).

3. Conclusão

Precisamos reconhecer que cabe a qualquer governante ou gestor público que exerça o poder fazer juízos realistas, os quais meçam e ajustem as políticas públicas às realidades sociais e demandas estruturais do Estado. Não é tolerável que se ignore situação de risco fartamente conhecida, documentada e presente no cotidiano, nem mesmo se admite incompetência no manejo dos instrumentos necessários ao cumprimento das atribuições mínimas do Estado. Em outras palavras: não é lícito ignorar ofícios que informam os riscos de um museu de 200 anos vir abaixo; são intoleráveis décadas de falta de investimento suficiente para preservação de um dos maiores patrimônios históricos do Estado brasileiro; não é razoável firmar um instrumento que permita a restauração em junho e até agosto não ser tomada providência alguma, sem interpretação adequada de exceções da legislação eleitoral; é criminoso não haver água e mecanismos eficientes de combate ao fogo quando a notícia do incêndio chega tempestivamente ao Corpo de Bombeiros. Cada cidadão precisa assumir não fazer parte de um projeto secular de manter o conformismo geral diante de tanta violência e de destruição dos espaços públicos que formam um mínimo de identidade social.

A nós cabe encerrar esse “gap” entre as normas do ordenamento e as omissões e ações públicas ilícitas. É indispensável nominar os institutos, explicar o que deles decorre, reconhecer as ilicitudes e tomar providências de modo diligente e prudente antes que a guerra diária nos traga como vítima mais um cadáver. O de ontem foi o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Não esperemos o próximo.

 

[1] KOURILSKY, Philippe ; VINEY, Geneviève . Le Principe de Précaution. 1ª ed. Paris: Odile Jacob ed., 2000

4 Comentários


  1. Com meu coração ardendo de indignação assisti ao ASSASSINATO DO MUSEU… Ler sua aula-esclarecimento-desabafo me deixa boquiaberta diante da tragédia que escancara a loucura que vivemos sendo governados por pessoas sem competência administrativa para os cargos distribuídos a filiados partidários… muito triste mesmo…

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  2. Prezada doutora,
    estou interessado em mover uma ação penal contra o governo federal pelo incêndio do Museu Nacional. Como devo proceder?
    Atenciosamente,
    Felipe Maurin

    Responder

    1. Olá Felipe, acredito ser necessário, antes de mais nada, aguardar os laudos periciais (será feito um laudo pela autoridade policial e, ainda, outro pela própria Universidade), a fim de que se apurem e identifiquem as condutas específicas, viabilizando o enquadramento no tipo penal adequado. Sobre a persecução criminal de pessoas jurídicas, indico a decisão do STF no RE 548181-PR e análise da doutrina penal sobre a matéria. Por ser um assunto afeto ao Direito Penal, acredito que um especialista na área poderá dar indicações mais pontuais sobre a matéria.
      Meu abraço,

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