Tempo de leitura: 26 minutos
1.A omissão dos estatutos ao tratar do poder disciplinar e das leis que normatizam poder de polícia. A não especificação de todas as condutas infracionais. A falta de correlação direta com as penalidades cabíveis em cada caso. Em discussão a necessidade de tipicidade.
Atentando para o regramento da competência sancionadora nos diplomas vigentes, verifica-se que os Estatutos de Servidores, ao tratar do poder disciplinar, e as leis que normatizam o poder de polícia não enumeram as infrações[1] que podem ser cometidas pelos servidores ou fiscalizados. Omite-se, ainda, em enumerar as sanções cabíveis, além de não relacionar penalidades aos comportamentos infracionais que podem ser cometidos.
Analisando o panorama necessário para a punição dos infratores, tem-se que não se identifica no ordenamento brasileiro descrição legal dos comportamentos ilícitos que podem ser cometidos por potenciais infratoes. Resta à normatização das matérias ocorrer em sede infra legal, por meio de Resoluções editadas para definir o procedimento a ser adotado, as condutas tipificadas como infracionais e as penas cabíveis.
Diante dessa realidade normativa, parte da doutrina invoca o princípio da reserva legal e impugna a aplicação de penalidade a prestadores de serviços ou a usuários de águas, visto quando a legislação federal permanece não descrevendo, especificamente, condutas ensejadoras de punição. A isso acrescem não haver, em lei, uma correlação lógica entre cada conduta infracional e a pena aplicável. A previsão genérica de medidas não seria suficiente, porquanto não corresponde a se fixar uma correlação direta entre condutas transgressoras específicas e respectivas punições.
Para essa primeira corrente, a descrição das infrações leve, média, grave e gravíssima em sede de resolução ou decreto, com previsão de determinadas sanções, não autorizaria a incidência do poder punitivo em face dos infratores. Isso porque o sancionamento restritivo do universo alheio não poderia ser exercido se a cada violação casuisticamente descrita não correspondesse uma pena individualizada, já abstratamente determinada. Seria necessário, portanto, que uma lei que descrevesse exaustivamente todos os comportamentos infracionais possíveis, correlacionando-os com a pena adequada.
Nessa linha de raciocínio e defendendo a reserva legal com tendência à tipicidade, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari escrevem não haver sanção administrativa admissível sem prévia capitulação legal (lei em sentido estrito):
“Em definitivo: sanção administrativa só pode decorrer de lei anterior, e lei em cunho formal (não bastando simples medida provisória, que não passa de lei sob condição, lei a título precário – o que, a toda evidência não se presta a definir infrações e respectivas sanções: a repercussão e a profundidade do enquadramento infracional e da decorrente submissão sancionatória são incompatíveis com um juízo de validade definitiva pendendo da hipotética conversão da medida em lei).”[2]
Em primeiro plano, é mister reconhecer que não se está diante de orientação uníssona, nem mesmo entre os estudiosos do tema:
“A doutrina brasileira não é uniforme, tratando o assunto com diferentes nuances. Alguns autores admitem uma maior liberdade da Administração Pública na fixação de ilícitos e sanções, aceitando, sem maiores restrições, a utilização de conceitos jurídicos indeterminados e abertos, ou a criação de ilícitos através de normas em branco. Outros autores entendem que tal liberdade do Poder Público se apresenta compatível com a ordem jurídica, mas apenas diante das chamadas relações especiais de sujeição.
De outra banda, parcela da doutrina defende a aplicação do princípio da legalidade estrita às sanções administrativas, afirmando a necessidade de a lei estabelecer, com clareza e segurança, a conduta ilícita e os limites das respectivas sanções. Trilham esse caminho, entre outros, Carlos Ari Sundfeld, Marçal Justen Filho, Celso Antônio Bandeira de Mello, Edílson Nobre Jr. e Daniel Ferreira.” [3]
De fato, identifica-se divergência até mesmo quanto à compreensão da reserva legal que, no direito administrativo, não se revestiria do caráter absoluto comum em disciplinas como o direito. A ideia de reserva legal relativa seria suficiente para amparar a previsão do poder fiscalizatório e punitivo abstrato em lei, com especificações em atos regulatórios da própria Administração Pública.
Essa segunda posição é entendimento doutrinário excludente da ideia de tipicidade no Direito Administrativo Sancionador, inclusive o aplicado na esfera disciplinar ou de polícia. A ideia é que no Direito Penal não pode haver crime sem lei anterior que o defina. Daí a regra de que o ilícito penal, sem exceção, é típico[4]. O mesmo não se poderia dizer, contudo, no direito administrativo[5]. Seria lícito uma margem de discricionariedade normativa deixada aos órgãos públicos e às entidades administrativas para explicitar quais condutas transgressoras se mostram possíveis naquela seara, com enumeração de penas sem necessariamente o próprio ato regulatório determinar a sanção a ser aplicada em face de cada comportamento descrito.
Para Juan Alfonso Santamaría Pastor, se a tipicidade consiste na exigência de descrição específica e precisa, pela norma criadora, das infrações e das sanções, das condutas concretas que podem ser sancionadas e o conteúdo material das sanções que podem ser impostas, assim como a correlação entre umas e outras, cumpre observar não ser pacífica a incidência deste princípio:
“A extrema abundância de condutas sancionáveis, levando-se ao extremo a exigência de predeterminação normativa, converteria as leis em catálogos intermináveis de infrações; o que leva o legislador, com frequência, a valer-se de descrições genéricas ou puramente finalistas destas condutas, que são especialmente frequentes nos âmbitos disciplinares e corporativo, nos quais se admite maior flexibilidade (…) Entretanto, a compatibilidade destas técnicas normativas com o princípio da tipicidade não pode definir-se com base em regras gerais, mas apenas em relação a cada caso concreto, em atenção ao grau razoável de certeza que os preceitos proporcionam aos sancionados e ao nível de discricionariedade que outorguem à Administração.”[6]
Em se tratando no exercício do poder de polícia, incumbe trazer à baila a doutrina contemporânea quando explicita: “Essas autarquias se caracterizam pelo elevado grau de especialização que as credenciam a atuar na função normativa, onde elas se destacam. Normalmente os regulamentos expeditos por esses entes abrangem detalhes que seriam custosos para o legislador tradicional. Além disso, presume-se que esses regulamentos contenham uma maior flexibilidade e, consequentemente, uma velocidade maior de atualização.”[7]
Não há, por conseguinte, que se falar em tipicidade (reserva legal absoluta) quando do exercício do poder punitivo em searas como a disciplinar ou de polícia administrativa, que ensejam um número inimagináveis de desconformidades pelos envolvidos. É necessário que a competência fiscalizatória e de sancionar esteja prevista originariamente em lei. Mas cumpre admitir que é impossível pretender que uma lei descreva, pontualmente, todas as infrações que um servidor ou agente privado ou usuário de serviço pode cometer ao agir, fixando, para cada uma delas, a punição individualizada cabível. Deve ser observada a competência normativa já amplamente reconhecida aos órgãos públicos e entidades administrativas, inclusive agências reguladoras[8].
Destarte, entende-se legítimo que a descrição dos comportamentos se faça em sede de resolução, portaria ou decreto. Ademais, o uso de conceitos jurídicos indeterminados na descrição das infrações em sede de infra-legal não viabiliza automático arbítrio, nem o sacrifício de valores essenciais à democracia, devendo se utilizar como limite à atividade hermenêutica as garantias inerentes à procedimentalização como é o caso do dever de motivação. Por fim, ainda que não haja previsão de penalidades (multa, advertência, suspensão, cassação de aposentadoria, demissão, embargo provisório ou definitivo, dentre tantas sanções) com correlação às infrações específicas (inúmeras e inimagináveis em sua completude), pode se mostrar vinculado o comportamento sancionatório possível e nem mesmo a eventual discricionariedade não significa presença automática de vício, consoante se demonstrará a seguir.
Sublinha-se que a ausência de tipicidade absoluta na esfera disciplinar ou de polícia não exclui, por óbvio, o dever de a Administração apurar a existência de infração que justifique punição em processo administrativo, com observância de todas as garantias constitucionais, de modo a excluir qualquer possibilidade de arbítrio ou de subjetivismo.
2.Vinculação ou discricionariedade como característica do sancionamento?
Sabe-se que há vinculação quanto ao dever do Estado apurar a existência, ou não, de infração, observando o regramento fixado a propósito do sancionamento e das alternativas ao mesmo admitidas na ordem jurídica. Afinal, a obrigatoriedade de apurar a ocorrência, ou não, da infração (materialidade e autoria) é aspecto decorrente da função pública imputada à entidade administrativa, sendo, portanto, irrenunciável[9]. Ao tomar ciência de ilícito, o Poder Público é obrigado a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo que atenda ampla defesa e contraditório.
Quanto à natureza das punições aplicáveis, identificam-se correntes diversas:
a) um primeiro entendimento defende que a punição é sempre vinculada, sendo possível definir, mediante interpretação, a única sanção adequada a cada realidade, conforme infração apurada segundo o devido processo legal;
b) em sentido oposto, há quem entenda que sempre haverá discricionariedade possível no sancionamento, tendo em vista a impossibilidade de se falar em tipicidade na descrição normativa da infração, o uso de conceitos jurídicos indeterminados na norma e o fato da legislação não estabelecer correlações automáticas entre infração e punição;
c) há, ainda, entendimento no sentido de que poderá ocorrer discricionariedade ou vinculação no exercício do poder punitivo, sendo necessário analisar as normas de regência ao descreverem a infração com fixação das penalidades cabíveis, bem como examinar os aspectos do comportamento do acusado em cada contexto, de modo a concluir pela existência, ou não, de liberdade para definir a penalidade incidente na espécie.
A propósito da terceira corrente, com a qual se coaduna, cumpre distinguir as seguintes hipóteses:
a) em uma primeira hipótese, a norma descreve a infração de modo objetivo e determina qual a penalidade incidirá diante do comportamento do infrator;
– se a conduta enquadrar-se na conduta infracional (conclusão possível mediante subsunção da realidade à norma), cumpre aplicar a sanção fixada no ordenamento, sem qualquer margem de liberdade; haverá aqui vinculação e não discricionariedade administrativa;
b) em uma segunda hipótese, a legislação prevê os deveres de quem atua no setor e os comportamentos que lhe são vedados com expressões que se enquadram no que a doutrina denomina “conceitos jurídicos indeterminados” e determina a punição cabível diante da infração;
– se no caso concreto, mediante atividade hermenêutica, for possível definir que o comportamento adotado consiste infração aos deveres ou conduta proibida conforme previsão normativa, incidirá a sanção prevista no ordenamento, sem que possa falar em discricionariedade administrativa;
– se no caso concreto, houver margem de liberdade na definição da conduta como infracional mesmo após a interpretação do conceito jurídico indeterminado à luz dos princípios, das regras legais e das peculiaridades da realidade apurada no processo administrativo sancionatório, é cabível falar-se em discricionariedade, ausente necessária vinculação administrativa quanto à punição;
c) em uma terceira hipótese, independente da forma como é descrita a infração (de modo exaustivo ou com emprego de conceitos jurídicos indeterminados), não há correlação direta entre um comportamento infracional e a penalidade a ser aplicada;
– se no caso concreto, restar evidente pelos elementos colacionados qual a sanção adequada (ex: infração gravíssima a ensejar embargo definitivo), não há que se falar em discricionariedade administrativa, impondo-se aplicar a penalidade que corresponde ao sancionamento adequado em face da gravidade do comportamento, das consequências dele decorrentes, da eventual reincidência e dos demais aspectos (vinculação);
– se no caso concreto, embora se interprete todo o contexto fático, ainda remanesce um margem de liberdade para a fixação da sanção adequada (ex: valor da multa, embargo provisório sem definição do número de dias), cumpre reconhecer haver discricionariedade na punição a ser aplicada ao transgressor.
É preciso certa cautela com o entendimento que ganha força na jurisprudência no sentido de não haver discricionariedade no ato administrativo que sanciona qualquer infrator, concluindo-se ser integral o controle judicial. Embora seja certo que a incidência de princípios como os da proporcionalidade, razoabilidade e culpabilidade, aplicáveis ao regime jurídico da polícia administrativa, reduzam a discricionariedade no ato administrativo que penaliza um transgressor, não se entende que, de modo automático, isso signifique supressão apriorística de qualquer margem de discrição.
Entende-se incabível negar que pode haver alguma margem de discricionariedade na aplicação da sanção, tendo em vista cada caso concreto e os limites da norma regulatória incidente na espécie[10]. À obviedade, isto não afasta a obrigatoriedade de aferir a veracidade da ocorrência da infração e, em caso positivo, o dever de aplicar a sanção adequada.
Discorda-se, assim, de entendimentos jurisprudenciais isolados no sentido de que os atos punitivos de polícia administrativa sempre são vinculados e nunca discricionários, independente da descrição normativa e realidade infracional. Com a devida vênia, a conclusão a propósito da discricionariedade ou vinculação do ato sancionatório de polícia administrativa somente dar-se-á diante das especificidades do caso concreto.
Nos casos em que há discricionariedade afigura-se mais relevante a motivação da penalidade, de modo a viabilizar que se analise a adequação entre a infração e a pena escolhida, impedindo o arbítrio da entidade reguladora. Orientará a fixação da penalidade a proporcionalidade que tornará inconstitucional qualquer punição desarrazoada.
Afirmar que não se admitem excessos administrativos não é o mesmo de afirmar a total impossibilidade de discricionariedade quando do sancionamento do infrator. Ampliar o controle judicial além dos aspectos formais do procedimento administrativo não equivale a torná-lo ilimitado, com a devida vênia dos entendimentos contrários.
Esses são os parâmetros que se entende adequados para interpretar as normas impostas para o exercício de competência sancionatória ao descrever as infrações (sejam elas leves, médias, graves ou gravíssimas) e enumerar as penalidades. Não serão outros aqueles a orientar a atividade hermenêutica na hipótese de eventual superveniência de norma legal sobre a matéria ou mesmo no caso de ser editado novo instrumento normativo a operacionalizar a aplicação das penalidades pelas entidades federativas ou da Administração indireta.
[1] “Infração administrativa (…) significa a sanção pelo descumprimento de um comando inserto em uma norma administrativa, sendo a aplicação da referida sanção decidida por uma autoridade pública que detenha competência para tanto, no âmbito do chamado poder de polícia administrativa. O objetivo do Estado, no desempenho da atividade de polícia, é evitar que ‘a fruição das liberdades e dos direitos privados produza lesões a direitos, interesses e bens alheios, públicos ou privados’.” (LEUZINGER, Márcia Dieguez. Responsabilidade administrativa por danos causados ao meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, v. 87, p. 249-269, jul./set. 2017)
[2] FERRAZ, Sérgio. DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 154-155.
Seria imprescindível, à luz desta primeira posição, que as infrações possíveis por um agente fossem exaustivamente enumeradas com o estabelecimento, para cada uma delas, da sanção adequada. Afirma-se que a hipótese de incidência do sancionamento deve estar explícita na lei e não pode a pena adequada ser deixada para livre escolha do administrador. Trata-se de posição já defendida por Marçal Justen Filho na punição dos contratados da Administração Pública. (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8ª ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 623)
Confiram-se, no STJ, as considerações sobre a reserva legal absoluta limitar até mesmo o poder regulatório das agências, com base nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles e Clèmerson Merlin Clève, no julgamento do REsp 1.794.629-SP, rel. Ministro Moura Ribeiro, rel. p/ o acórdão Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma do STJ, DJe 10/03/2020.
[3] GUEDES, Demian. O Estado Democrático de Direito e os seus castigos: uma reavaliação do ato sancionador. in MEDAUAR, Odete et al. Os caminhos do ato administrativo. Organizadores Odete Medauar e Vitor Rhein Shirato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 290.
Na mesma linha de raciocínio, escreve Sirlene Nunes Arêdes: “A doutrina atual do Direito Administrativo diverge quanto à exigência de tipicidade para a imposição das sanções administrativas e, mesmo entre os autores que entendem imprescindível a tipicidade, não há unanimidade quanto à necessidade de que seja imposta por lei formal.” (ARÊDES, Sirlene Nunes. Âmbito penal de aplicação do direito penal e do direito administrativo sancionador. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 129/, p. 435-477, mar. 2017)
[4] COSTA, José Armando da. Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 207.
[5] A diferenciação entre o direito administrativo sancionador e o direito penal tem sido analisada pela doutrina moderna: “Enquanto no direito penal predominam os tipos fechados, no direito administrativo são mais freqüentes os tipos abertos. A prova da volição ou do elemento subjetivo é diferente no direito penal, que dá ênfase maior ao dolo ou ao dolo eventual, sendo os ilícitos de negligência, que envolvem culpa, uma minoria. Já no direito administrativo sancionador fala-se quase sempre em culpa ou, no máximo, em culpa grave como requisito necessário para a punição. No direito administrativo sancionador, de um modo geral, constata-se uma tendência à criação de tipos que reflitam ilícitos de mera conduta ou de perigo e que não exijam uma prova tão completa como nos ilícitos de resultado. Tais ilícitos têm uma apuração muito mais simplificada e admitem até ritos sumários de apuração, sendo, em princípio, mais adequados para garantir, por exemplo, a higidez do sistema financeiro do que os ilícitos de resultado, que demandam uma apuração mais lenta e custosa. Assim, em vista do princípio da eficiência administrativa, é possível justificar uma reorientação dos tipos infracionais administrativos, no sentido de uma simplificação.” (CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Aplicação do direito administrativo sancionador nos julgados do CRSFN. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 30, p.327-333, out-dez/2005)
[6] SANTAMARIA PASTOR, Juan Alfonso. Princípios de derecho administrativo general. Madrid: Iustel, v.2.p. 388-389.
Confira-se, também: FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 153-156
O STJ tem considerado legítimos atos regulamentares que indicam condutas e estabelecem limites máximo e mínimos para as penalidades administrativas: “não há falar em ofensa aos princípios da legalidade estrita e da tipicidade tributária, pois, em face da grande diversidade de atividades empresariais, seria praticamente impossível ao legislador alcançar as inúmeras hipóteses fáticas aptas a indicar todos os respectivos graus de risco, não constituindo ofensa à lei o fato de que esse critério fique a cargo do Executivo. (REsp nº 723.822-SP, rel. Min. Denise Arruda, 1ª Turma do STJ, DJU de 11.05.06, p. 157)
[7] BOTELHO, Eduardo R. A competência legislativa para sustar atos do Executivo. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 117/2020, p. 13-40, jan-fev/2020.
No mesmo sentido: “O poder normativo das Agências Reguladoras não se afigura inconstitucional, visto que, por meio de uma interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais, ver-se-á que há expressa menção ao poder normativo atribuído ao Poder Executivo como um todo e não apenas ao Presidente da República (art. 49, V, da CF (LGL\1988\3)), o que torna dispensável qualquer ato de delegação do Presidente da República, para que as Agências Reguladoras possam exercer mencionado poder, tampouco delegação do Poder Legislativo. Além disso, o poder normativo atribuído às Agências Reguladoras constitui o mero exercício de função atípica por tais órgãos pertencentes à Administração Púbica indireta, que está expressamente previsto no art. 174 da CF (LGL\1988\3) e o qual não afronta a Teoria da Tripartição de Poderes.” (MENDES, Emerson Soares. O poder normativo da Comissão de Valores Mobiliários: fundamentos e limites enquanto agência reguladora, Revista de Direito Empresaria, v. 11, p. 225-254, set-out/2015)
E ainda: “Nesse contexto, em razão da impossibilidade do Executivo atuar com a rapidez e especialidade que é inerente às agências reguladoras, Carlos Ari Vieira Sundfeld (2006, p. 27) afirma que o poder normativo das mesmas decorre de um “aprofundamento da atuação normativa do Estado”. Além do mais, as agências, na expedição de atos normativos, conseguem superar obstáculos quase intransponíveis no âmbito do Congresso Nacional, como a complexidade qualitativa (qualidade das pessoas encarregadas desse processo).” (DUARTE JÚNIOR, Ricardo. As agências reguladoras e o procedimento normativo: uma discussão acerca da democracia participativa, Revista dos Tribunais, v. 913, p.21-55, nov./2011)
Também o STJ: “4. A questão a respeito da validade jurídica dos atos normativos infralegais expedidos pelas Agências Reguladoras não é nova no Superior Tribunal de Justiça, já tendo sido, por diversas vezes, apreciada. 5. No sentido da tese acima apresentada, recente julgamento da Primeira Turma no AgInt no REsp 1.620.459/RS, de relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, DJe 15.2.2019: “Consoante precedentes do STJ, as agências reguladoras foram criadas no intuito de regular, em sentido amplo, os serviços públicos, havendo previsão na legislação ordinária delegando à agência reguladora competência para a edição de normas e regulamentos no seu âmbito de atuação. Dessarte, não há ilegalidade configurada, na espécie, na aplicação da penalidade pela ANTT, que agiu no exercício do seu poder regulamentar/disciplinar, amparado na Lei 10.233/2001 (REsp 1.635.889/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 19/12/2016). Precedentes: REsp 1.569.960/RN, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 19/5/2016; AgRg no REsp 1.371.426/SC, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 24/11/2015”. 6. Na mesma linha, segue precedente da Segunda Turma no AgRg no AREsp 825.776/SC, de relatoria do Ministro Humberto Martins, DJe 13.4.2016: “Não há violação do princípio da legalidade na aplicação de multa previstas em resoluções criadas por agências reguladoras, haja vista que elas foram criadas no intuito de regular, em sentido amplo, os serviços públicos, havendo previsão na legislação ordinária delegando à agência reguladora competência para a edição de normas e regulamentos no seu âmbito de atuação”. 7. Ainda, citam-se as seguintes decisões: REsp 1.685.473, Ministro Napoleão Nunes Mais Filho, DJe 3/10/2019; REsp 1.625.789-RS, Ministro Herman Benjamin, DJe 18.102016. 8. Como se vê, a Corte de origem, ao decidir que houve o extrapolamento do poder regulamentar – “Resolução-ANTT nº 233/2003 não poderia, a pretexto de regulamentar a Lei n° 10.233/01, passar a descrever hipóteses de infrações administrativas e fixar valores das penalidades violando o princípio da reserva legal” -, destoa da jurisprudência pátria, que afirma ser legal a aplicação de multa por infração a obrigação imposta por resolução editada pelas agências reguladoras, entre elas a ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres, tendo em vista a Lei 10.233/2001, que assegura seu exercício de poder normativo. 9. Recurso Especial provido. (REsp 1.807.533-RN, rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe 04/09/2020)
[8] “Vale dizer, a competência normativa das agências justificar-se-ia diante do surgimento de questões eminentemente técnicas e ante a necessidade de soluções mais dinâmicas e ágeis por parte da Administração. Assim, a especialidade, a complexidade e a multiplicidade de questões regulatórias, eminentemente técnicas, exigem que parcela significativa da regulação estatal seja delegada ao ente regulador.” (VALIATI, Thiago Priess. O sistema duplo de regulação no Brasil: a regulação por contrato complementada pela regulação por agência. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, v. 8,, p. 23-58, jan-mar/2019)
Afinal, como já decidiu o STJ sustentando atos regulatórios das agências que operacionalizam tecnicamente institutos sem os quais é inviável o cumprimento dos seus deveres: “O poder regulamentar conferido às agências reguladoras é derivado da necessidade de transferência de vetores de ordem técnica a ser regulamentado. (…) Tendo sido editada a portaria com base no poder regulamentar, amparado pelas Leis 5.991/19773, 6.360/1976 e Lei 9.782/1999. 7. Razão pela qual não há que se falar em ilegalidade da Portaria 802/1998 da SVS/MS.” (REsp nº 1.494.081-RS, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma do STJ, DJe 09.12.2015).
[9] Como leciona o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello: “Outrossim, em face do princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública, típico do regime administrativo, como vimos vendo, a Administração sujeita-se ao dever de continuidade no desempenho de sua ação.” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo do regime jurídico-administrativo e seu valor metodológico. Revista de Direito Administrativo e infraestrutura, v.1, p. 347-374, abr.-jun/2017)
[10] Também Daniel Ferreira entende ser legítimo admitir a possibilidade de outorga legislativa, explícita ou implícita, de certa parcela de discricionariedade à Administração Pública na circunscrição dos ilícitos administrativos, bem como na prévia cominação das respectivas sanções: “Quando a lei, por sua generalidade e abstração, não determina com precisão qual a conduta ou, melhor, a categoria de condutas que desde logo assinala como proibidas, deve o Executivo restringir as possibilidades, nos limites nela previstos, garantindo uma maior segurança jurídica (sobre o que é proibido, obrigatório ou facultado) e, sempre que possível, um tratamento isonômico a todos os administrados.
Ao regulamento compete, portanto, inovar a ordem jurídica, porém jamais em caráter inicial; se o fizer estará eivado de mácula insanável, pela negação de seu caráter a ela subordinado. (…)
Concluindo, onde houver cogente ‘submissão’ do particular à Administração Pública somente poderá lei formal prever as infrações e cominar as respectivas sanções. De modo diverso, nas situações de assunção voluntária (ou não-juridicamente obrigatória) de deveres a lei deverá, ainda que genericamente, estipular os ilícitos, bem como indicar as sanções imponíveis. Nessas duas hipóteses competirá à Administração Pública, ou quem lhe faça as vezes, quando necessário – para fins de minimizar a discricionariedade (da lei decorrente) e garantir tratamento isonômico a todos -, editar regulamentos e demais atos normativos infralegais para fins de sua regular aplicação.
“A inexistência de regulamento, ao revés, não implica, necessariamente, a impossibilidade de legitimamente se impor uma sanção em virtude de o ‘tipo infracional’ se fazer apresentar, e.g., por um conceito jurídico indeterminado (dotado de vagueza e imprecisão). O que urge é verificar, em cada caso concreto, se a conduta apresenta-se como típica, antijurídica e voluntária. Portanto, comprovada a voluntariedade do comportamento, nada obsta à imposição da correspondente direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo.” (FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 98-102)