Concurso público: importância, execução indireta e artigo 24, XIII da Lei 8.666. Ou… “Como escolher Parasitas”.

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1.A importância do concurso público muito além da obrigatoriedade constitucional

Não só em cumprimento à regra do inciso II do artigo 37 da CR, entende-se que o concurso público consubstancia a melhor forma de recrutamento de agentes. Afinal, trata-se de um espaço aberto à sociedade que viabiliza integração nos quadros do Estado, donde se conclui tratar-se de um instrumento de concretização do princípio democrático. Malgrado a pouca disponibilidade governamental de os realizar contemporaneamente, é certo que concursos admitem a inserção de novos atores sociais que podem ser provenientes da classe média ou das camadas mais pobres da população, o que resulta em mobilidade social pelo critério merecimento. Importante sublinhar que o concurso viabiliza a participação dos cidadãos na expressão da vontade pública, o que torna realidade na própria estrutura do Estado a multiplicidade típica do mundo pós-moderno. Ademais, esse procedimento exclui critérios subjetivos irrelevantes para a Administração e enseja que sejam privilegiados elementos objetivos com base em que o Poder Público selecionará o profissional que de fato é capaz de atender as necessidades estatais. A jurisprudência vem advertindo que “O concurso público é o procedimento administrativo que tem por fim aferir as aptidões pessoais e selecionar os melhores candidatos ao provimento de cargos e funções públicas. Na aferição pessoal o Estado verifica a capacidade intelectual, física e psíquica dos interessados em ocupar funções públicas, e no aspecto seletivo, são escolhidos aqueles que ultrapassam as barreiras opostas no procedimento.” [1] Com isso, reduzem-se os riscos de discriminações ilícitas, dos apadrinhamentos clientelistas que ocorrem através de indicações exclusivamente políticas. Combate-se a cultura do empreguismo e do exercício de cargo como um favor que merece retribuição política. Rompe-se com o risco de alta rotatividade no quadro de pessoal que precisa de continuidade técnica no exercício de atividades permanentes que exigem memória e competência adquirida pelo exercício. Busca-se uma blindagem em face dos chamados “trens da alegria”, ainda comuns na realidade administrativa contemporânea. Evitam-se critérios desproporcionais que significam favores e privilégios de alguns interessados em desfavor de outros candidatos, muitas vezes mais capacitados para o exercício da função pública. Quando se assegura competitividade efetiva em um procedimento idôneo, permite-se que a escolha da Administração se dê conforme o paradigma do mérito, com apuração objetiva do merecimento. Nesse contexto, a igualdade real deixa de ser um discurso teórico e se torna uma norma concretizável no cotidiano jurídico do Estado. É Adilson  Abreu Dallari quem pontua:

“O concurso público somente interessa aos fracos, aos desprotegidos, àqueles que não contam com o amparo dos poderosos capazes de conseguir cargos ou empregos sem maiores esforços. A realização de concursos públicos sempre terá uma forte oposição daqueles que dispõem de meios para prover cargos e funções por outros meios.” [2]

Sob essa perspectiva, o concurso público não apenas densifica, mas concretiza princípios como a moralidade, igualdade, eficiência e impessoalidade, na medida em que instala uma disputa aberta aos interessados que preencham as condições mínimas ao exercício da função estatal. Nessa  competição, o objetivo é afastar pessoas despreparadas e admitir a integração daqueles profissionais que demonstram melhores condições para a atividade administrativa. Para tanto, o Estado avalia o conhecimento dos candidatos e suas aptidões pessoais, de modo a selecionar aqueles que podem melhor exercer as competências públicas.

Nesse contexto, o concurso público surge como o procedimento administrativo que tem por fim aferir as aptidões pessoais e selecionar os melhores candidatos ao provimento de cargos e empregos públicos. Na aferição pessoal, o Estado verifica a capacidade intelectual, física e psíquica de interessados em ocupar funções públicas e no aspecto seletivo são escolhidos aqueles que ultrapassam as barreiras opostas no procedimento, obedecida sempre a ordem de classificação.

Também esse é o entendimento da doutrina ao afirmar que concursos públicos constituem procedimentos administrativos, em larga medida vinculados, que têm por finalidade selecionar, dentre os interessados que se apresentem, e preencham os requisitos legais, os melhores candidatos aos cargos ou empregos a serem providos, assegurados a todos tratamento isonômico, ao que acrescem: “Os concursos públicos são procedimentos porque consubstanciam sucessão itinerária e encadeada de atos, tendendo todos a um resultado final e conclusivo, consoante definição de procedimento formulada por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello.”[3]

“Concurso público é o processo administrativo pelo qual se avalia o merecimento de candidatos à investidura em cargo ou emprego público, considerando-se as suas características e qualidade das funções que lhes são inerentes. É pelo concurso público que se concretiza a igualdade de oportunidades administrativas e a impessoalidade na seleção do servidor, impedindo-se tanto a pessoalidade quanto a imoralidade administrativa.”[4]

“Concurso público é, pois, a competição de provas ou provas e títulos destinada à contratação de servidores e empregados públicos, em igualdade de condições, para preencher os cargos e empregos públicos.

Se não é a melhor, ainda é a mais justa e democrática forma de contratação de pessoal na Administração Pública, na medida em que oferece igualdade de oportunidades e, presume-se, seleciona os melhores candidatos.”[5]

“Sabe-se que o concurso público é um procedimento criado pelo Estado, que visa selecionar dentre os indivíduos que se inscreveram aquele que ultrapassou todas as barreiras impostas pelo certame, tornando-se apto ao cargo que concorrera.”[6]

Não se ignora as recentes críticas à categoria dos servidores públicos integrados por candidatos aprovados em concursos que buscam exatamente selecionar aqueles que evidenciam, nesse primeiro momento, possuir as habilidades necessárias ao funcionamento do Estado. Também se atenta para o desejo constante da gestão superior dos órgãos e entidades alcançarem liberdade para designar aqueles que exercerão competências nas diversas estruturas públicas, sem maiores formalismos seletivos e ausente qualquer estabilidade que outorgue estabilidade e independência técnica. Atualmente, no âmbito federal, resulta dos incisos do artigo 6º do Decreto nº 9.739/2019 a necessidade de um órgão apresentar um mínimo de 14 (quatorze) “informações” ao Ministério da Economia para obtenção junto ao mesmo da autorização de vagas; numa inversão da lógica prevalecente chega a se exigir demonstração de que as atividades que justificam o concurso não podem ser prestadas por terceirizados. Malgrado todo o atual contexto e com a devida vênia, não se vislumbra ao longo dos séculos um meio que seja mais eficiente que o concurso público em viabilizar a escolha de servidores minimamente capazes, com busca constante de seleção objetiva daqueles que detém as habilidades que os cidadãos necessitam encontrar no quadro de pessoal do Estado. A dificuldade em preservar o meio de seleção de pessoal capaz de iniciar a instituição de um corpo técnico e competente é mais um indício de incompreensão quanto ao funcionamento estatal com todas as suas especificidades. Cabe aos doutrinadores evidenciar tais aspectos e insistir no modo de adequadamente se atingir tais finalidades.

 

2. Aspectos procedimentais para realização do concurso: execução direta e indireta pela Administração Pública

É manifesto que o concurso público exige uma série de atos sequenciados que culminem no resultado final que viabilizará a nomeação dos melhores candidatos que se submeteram ao certame. Como ensinava Diogenes Gasparini, “O concurso de ingresso não se perfaz num átimo. Ao contrário, desde sua instauração até sua homologação demanda um certo tempo, durante o qual são realizados, segundo certa seqüência, vários atos e tomadas determinadas decisões, destinados a alcançar um último fim. O concurso não é, pois, um ato, mas um procedimento, ou seja, um conjunto de atos administrativos interligados e realizáveis segundo certa cronologia previamente estabelecida, destinada à obtenção de um só resultado final: a seleção, dentre os vários candidatos, daqueles que melhor possam atender ao interesse público.” [7]

O procedimento do concurso implica fase interna (que acontece no interior dos órgãos públicos competentes) e fase externa (que se inicia com a publicação do edital e culmina com a homologação do resultado final do certame). Um dos principais aspectos da etapa interna é precisamente a opção pela realização do concurso pela própria Administração Pública ou a escolha de uma outra entidade, que se tornará indiretamente responsável pelos atos sequenciados necessários ao procedimento.

A doutrina, no mesmo sentido, vem observando que é na fase interna do procedimento que a Administração decidirá se o concurso público será realizado por seus próprios meios (execução direta) ou por intermédio de outro órgão ou entidade (execução indireta), sendo que nesse último caso, impõe-se a licitação, a não ser quando for caso de dispensa. Na hipótese de escolha pelo modo indireto de execução do concurso, não se retira da Administração Pública o poder de estabelecer condições gerais do certame e as exigências mínimas para o adequado exercício do cargo ou emprego público objeto da lotação.[8]

Também Diogenes Gasparini reconhecia que “Atualmente a Administração Pública interessada na admissão ou contratação de pessoal tem se valido de empresas especializadas na organização e realização de concursos públicos com essa finalidade, como são, entre outras, a Fundação Carlos Chagas e a Fundação CESGRANRIO.” O saudoso professor explicitava que à empresa contratada cabem operações materiais ao bom resultado do certame, quais sejam, participar com a entidade interessada no concurso do planejamento do certame; elaborar em conjunto com a entidade interessada no concurso o edital; divulgar o concurso na mídia conforme exigido pela lei; promover o procedimento das inscrições; convocar os candidatos inscritos para a realização das provas; elaborar, aplicar e corrigir as provas para cada modalidade, respeitado o disposto no edital; receber, apreciar, instruir e decidir sobre os recursos; encaminhar à entidade interessada no certame as listas com os aprovados e classificados segundo as vagas. Conforme seu lúcido magistério, o vínculo entre a Administração e a empresa contratada implica determinados caracteres: “O contrato celebrado é administrativo e para sua formalização exige licitação, embora seja possível, sob certas circunstâncias, a contratação dessa empresa por inexigibilidade desse procedimento, com fulcro no art. 25, II, da lei federal das licitações. Pela prestação desses serviços, a empresa contratada receberá um percentual calculado sobre o montante apurado com as inscrições, quando a contratação é direta, ou seja, sem licitação. Esse percentual pode chegar a 100% desse montante. Outras vezes recebe o valor da proposta, quando contratada mediante procedimento licitatório.”[9]

A jurisprudência vem não só aquiescendo com a possibilidade de realização de concurso público por empresa contratada, como enfrenta a questão da responsabilidade das pessoas envolvidas na espécie: “Embora o INSS seja o ‘titular’ do concurso público, respondendo por ele, em última instância, perante terceiros, toda a execução do certame – aí compreendidas a elaboração das questões de prova, sua correção, a apreciação de recursos, etc. – está a cargo da FUNRIO e toca à instituição responsável pela execução de concurso público ou seleção a retificação de vícios.”[10]

Cumpre reconhecer serem algumas as vantagens que potencialmente podem ser alcançadas com a celebração de contratos administrativos com terceiros que assumam a realização do certame. Tem-se percuciente doutrina sobre a matéria: “Como já visto antes no presente trabalho, malgrado se trate de providência altamente recomendável, a opção por contratar terceiro para a realização do concurso público é da Administração. Diz-se aqui altamente recomendável porque, tirante os concursos públicos destinados ao provimento de poucas vagas e que podem ser conduzidos facilmente de forma direta pela Administração, o desenvolvimento do processo demanda tempo precioso, a ser confiscado do exercício das atribuições já acometidas aos servidores. Ademais, ao não realizar contratação, a Administração se dispõe a instituir Banca Examinadora, que ficará encarregada de todos os atos atinentes à avaliação dos candidatos. É intuitivo até que, estando a Banca Examinadora composta por servidores do próprio ente que receberá os futuros aprovados no concurso público, a possibilidade de surgirem situações que ponham em xeque a imparcialidade muito se aumenta.”[11]

Para que tais os potenciais benefícios com a execução indireta sejam alcançados é imprescindível que haja um planejamento administrativo preliminar que permita sejam fixadas, com correção, as cláusulas a serem observadas pela entidade contratada.

 

3. Contratação direta de instituição sem fins lucrativos para realizar concursos públicos

Embora seja praxe comum, não é raro que se indague sobre a viabilidade de o Poder Público contratar diretamente empresa que realize concursos públicos, tendo em vista a hipótese de licitação dispensável prevista no artigo 24, XIII da Lei Federal nº 8.666/93.

Dentre os casos de licitação dispensável consagrados no referido artigo 24 do atual Estatuto de Licitações, tem-se no inciso XIII: “Art. 24. É dispensável a licitação: (…) XIII – na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos;” (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)

Em se tratando de contratação para realização de concurso público, destaca-se a autorização para contratação direta de instituição brasileira que no regimento ou no estatuto tenha como atribuição pesquisa, ensino ou desenvolvimento institucional, desde que apresente, cumulativamente, dois requisitos: a) ausência de fins lucrativos; b) reputação ético-profissional inquestionável.

A literalidade do dispositivo impede a contratação de pessoa física, limitando o vínculo direto às pessoas jurídicas (qualificáveis como instituição). Empresas com estrutura organizacional voltada para “desenvolvimento institucional”, portanto, enquadram-se na hipótese legal. Elas poderão se constituir sob a forma civil ou administrativa, sendo necessariamente brasileiras para fazerem jus ao benefício legal. Não importa se a personalidade jurídica das mesmas é pública ou privada, visto que o regime jurídico não foi enumerado como requisito condicionante para a inclusão na hipótese de licitação dispensável.

Em relação à ausência de fins lucrativos, o requisito pode ser compreendido nos termos em que prescreve o artigo 12, § 3º, da Lei Federal n. 9.532/97, com a redação dada pela Lei n. 9.718/98: “Art. 12. § 3º. Considera-se entidade sem fins lucrativos a que não apresente superávit em suas contas ou, caso o apresente em determinado exercício, destine referido resultado, integralmente, à manutenção e ao desenvolvimento dos seus objetivos sociais.”

A condição de a entidade ter de apresentar “inquestionável reputação ético-profissional” busca excluir entidades aventureiras que se instituam de modo irresponsável, apenas para obter lucros transitórios junto ao Estado, sem promover do modo adequado a realização do concurso necessário à seleção da melhor mão-de-obra disponível para integrar o quadro de pessoal público. O entendimento é de que todos e quaisquer documentos, públicos (certidões) ou particulares (atestados) que demonstrem que a instituição é detentora de capacidade técnica ou científica (conceituada em seu campo de especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências publicações e outros requisitos relacionados com suas atividades) são hábeis para atender ao quesito licitatório[12]. À obviedade, se evidenciados fatos que comprometam a credibilidade da instituição, é inviável a sua contratação direta.

Nessa linha de raciocínio, confira-se posição doutrinária: “Uma das características que mais chama a atenção neste dispositivo legal é a referência que a instituição contratada não tenha fins lucrativos, mas sim sociais, além da inquestionável exigência de sua reputação ético-profissional, caso contrário não estaria ela apta a contratar com a Administração Pública nem a cumprir os princípios que norteiam seus contratos.”[13]

Embora a lei expressamente não o exija, tem-se entendido necessário buscar uma correlação entre as instituições e o objeto do futuro contrato, voltando-se para ações de pesquisa, ensino e desenvolvimento institucional. No âmbito federal, tem-se a Orientação Normativa nº 14 da AGU, de 01 de abril de 2009: “OS CONTRATOS FIRMADOS COM AS FUNDAÇÕES DE APOIO COM BASE NA DISPENSA DE LICITAÇÃO PREVISTA NO INC. XIII DO ART. 24 DA LEI Nº 8.666, DE 1993, DEVEM ESTAR DIRETAMENTE VINCULADOS A PROJETOS COM DEFINIÇÃO CLARA DO OBJETO E COM PRAZO DETERMINADO, SENDO VEDADAS A SUBCONTRATAÇÃO; A CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS CONTÍNUOS OU DE MANUTENÇÃO; E A CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS DESTINADOS A ATENDER AS NECESSIDADES PERMANENTES DA INSTITUIÇÃO.”

A doutrina também acompanhou a evolução da praxe administrativa na adoção dessa hipótese de contratação direta, aquiescendo com a exigência de relação entre a área de atuação da empresa e o objeto contratado pelo Estado: “Essa hipótese de contratação sem licitação ganhou imensa importância em face do advento da Lei nº 8.958/94, que instituiu nova modalidade de dispensa de licitação para as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica ou tecnológica. Com a advinda da referida lei, o Tribunal de Contas da União veio firmar entendimento no sentido de que as ditas instituições não podem efetuar contratação sem licitação, com base no inciso XIII do art. 24 da Lei nº 8.666/93, para a execução de objeto sem existência de nexo entre este e projetos de pesquisa, ensino e extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico.”[14]

Não foi em outro rumo a posição que se pacificou no Tribunal de Contas da União: “A contratação de instituição sem fins lucrativos, com dispensa de licitação, com fulcro no art. 24, inciso XIII, da Lei n.º 8.666/93, somente é admitida nas hipóteses em que houver nexo efetivo entre o mencionado dispositivo, a natureza da instituição e o objeto contratado, além de comprovada a compatibilidade com os preços de mercado.”

Analisando o assunto ora em discussão, qual seja, a contratação direta pela Administração Pública de empresa que realize concursos públicos para seleção de pessoal, entende-se que as instituições que se dedicam a esse tipo de certame claramente permitem o desenvolvimento da estrutura do Estado. Afinal, uma das formas mais eficientes que se tem de obter bons resultados nas pessoas administrativas é assegurar que seu quadro de pessoal seja integrado por mão-de-obra competente, detentora dos conhecimentos prévios necessários e que tenha demonstrado possuir os recursos necessários ao treinamento que implicará exercício adequado da competência estatal. Diverge-se, com a devida vênia, da ideia restritiva e injustificada segundo a qual a promoção de concurso público nenhuma relação possui com o desenvolvimento institucional do Estado.[15]

Ao contrário e com renovada vênia, entende-se que o concurso público não só é uma das formas que assegura o desenvolvimento institucional das pessoas administrativas como se afirma ser esta a melhor porta de entrada para a realidade da adequada estruturação estatal e aperfeiçoamento das competências públicas. Conforme já se elucidou e os Tribunais vêm assentando, “O concurso público é o procedimento administrativo que tem por fim aferir as aptidões pessoais e selecionar os melhores candidatos ao provimento de cargos e funções públicas. Na aferição pessoal o Estado verifica a capacidade intelectual, física e psíquica dos interessados em ocupar funções públicas, e no aspecto seletivo, são escolhidos aqueles que ultrapassam as barreiras opostas no procedimento.”[16] “A realização de concurso público impõe-se como forma de evitar a prática de condutas que, além de violar o princípio da impessoalidade, violam a própria moralidade administrativa, dando ensejo à condenável prática do nepotismo.”[17]

Não há dúvida que “tem-se o concurso público como ferramenta indispensável para o início da profissionalização”[18], donde resulta clara a sua importância como instrumento de aprimoramento institucional do Estado que, conjugado com outros mecanismos (como a avaliação de desempenho e a promoção na carreira) que irão assegurar o desenvolvimento do mérito potencial, conduz à efetividade administrativa.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Desembargador Federal Carlos Olavo explicitou expressamente em hipótese de contratação direta feita pela Administração Pública de empresa para realizar concurso público: “Vê-se, das informações da autoridade coatora, que a Fundação Getúlio Vargas foi contratada para a realização do certame com fundamento no inciso XIII do art. 24, da Lei 8.666, de 21.06.1993 (dispensa de licitação ‘na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos’). O que se vê, assim, é que o Presidente do Tribunal elegeu uma empresa com larga experiência na atividade e que, inclusive, já realizara o concurso de 1996, para o provimento de idênticos cargos.”[19]

Também o Tribunal de Contas da União já decidiu: “PEDIDO DE REEXAME. CONCURSO PÚBLICO. NATUREZA PÚBLICA DOS RECURSOS PROVENIENTES DE TAXAS DE INSCRIÇÃO. POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO TERCEIRIZADA. PRINCÍPIOS. E CRITÉRIOS A SEREM OBSERVADOS. PROVIMENTO PARCIAL.

  1. A realização de concurso público mediante a utilização da sistemática de “contrato de risco” permite que as taxas de inscrição sejam recolhidas em nome da instituição contratada, sem que se altere a índole do recurso, que permanece pública, mantendo-se intacta a competência deste Tribunal.
  2. É possível a terceirização da execução de concurso público, mediante licitação, via de regra, ou de contratação direta, caso preenchidos os requisitos do art. 24, inciso XIII, da Lei nº 8.666/93.
  3. O concurso deve desenvolver-se com a observância dos princípios da moralidade e da isonomia, resguardando-se a segurança e o sigilo inerentes ao procedimento e assegurando-se critérios que não comprometam a acessibilidade aos cargos, dentre eles o valor da taxa de inscrição.
  4. Ao contratar instituição para a execução de concurso público, deverá ser definida com clareza a forma de remuneração dos serviços, em especial nas situações em que esta ocorrer mediante o recolhimento dos valores relativos às taxas de inscrição dos candidatos.”[20]

“2. É permitida a contratação direta, com base no art. 24, inciso XIII, da Lei 8.666/1993, de instituição para promoção de concurso público, desde que observados os requisitos do mencionado artigo, bem como demonstrado, com critérios objetivos, no plano estratégico do órgão ou em instrumento congênere, a essencialidade do preenchimento do cargo objeto do concurso público para o seu desenvolvimento institucional. (…) VOTO DO RELATOR: (…) Não se trata de intermediação da obtenção de recursos por parte da contratada. Ela simplesmente irá arrecadar o valor das taxas pagas pelos interessados no concurso e que são ordinariamente cobradas na generalidade desse tipo de procedimento, conforme previsto no art. 11 da Lei 8.112/1990. (…) 21. Os Acórdãos 569/2005 e 1.561/2009, ambos do Plenário deste Tribunal, seguem a trilha do cabimento da contratação dessas entidades para a realização de concursos públicos, sem licitação, desde que o gestor demonstre cabalmente a relevância dos profissionais visados para o desenvolvimento institucional do órgão ou entidade interessada. Eis o que diz o sumário do último acórdão citado: ‘É permitida a contratação direta, com base no art. 24, inciso XIII, da Lei n. 8.666/1993, de instituição para promoção de concurso público, desde que observados os requisitos do mencionado artigo, bem como demonstrado, com critérios objetivos, no plano estratégico do órgão ou em instrumento congênere, a essencialidade do preenchimento do cargo objeto do concurso público para o seu desenvolvimento institucional’”[21]

Qualquer dúvida é afastada pela fundamentação do Acórdão nº 3094/2014, do Tribunal de Contas da União: “Converte-se em súmula o entendimento pacificado no âmbito do Tribunal de Contas da União, no sentido de que: ‘É lícita a contratação de serviço de promoção de concurso público por meio de dispensa de licitação, com fulcro no art. 24, inciso XIII, da Lei 8.666/1993, desde que sejam observados todos os requisitos previstos no referido dispositivo e demonstrado o nexo efetivo desse objeto com a natureza da instituição a ser contratada, além de comprovada a compatibilidade com os preços de mercado’.” (Súmula 287 do TCU)

Com fulcro em tais ponderações, tem-se como cabível a contratação direta de instituição que realize concurso público, desde que satisfeitos, em cada caso, todos os requisitos enumerados no artigo 24, XIII da Lei Federal nº 8.666/93, bem como as exigências de autuação e processamento regular nos termos do parágrafo único do artigo 26 do Estatuto licitatório vigente.

 

4. Cautelas finais

Em tempos de crítica indiscriminada ao conjunto dos servidores públicos e de pouco comprometimento com as exigências do regime jurídico administrativo como o concurso público, cumpre aos profissionais e estudiosos refletirem sobre os fundamentos dos institutos, normas que os regem e necessidades que exigem sua preservação.

Alguns órgãos de controle, em especial os que atuam na proteção do patrimônio público, vêm divulgando estudos que colocam à reflexão os mecanismos de combate à fraude, inclusive nas licitações cujo objetivo seja a contratação de empresas para realização de concursos públicos: “Também é possível que a fraude a licitação ocorra em virtude da dispensa na contratação de empresa para realização de concurso público, tendo como fundamento o disposto no inciso XIII do artigo 24 da Lei de Licitações (…) Não raras vezes, órgãos públicos contratam diretamente instituições para a realização de concursos públicos, invocando o desenvolvimento institucional como fundamento.

Porém, não basta que os serviços a serem prestados estejam previstos no artigo 24 da Lei nº 8.666/1993 para justificar a dispensa de licitação. É imprescindível, em razão da particular e expressa previsão legal, a verificação dos requisitos estabelecidos nos artigos 24 e 26 da citada Lei.

Assim, as instituições referidas no inciso XIII do artigo 24 devem consignar nos respectivos regimentos ou estatutos as finalidades a que se dedicam, entre as quais devem constar, para que a dispensa seja lícita, a pesquisa, o ensino, o desenvolvimento institucional ou a recuperação social do preso. Ademais, tais entidades não podem ter fins lucrativos e devem ostentar inquestionável reputação ético-profissional. Deve haver, por fim, correlação lógica entre os objetivos preconizados no inciso XIII, do artigo 24, a natureza da instituição e o objeto do contrato7. Desse modo, a instituição deverá dedicar-se à área objeto do contrato e revelar experiência nela. [7. Súmula no. 150 TCE: A contratação de instituição sem fins lucrativos, com dispensa de licitação, com fulcro no art. 24, inciso XIII, da Lei n.º 8.666/93, somente é admitida nas hipóteses em que houver nexo efetivo entre o mencionado dispositivo, a natureza da instituição e o objeto contratado, além de comprovada a compatibilidade com os preços de mercado.]

Acerca dos requisitos, vale conferir o seguinte trecho do Voto proferido nos autos do TC-006049/026/12, do TCE/SP: ‘Conforme a orientação traçada em sede de recurso ordinário no TC-31187/026/011, a validade da contratação direta pressupõe a presença de diversos requisitos, que devem ser observados cumulativamente: a) o objeto societário da instituição, sempre pessoa jurídica, brasileira e sem fins lucrativos, deverá ser preciso quanto à sua finalidade, abrangendo atividades dedicadas à pesquisa, ao ensino, ao desenvolvimento institucional ou à recuperação de presos; b) o objeto do contrato deverá corresponder a uma dessas especialidades e não se referir a serviços corriqueiramente encontrados no mercado; c) o contrato deverá ter caráter intuitu personae, vedadas, em princípio, a subcontratação e a terceirização, ou seja, a avença meramente instrumental ou de intermediação; d) ser inquestionável a capacitação da contratada para o desempenho da atividade objetivada; e) a reputação ético-profissional da instituição deve referir-se ao objeto pactuado e ser aferida no universo de outras entidades da mesma natureza e fins, no momento da contratação; f) ser comprovada a razoabilidade do preço cotado; e g) se houver mais de uma instituição com semelhante ou igual capacitação e reputação, há que se proceder à licitação, caso não seja possível justificar adequadamente o motivo da preferência por uma delas”. (TC – 576/009/11 – São Roque – Dispensa de licitação com fundamento no inciso XIII, do art. 24 da Lei nº 8666/93.)

Vale destacar, ainda, que imprescindível se apresenta a justificação da dispensa de licitação através de procedimento próprio, sob pena de incidir em crime previsto na própria Lei de Licitações (art. 89).

A propósito, nos termos do artigo 26 da Lei nº 8.666/93, as dispensas previstas nos incisos III e seguintes do artigo 24 devem ser comunicadas, dentro de três dias, à autoridade superior, de cuja ratificação, em igual prazo, depende sua eficácia. Disso decorre que, nos casos enumerados, enquanto o ato que autorizou a dispensa não for ratificado (ou homologado) pela autoridade competente, o contrato não poderá ser celebrado, sob pena de responsabilização do servidor que o fez.

Portanto, no procedimento administrativo de justificação deve constar pesquisa de mercado das instituições organizadoras de concursos públicos, a reputação ético-profissional delas, avaliação de suas competências e experiências, finalidade lucrativa, além dos respectivos orçamentos concernentes ao objeto do contrato”. [22]

A própria importância do concurso público evidenciada já no item 1 demonstra, à exaustão, a razoabilidade e a pertinência dos cuidados procedimentais apontados, cujo objetivo é assegurar a correção da atividade administrativa já no procedimento de escolha da empresa que realizará a seleção dos futuros servidores públicos.

 

[1] Apelação Cível nº 1.0313.09.274012-2/001, rel. Des. Dárcio Lopardi Mendes, TJMG, DJMG de 12.01.2010.

[2]DALLARI, Adilson Abreu. Princípio da Isonomia e Concursos Públicos in Concurso público e constituição. Fabrício Motta (Coordenador). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 88.

[3] CAMMAROSANO, Márcio. Concurso Público. Avaliação de Provas. Vinculação ou Discricionariedade? in Concurso público e constituição. Fabrício Motta (Coordenador). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 171

[4] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 201.

[5] SOUSA, Luís Marcelo Cavalcanti de. Controle judiciário dos concursos públicos. São Paulo: Método, 2007, p. 23.

[6]SILVA JÚNIOR, Arnaldo. Dos Servidores Públicos Municipais. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 43.

[7] GASPARINI, Diogenes. Concurso Público – Imposição Constitucional e Operacionalização in Concurso público e constituição. Fabrício Motta (Coordenador). Belo Horizonte: Fórum, 2007,p. 22-23.

[8] MAIA, Márcio Barbosa e QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. O regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 82-83.

[9] GASPARINI, Diogenes. Concurso Público – Imposição Constitucional e Operacionalização in Concurso público e constituição. Fabrício Motta (Coordenador). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 67.

[10] Agravo de Instrumento nº 2009.04.00.010077-0-RS, rel. Des. Marga Inge Barth Tessler, 4ª Turma do TRF da 4ª Região, D.E. de 15.06.2009.

[11] SOUSA, Alice Ribeiro de. O processo administrativo do concurso público. Disponível em http://ww.diritto.it/docs/31999-o-processo-administrativo-do-concurso-p-blico?page=1. Acesso em 27.01.2014.).

[12] Questão prática. Boletim de Licitações e contratos. São Paulo, NDJ, p. 293, março 2008.

[13] MADEIRA, José Maria Pinheiro e MADEIRA, Jansen Amadeu do Carmo. Dispensa de licitação às entidades sem fins lucrativos. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, Fórum, a. 7, n. 82, p. 63, out. 2008.

[14] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte, Fórum, 2007, p. 438.

[15] TOURINHO, Rita. Da ação civil pública no controle da contratação de empresa para realização de concurso público.

[16] Apelação Cível nº 1.0313.09.274012-2/001, rel. Des. Dárcio Lopardi Mendes, TJMG, DJMG de 12.01.2010.

[17] Agravo de Instrumento nº 2008.04.00.031721-3-RS, rel. Des. Alexandre Gonçalves Lippel, 4ª Turma do TRF da 4ª Região, D.E. de 13.07.2009.

[18] SILVEIRA, Raquel Dias. Profissionalização da função pública. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 113-114.

[19] MS nº 2001.01.00.048755-0/DF, rel. Des. Federal Carlos Olavo, Corte Especial do TRF da 1ª Região, DJU de 06.12.2004, p. 2.

[20] Processo n. 021.959/2006-8, Acórdão 679/2009, rel. Min. José Jorge, Plenário do TCU, Sessão de 08.04.2009.

[21]Acórdão nº 1.339/2010, rel. Min. Augusto Nardes, 1ª Câmara do TCU, DOU de 19.03.2010.

[22] Fraudes em Licitações e Contratos. Volume 1. MPSP: Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e Social – CAO-P. Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Cartilha_Eletronica/fraudesLicitacoes/FraudesLicitacoes.html#cap2_1_2. Acesso em 10.02.2020.

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