Tecla SAP – Do juridiquês ao português: Capítulo 2 (Omissão e discricionariedade)

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Omissão ilícita e discricionariedade: a inadmissibilidade da inércia mesmo quando há liberdade de escolha

Conversava com um amigo sobre a ideia de que, em determinadas situações, apesar de haver alternativas entre as quais podemos optar, a ação, em si, é uma necessidade.

O fato de eu poder escolher entre usar o cartão de crédito ou emitir um cheque para pagar algo não significa que eu possa não pagar a conta. O fato de ser lícito ao chefe deferir ou indeferir um pedido de férias não significa que ele possa engavetar o requerimento eternamente. O fato de o Governador do Estado poder escolher entre construir um posto de saúde ou reformar um hospital, ao usar a dotação orçamentária do setor de saúde, não quer dizer que a autoridade possa se omitir. Que construa o posto, reforme o hospital, aumente a remuneração dos médicos ou qualquer outra coisa que seja necessária, mas não deixe passar o exercício financeiro sem empregar o dinheiro, ignorando a competência que lhe é imposta. Não vale confundir LIBERDADE PARA ESCOLHER dentro de determinados limites com LIBERDADE PARA NÃO ESCOLHER (omissão indevida). Em outras palavras: poder escolher entre A ou B é bem diferente de fingir de morto. Por ter alternativas, a criatura não está autorizada a ficar parada para sempre.

Em Direito, estuda-se esta ideia, em geral, quando da análise de dois conceitos: vinculação e discricionariedade. Diz-se que há vinculação quando “todos os pressupostos e elementos de uma conduta já estão prescritos no ordenamento, só restando a quem age uma única alternativa possível”. Se um servidor público completa 75 anos de idade, por exemplo, só resta uma saída: a aposentadoria. A discricionariedade, por sua vez, ocorre quando “há uma margem de liberdade dentro da qual é possível eleger entre duas ou mais alternativas igualmente admitidas para o direito”. Retomando o exemplo da saúde, se o orçamento público afirma que o Governador pode construir um posto ou reformar um hospital, a autoridade pode fazer uma coisa ou outra, verificada a carência de ambas em determinada realidade.

É comum que dois problemas ocorram neste último caso. Primeiro, a tendência daquele que escolhe de ampliar o número de alternativas que possui. Uma coisa é construir um posto ou reformar um hospital, alternativas possíveis. Outra muito diferente é o emprego dos recursos públicos para adquirir um veículo destinado ao uso familiar de um agente político, o que não dá para engolir (e não se admite).

Não podemos ignorar, ainda, ser comum que a turma invoque a discricionariedade como justificativa para o silêncio e a inércia. Não é raro alguém dizer: “Mas é ele (uma autoridade qualquer) quem decide se, como e quando agir!” Pêêêênnn. Resposta errada. Ele não decide “se” vai agir. Em se tratando de atividades administrativas e de governo, ele está sempre obrigado a agir dentro das obrigações que lhe são atribuídas. Vale dizer, o agir é vinculado porque ninguém pode fingir de morto; quem exerce competência pelo Estado não tem como escolha ficar “Deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo”, que me desculpe aí o hino nacional. Sim, é possível que alguma liberdade lhe seja assegurada ao definir o conteúdo e o momento da conduta. Neste ponto poderá haver discricionariedade (liberdade de escolha), ou não. Se houver, que seja respeitada e exercida. Mas, repita-se: liberdade de escolher não é o mesmo de ter liberdade para fazer nada.

Vale certa indignação com a condescendência exagerada em relação às omissões. Isto, seja na consecução e execução das políticas públicas, seja nas questões pessoais. É tão grave comprar um veículo para fins privados com recursos do erário destinados à reforma de um posto de saúde (ação ilícita) quanto deixar um hospital caindo aos pedaços com os recursos orçamentários parados no caixa (omissão ilícita). É tão grave agredir moral ou fisicamente o seu companheiro (ação indevida) como é absurdo deixar de mover uma palha pelo relacionamento (omissão indevida). Sendo caso de agir, a ação é sempre necessária. O melhor é que se entenda isso logo e que sejam encaradas, nominadas e superadas as omissões indevidas. E que a sabedoria conduza a escolha dentre as opções possíveis.

Amém.

 

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