Inalterabilidade do juízo discricionário no planejamento público da contratação.

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EMENTA: Se a Administração Pública estabeleceu no instrumento convocatório, com base em escolhas feitas na etapa interna, o parâmetro imposto aos interessados na contratação a ser observado quanto ao modo de prestação do objeto, não há ilegalidade ou fraude possível de ser cometida por quem, como contratado, estava integralmente submetido ao planejamento administrativo, incorporado no edital e no contrato, o atendendo durante a execução do acordo. Impõe-se a observância do princípio constitucional da preservação das condições efetivas da proposta, o princípio da certeza e da segurança da execução das propostas e o princípio constitucional da moralidade administrativa.

A licitação é um procedimento administrativo que antecede a contratação pública e que admite discricionariedade na sua fase interna, com fixação de conteúdo quando da divulgação do instrumento convocatório e celebração do contrato[1]. Destarte, enquanto um órgão público ou entidade administrativa elabora o termo de referência, ele possui discricionariedade para escolher se contratará sob regime de execução indireta de empreitada por preço global ou por preços unitários, definir os itens de que necessita, elaborar a planilha de custos e de formação de preços que, como anexos do edital, detalharão os elementos que influenciam no custo operacional a ser considerado pelas propostas dos licitantes.

Após a publicação do edital, o procedimento licitatório desenvolve-se como atividade vinculada e a liberdade para a Administração alterar as condições da contratação proposta dependem de fundamento que justifique a mudança pretendida. Em outras palavras, a liberdade exercida no momento preparatório e inicial da licitação, após a publicação do edital, não mais poderá ser invocada. Isso porque a própria entidade administrativa sujeita-se ao princípio da vinculação ao edital, consagrado no artigo 41 da Lei Federal nº 8.666, cuja vigência o STJ reiteradamente assegura:

ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE REGRA PREVISTA NO EDITAL LICITATÓRIO. ART. 41, CAPUT, DA LEI Nº 8.666/93. VIOLAÇÃO. DEVER DE OBSERVÂNCIA DO EDITAL.

(…) II – O art. 41 da Lei nº 8.666/93 determina que: ‘Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.’

III – Supondo que na Lei não existam palavras inúteis, ou destituídas de significação deontológica, verifica-se que o legislador impôs, com apoio no Princípio da Legalidade, a interpretação restritiva do preceito, de modo a resguardar a atuação do Administrador Público, posto que este atua como gestor da res publica. Outra não seria a necessidade do vocábulo “estritamente” no aludido preceito infraconstitucional.

IV – ‘Ao submeter a Administração ao princípio da vinculação ao ato convocatório, a Lei nº 8.666 impõe o dever de exaustão da discricionariedade por ocasião de sua elaboração. Não teria cabimento determinar a estrita vinculação ao edital e, simultaneamente, autorizar a atribuição de competência discricionária para a Comissão indicar, por ocasião do julgamento de alguma das fases, os critérios de julgamento. Todos os critérios e todas as exigências deverão constar, de modo expresso e exaustivo, no corpo do edital.’ (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Editora Dialética, 9ª Edição, pág. 385)

V – Em resumo: o Poder Discricionário da Administração esgota-se com a elaboração do Edital de Licitação. A partir daí, nos termos do vocábulo constante da própria Lei, a Administração Pública vincula-se “estritamente” a ele. VI – Recurso Especial provido. [2]

Aplicando-se a vinculação ao instrumento convocatório em cada caso, a obrigar tanto o Poder Público como a empresa contratada ao fim do procedimento, tem-se que as condições de elaboração da proposta foram delineadas pelo Estado contratante. Com efeito, no edital a Administração Pública obrigou aos interessados na contratação apresentar sua proposta em determinadas condições, devidamente acompanhada de certos documentos. Isso porque foi ela quem planejou desde a metodologia para cálculo dos custos até as características mais basilares dos serviços, bens ou obras que devem ocorrer, determinando uma fórmula a ser observada pelos licitantes, o que evidencia sua responsabilidade na espécie.

É conclusão lógica a de que, se foi a Administração Pública quem estabeleceu no edital o parâmetro imposto aos interessados na contratação a ser observado quanto ao modo de prestação do objeto, inclusive as regras pertinentes ao modo de atuar, entregar bens ou fazer obras, não há vício, erro ou fraude possível de ser cometida por quem, como contratado, está integralmente submetido ao planejamento administrativo.

Também a doutrina brasileira, com fulcro nos ensinamentos clássicos de direito comparado, ao analisar a necessidade de serem preservadas as condições fixadas inicialmente, conclui que “de tudo o quanto se deixou exposto, nasce a necessidade de que seja ele mantido nas mesmas bases ajustadas inicialmente, garantindo-se ao particular o mesmo nível básico de proveito e risco. (“Ainsi, l’équilibre financier, ou l’équation financiere du contrato entre un ensemble de droits de cocontratant et un ensemble de charges de celui-ci, qui on paru, equivalentes, d’ou le nom d’équation, des lors cette equivalence ne peut plus être alterée”, no dizer de Marcel Waline, em Traité de Droit Administratif, 7.ª ed., Paris, Editions Sirey, 1957, p. 342).”[3]

É óbvio que o Poder Público pode alterar o edital e mesmo celebrar aditivos com mudanças nos termos em que permitido na Lei nº 8.666. Mas há limites claros para possibilidade de mudança no juízo discricionário realizado pela Administração e fixado no início do procedimento. Uma mudança sobre aspecto central como – é possível ou não pagar por serviços complementares? como o valor das atividades principais será calculado? quais equipamentos são necessários? – não pode ocorrer gratuitamente, depois de já executado parcialmente, muitas vezes quase integralmente o contrato, com observância das obrigações pactuadas sob uma metodologia legitimamente fixada desde os instrumentos editalício e contratual. Um controle dessa natureza, posterior, sem a alteração da alteração fática que justificou o edital e a contratação, posterior à execução e ao pagamento das obrigações contratuais, afigura-se abusivo.

O Estado tem responsabilidade com a liberdade discricionária que exerce, com as externalidades causadas pelos contratos administrativos, bem como com os interesses afetados por seu comportamento. O Poder Público não pode ser volúvel ou errático, em suas opiniões. A estabilidade de uma escolha de parâmetro contratual é uma qualidade do agir administrativo, imposta pelos princípios constitucionais da boa-fé, da moralidade, da presunção de legalidade e da legitimidade dos atos administrativos e da segurança jurídica. Daí defluem duas realidades que se supõe inatacável: a) a alteração das condições de execução contratual fixadas desde o início do procedimento é exceção sendo a vinculação aos termos do instrumento convocatório a regra; b) qualquer mudança só será possível se assentada em fatos suficientemente comprovados e aptos a embasar o novo juízo, o qual deve observar restrições que variam da confiança legítima à estabilidade dos efeitos já consumados.

Corrobora a correção de tal entendimento o fato de que após formalizada uma avença, devem ser respeitados alguns parâmetros, conforme lição de Floriano de Azevedo Marques Neto: “i) o princípio constitucional da preservação das condições efetivas da proposta (art. 37, XXI, da CF/1988 e art. 54, § 1.º, da Lei 8.666/93); ii) o princípio da certeza e da segurança da execução das propostas (cf. dispositivo constitucional retrocitado), consubstanciado na garantia do equilíbrio econômico-financeiro (art. 58, §§ 1.º e 2.º); e iii) o princípio constitucional da moralidade administrativa, traduzida no caso, pela preservação no nexo de boa-fé que deve perpassar toda contratação administrativa.”[4]

Tais aspectos, que resultam da própria teoria geral do direito administrativo (conceitos de discricionariedade e vinculação, princípios da moralidade e da segurança jurídica) repercutem na licitação desde a sua etapa interna e elaboração do instrumento editalício até o controle a ser exercido posteriormente, seja pela Administração Pública (por meio das auditorias), seja por órgãos externos (como os Tribunais de Contas e o Ministério Público).

[1] “De outra parte, vê-se que, ao elaborar o edital, a Administração Pública, dentro da margem de discricionariedade que lhe é deferida, pode estabelecer as condições que entenda necessárias para assegurar a execução do objeto pretendido.” (TCSP, Processo TC-1366/001/97, rel. Cons. Robson Marinho, DOESP de 16.3.99)

“9. A análise da conveniência e oportunidade de realização de procedimento licitatório é prerrogativa da Administração Pública, cabendo exclusivamente a ela a definição acerca do momento de sua realização.” (REsp 529.102-PR, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJU de 10.04.06, p. 128)

Confira-se, também: Acórdão nº 4.424/2009, Proc. nº 017.324/2006-3, rel. Min. Weder de Oliveira, 1ª Câmara do TCU

[2] REsp 421.946-DF, rel. Min. Francisco Falcão, 1ª Turma do STJ , DJU de 06.03.06, p. 163

[3] LOPES, Mônica Sette. Contrato Administrativo. Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo, vol. 4, p. 811-829, Nov/2012.

[4] MARQUES. Floriano Peixoto de Azevedo. O princípio constitucional da preservação das condições efetivas da proposta e a legislação de estabilização econômica. Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 15/1996, p. 220-231, Abr-Jun 1996; Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, vol. 6, p. 467–482, Maio/2011.

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