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Ementa: Ato de recebimento de objeto contratado é ato administrativo e se presume legítimo, o que implica considerar verdadeiro o que foi declarado e sua conformidade com o direito. O afastamento das conclusões fáticas e jurídicas dos atos administrativos praticados pelo gestor ou fiscal do contrato requer prova em sentido contrário. A concreção de uma Administração Pública dialógica consubstancia garantia para ambas as partes do contrato administrativo, inclusive na etapa de realização do objeto pactuado.
Em regra, as pessoas contratadas pela Administração Pública apresentam, por escrito, informações sobre o cumprimento das suas obrigações e o agente público competente (gestor/fiscal do contrato) avalia e afirma o atendimento das necessidades públicas, ou não. Só nas hipóteses em que se tem atestado o cumprimento do objeto torna-se possível realizar o pagamento dos valores devidos nos termos do contrato, ressalvadas situações excepcionalíssimas de pagamento antecipado.
Cada relatório (ou documento com nomenclatura diversa) em que há a descrição do objeto contratual realizado, com a assinatura do agente competente a confirmar a regularidade na execução do objeto contratado, é ato administrativo perfeito e que se presume legítimo. Afinal, trata-se de uma manifestação de vontade expressa por um agente que recebeu, dentre seu feixe de atribuições, a competência para atestar a regularidade, ou não, no cumprimento do objeto, nos estritos limites do regime jurídico de direito público e da desconcentração de poderes levada a efeito naquele órgão ou entidade.
Definir tais declarações de vontade como atos administrativos consubstancia aspecto fundamental em razão da natureza jurídica dos mesmos e, principalmente, dos atributos que se lhe reconhecem, com as consequências que daí resultam. Relevante, portanto, compreender o próprio conceito de ato administrativo e os atributos a que faz jus.
A doutrina reconhece que a noção de ato administrativo começou a ter sentido nos países em que se sujeita a Administração ao regime jurídico administrativo, diverso do regime privado. Como esclarece Harmut Maurer, “O ato administrativo é uma criação da doutrina do direito administrativo do século 19. Otto Mayer deu-lhe a sua forma, também hoje ainda determinante no essencial, ao ele o definir como ‘uma decisão da autoridade pertencente à administração, que determina, ante o súdito, no caso concreto, o que para ele deve ser direito’ (…)”.[1] Com efeito, o ato administrativo surge quando, no lugar da vontade pessoal do governante, tem-se decisões que são manifestações subservientes a parâmetros previamente determinados por um universo de regras de direito público.[2]
Trata-se de um importante instrumento do Poder Público e garantia necessária a quem se relaciona com ele, porquanto “por um lado, à efetividade da administração que, com ele, obtém um instrumento de regulação manejável e racional que, sobretudo, para o vencimento dos procedimentos em massa da administração moderna, é idôneo, até, em parte, indispensável (…) serve, por outro lado, aos interesses do cidadão, uma vez que ele determina e delimita inequivocadamente seus direitos e deveres e apresenta um fundamento estável, também no caso da antijuridicidade do ato administrativo não sem mais retirável, para suas outras disposições. Ao todo, o ato administrativo cria relações claras e estáveis entre estado e cidadão e tem, com isso, seu fundamento justificador no princípio da certeza jurídica.”[3]
A vontade da Administração expressa-se, portanto, por um comportamento cujas fronteiras encontram-se balizadas no ordenamento e isso surge como garantia para o Estado e para quem com ele se relaciona.
Em se tratando de gestão e fiscalização de contratos administrativos, tem-se declarações de vontade de agentes públicos que devem se referir à regularidade, ou não, do comportamento do contratado, sendo os atos praticados vinculantes de ambas as partes, servindo como garantia para a entidade pública e para o contratado, com produção de efeitos na realidade administrativa.
Observe-se que os gestores e fiscais contratuais recebem como atribuição o dever de acompanhar e verificar a correção dos serviços, obras ou bens contratados, recebendo-os nos termos em que avençado, sendo de se reconhecer a simultaneidade temporal da avaliação com o cumprimento contratual. Em termos jurídicos, esses agentes encarnam a capacidade institucional da entidade administrativa ou do órgão público para avaliar o objeto contratado. Após a sua prestação, cabe identificar alguma falha, intercorrência ou necessidade de correção, que embase as consequências jurídicas correspondentes, inclusive, se for o caso, a “glosa” a impedir o pagamento. Quando verificada faticamente a correção do cumprimento contratual e praticado o ato administrativo correspondente de recebimento do objeto, é consequência lógica a necessidade de se observar o conteúdo da manifestação feita, com deferência ao juízo realizado pelo agente competente, encarregado de exercer tal atribuição. Nenhum juízo superveniente pode ser levado a efeito sem lastro probatório contrário, seja proveniente de um órgão externo (como o Judiciário) ou de um órgão interno (como os órgãos de controle como a CGU ou equipes de auditoria).
Em outras palavras: Se um ato administrativo é praticado por um servidor competente que informa determinada realidade como base do conteúdo proclamado, somente é cabível rever o mencionado ato se provada alguma inveracidade no motivo ou demonstrado um vício insanável. O simples fato do passar do tempo não autoriza a revisão do juízo técnico feito anteriormente, sendo necessária prova suficiente de elemento que justifique manifestação em sentido contrário. Isso é uma garantia fundamental para a Administração Pública e para quem com ela se relaciona, decorrente da própria teoria geral dos atos administrativos. Não é possível, sem prova de fatos aptos a desconstituir atos administrativos praticados anteriormente, desconsiderar as circunstâncias que foram atestadas por servidores competentes, sob pena de flagrante arbítrio.
A doutrina contemporânea tem atentado para a importância de serem evitados abusos, visto ser comum que juízos técnicos e estáveis exarados por atos administrativos praticados há algum tempo na gestão e fiscalização contratual sejam substituídos por induções feitas posteriormente, sem amparo sólido, faltando às razões invocadas, por vezes, até mesmo logicidade de raciocínio.
Não sem razão parte da doutrina passou a criticar o ato administrativo como instrumento tradicional de atividade administrativa em virtude de, em algumas realidades, ter-se essa manifestação como expressão do autoritarismo estatal. Referem-se os doutrinadores ao “ato administrativo autista” que se torna manifestação do poder autoritário; faz-se no âmbito interno do sistema jurídico: (i) interpretar ordem jurídica composta por comandos legais dúcteis e abertos, retirando dela autorização para agir; (ii) interpretar os fatos, selecionando-os e avaliando-os retirando deles o suporte fático justificador do ato; (iii) identificar qual o interesse público a ser consagrado; (iv) eleger a espécie, a forma, e a intensidade do ato a adotar; e (v) cuidar de dar eficácia ao ato praticado. Tudo isso se faz sem comunicação com os interesses dos administrados e sem preocupação com os impactos da prática nos sistemas econômico, social e cultural.[4]
Embora não se aquiesça com a integralidade das ponderações citadas “in retro”, adverte-se ser intolerável que fatos sejam analisados com superficialidade após o cumprimento de obrigações perante a Administração, sem uma coleta de dados feita de modo detalhado, com o cuidado devido no levantamento da prova pertinente ao ponto relevante em se tratando de acordo: ocorreu o cumprimento do que as partes pactuaram? Devem ser consideradas regras contratuais previstas no instrumento firmado com base no edital, promovendo-se uma investigação técnica imparcial e cuidadosa especificamente sobre a efetiva execução do objeto avençado.
Outrossim, exige-se do ato administrativo contemporaneamente, inclusive dos atos de gestão, fiscalização e controle dos contratos administrativos que se considere que “o particular está defronte da administração não como súdito, mas como cidadão”, devendo assegurar “direitos de participação do cidadão no procedimento administrativo e por proteção jurídica efetiva.”[5] Especialmente quando se trata de situações em que a Administração pretenda, sem ir ao Judiciário, autoexecutoriamente, suspender pagamentos, rescindir vínculo, identificar débitos e aplicar sanções, em flagrante constrição do universo jurídico da pessoa contratada, é preciso ensejar participação e proteção jurídica minimamente eficaz.
A indispensabilidade da participação daquele que se relaciona com o Estado, de modo a ensejar que traga elementos relevantes, resulta do fato de os processos decisórios na Administração Pública não são involuntários: “São sim, expressão de uma vontade não subjetiva, mas finalística, objetiva, fruto do convívio no âmago do Estado de diferentes posições e concepções, de diferentes interesses, enfim, que convergem, por meio dos processos decisórios regulados para a realização concreta dos objetivos sociais colimados, para a efetivação do chamado interesse público.” [6] Para se ter um mínimo de impessoalidade e de segurança jurídica na decisão estatal, é preciso admitir a manifestação prévia de quem pode ser afetado pelo pronunciamento público.
Vale lembrar que os atos administrativos regem-se pelo regime jurídico de direito público (prerrogativas e restrições incomuns no direito privado), sendo seus atributos prerrogativas previstas como forma de proteção dos interesses sociais que se colocam em posição de supremacia em face dos interesses particulares. Essas prerrogativas alinham-se com a necessidade de proteção aos direitos fundamentais como o de participação, bem como concreção de princípios como o da verdade material e, segundo parcela da doutrina, o da presunção de inocência.[7]
Dentre os atributos dos atos administrativos, destaca-se a chamada “presunção de legitimidade” ou “presunção de juridicidade”, definida como a qualidade, que reveste os atos administrativos, de se presumirem verdadeiros e conformes ao direito, até prova em contrário. Daí se dizer que milita em favor dos atos administrativos uma presunção “juris tantum” de legitimidade, com imediata “operatividade” e transferência do ônus da prova de invalidade do ato administrativo para quem a invoca.
Quando se afirma que os atos administrativos devem ser vistos como legítimos até prova em contrário, trata-se de uma premissa que vincula aqueles que se relacionam com a Administração Pública, quem exerce a função de controle (interno ou externo) e, também, os próprios órgãos e entidades administrativas.
Assim sendo, é preciso considerar que os atos de conferência quanto ao cumprimento das obrigações pelo contratado da Administração Pública presumem-se verdadeiros e somente prova em sentido contrário permitiria o afastamento de tal conclusão. Em outras palavras: se não há evidência contrária, a presunção de veracidade não pode ser afastada.
Lembram Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara que a presunção de legitimidade se impõe mesmo quando ocorre contestação à sua validade. “Deveras, a mera impugnação não será suficiente para afastar a necessidade de que o interesse público seja atendido de modo eficiente.”[8] À obviedade, trata-se de uma premissa que vale para quem se relaciona com o Estado do setor privado e para os próprios órgãos de controle que atuem posteriormente à atividade administrativa originária. Não cabe impugnação abstrata, ignorando a sua presunção de veracidade e legalidade dos atos administrativos prévios.
A doutrina clássica do direito administrativo já apontava como consequência da presunção de veracidade a inversão do ônus da prova.[9] Assim, aquele que impugnar uma determinada manifestação administrativa tem o dever de comprovar as razões pela qual aduz o seu inconformismo. Não há qualquer dúvida razoável quanto à imposição dessa obrigação no tocante aos atos positivos ou negativos de fiscalização ou de gestão contratual.
A doutrina moderna do direito administrativo esclarece que sequer se trata de “inversão do ônus da prova”, mas de exigir que qualquer ato do Estado tenha lastro fático, subserviente à verdade material, motivo porque quaisquer atos concretos requerem prova das circunstâncias que lhes sirvam de substrato. Sendo assim, um ato subsequente apenas pode afirmar a ilegalidade dos atos administrativos prévios se colacionar evidência dos vícios originários, sob pena da presunção de veracidade e a ausência de prova de ilicitude exigirem a manutenção dos atos administrativos praticados previamente em consonância com o princípio da realidade.
Ao tratar da matéria, Eduardo Tognetti vale-se da lição dos professores Irene Patrícia Nohara e Thiago Marrara no sentido de que nem mesmo há de se falar em inversão do ônus da prova, mas sim no mero dever de apresentação dos documentos da Administração, o que se coaduna com a exigência de verdade material, também lembrada pelo mestre José dos Santos Carvalho Filho.[10]
A jurisprudência dos Tribunais Superiores fixa que “Os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade”[11], devendo-se observar a força probatória de documentos públicos declaratórios e informativos, “por se tratarem de verdadeiros atos administrativos enunciativos que, por isso, gozam do atributo de presunção de legitimidade”[12], prevalecendo até prova em contrário[13], com ônus da prova de quem impugna seu conteúdo[14]. Mais uma vez se insiste: tal regime decorrente da presunção de veracidade e legalidade como atributo do ato administrativo não vincula só pessoas privadas que se relacionam com o Estado, mas quem quer que atue posteriormente. Destarte, só podem ser afastados juízos técnicos iniciais do órgão ou entidade administrativa competente, se se lograr produzir prova em sentido contrário. Caso contrário, o que se tem é mero arbítrio, visto que o ato subsequente surge destituído de motivo capaz de o amparar.
Nesse contexto, a adequada compreensão da teoria dos atos administrativos praticados na gestão e fiscalização contratual confirma-se como uma garantia também para as partes do contrato administrativo. Está-se diante de um espaço também próprio para a concreção do devido processo legal, de uma Administração Pública dialógica (capaz de assegurar a manifestação prévia de quem poderá ter o seu universo jurídico constritado pela atuação estatal) e da presunção de veracidade como atributo dos atos administrativos.
[1] MAURER, Harmut. Direito Administrativo Geral. 14ª ed. Barueri, SP: Manoele, 2006, p. 205-206, itálico no original.
[2] Nesse sentido, confira-se: MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 163.
[3] MAURER, Harmut. Direito Administrativo Geral, op. cit., p. 205 e 235.
[4] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A superação do ato administrativo autista in Os caminhos do ato administrativo. MEDAUAR, Odete. SCHIRATO Vitor Rhein (Organizadores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 107.
[5] MAURER, Harmut. Direito Administrativo Geral, op. cit., p. 236.
[6] PEREZ, Marcos Augusto. O negócio jurídico administrativo in MEDAUAR, Odete et al. Os caminhos do ato administrativo. Organizadores MEDAUAR, Odete ; SCHIRATO Vitor Rhein. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 269-270.
[7] TOGNETTI, Eduardo. Atributos do Ato Administrativo In Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 344-345; 360-361.
[8] Revista de Interesse Público, v. 16, p. 27 e segs.
[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 138
[10] TOGNETTI, Eduardo. Atributos do Ato Administrativo In Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 349-350.
[11] Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 3.717-RJ, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno do STF, DJe de17.11.2014.
[12] REsp nº 1.298.407-DF, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção do STJ, DJe de 29.05.2012.
[13] Agravo Interno no Agravo Interno na Suspensão de liminar e Sentença nº 2.240-SP, rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial do STJ, DJe de 20.06.2017.
[14] MS nº 15.822-DF, rel. Min. Castro Meira, 1ª Seção do STJ, DJe de 01.02.2013; Agravo Interno no Agravo em REsp nº 1.100.789-SP, rel. Min. Assusete Magalhães, 2ª Turma do STJ, DJe de 15.12.2017; RMS nº 54.280-PE, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe de 09.10.2017.
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