Em questão a revista íntima dos visitantes de presídios: a garantia de dignidade como imperativo estatal

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RESUMO: O STF reconheceu em junho de 2018 estar configurada Repercussão Geral no RE com Agravo nº 959.620-RS, em face das questões constitucionais em discussão quando se trata da revista íntima de visitantes de unidades prisionais. Cumpre ponderar a necessidade de segurança interna nos estabelecimentos com a proteção constitucional à dignidade humana, intimidade e privacidade dos familiares e dos amigos dos presos, de modo a não majorar a estigmatização de que são vítimas, nem inobservar o caráter individual da pena, destacando-se serem as mulheres as principais vítimas de violência em razão do procedimento de revista. É mister estruturar política pública que operacionalize alternativa à revista íntima degradante, mediante investimento que permita a aquisição paulatina de instrumentos de tecnologia como scanners, aparelhos de raio x e similares, adotando-se medidas transitórias que, de forma imediata, compatibilizem a dignidade dos visitantes com a segurança indispensável aos estabelecimentos prisionais.

 

1. Introdução

É desafio antigo discutir, na realidade brasileira do encarceramento, a revista íntima como procedimento realizado em visitantes, nos presídios, para impedir a entrada de objetos como drogas, celulares, armas e explosivos que trazem prejuízo à segurança necessária dentro da unidade, afetando aqueles que exercem as suas funções públicas e também os que foram condenados à restrição de liberdade.

No mês de junho, o Supremo Tribunal Federal, por seu Plenário Virtual e de forma unânime, reconheceu que é questão constitucional e de repercussão geral decidir se a revista íntima de visitantes que ingressam em estabelecimento prisional viola os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à intimidade, honra e imagem do cidadão.[1] Tem-se informado pela Corte Constitucional:

“A discussão se dará no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 959620, de relatoria do ministro Edson Fachin, por meio do qual o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS) questiona decisão do Tribunal de Justiça local (TJ-RS), que absolveu da acusação de tráfico de drogas uma moça que levava 96 gramas de maconha no corpo para entregar ao irmão, preso no Presídio Central de Porto Alegre (RS).

Para o TJ-RS, a prova não deve ser considerada lícita porque foi produzida sem observância às normais constitucionais e legais, em ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana e à proteção ao direito à intimidade, à honra e à imagem das pessoas, já que ‘a revista nas cavidades íntimas ocasiona uma ingerência de alta invasividade’. No Supremo, o Ministério Público gaúcho argumenta que a interpretação do TJ-RS coloca os princípios da dignidade e da intimidade em posição hierarquicamente superior aos princípios da segurança e da ordem pública. Afirma que vedar a realização de exame íntimo que não se mostra agressivo ou abusivo, ainda mais quando não há objeção da pessoa examinada, traduz-se em um ‘verdadeiro salvo-conduto à prática de crimes’.

Em análise no Plenário Virtual, por unanimidade os ministros seguiram o entendimento do ministro Fachin acerca da existência de questão constitucional em debate nos autos e da repercussão geral do tema. Em sua manifestação, o relator esclareceu que o STF não examinará fatos ou provas, mas sim a matéria de direito, que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. ‘Importa observar que a tese está a merecer o crivo desta Corte, por versar sobre princípios constitucionais de manifesta relevância social e jurídica, que transcende os limites subjetivos da causa. Tenho que a matéria é, portanto, de índole constitucional e tem repercussão geral’, afirmou o ministro Fachin. Segundo ele, a temática envolve questão constitucional relevante, a fim de analisar a ocorrência de práticas e regras vexatórias, desumanas ou degradantes.”[2]

Em decisão monocrática anterior, proferida em 03.05.2018, o Ministro Edson Fachin já havia pontuado que definir se a revista íntima para ingresso em estabelecimento prisional ofende, ou não, a dignidade humana e a intimidade “é relevante do ponto de vista social e jurídico. A utilização de práticas vexatórias para controle de ingresso a locais de privação de liberdade expõe debate relevante sobre coibir tratamento desumano e degradante. O cumprimento dos protocolos de segurança e implementação da pena suscitam tema de relevo ao sistema carcerário, aos direitos e deveres da pessoa presa, bem como à observância de princípios e regras essenciais ao Estado brasileiro sob as luzes das normas constitucionais”[3]

Cumpre mencionar, sobre a matéria, decisão monocrática anterior do Ministro Dias Toffoli, ainda em 2010, afirmando não ser possível analisar, sem reexame fático incabível na via estreita do Recurso Extraordinário, a natureza das revistas pessoais nos visitantes dos adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas de internação. Ademais, quanto à possibilidade de, em dadas situações, as pessoas serem submetidas “a uma revista pessoal mais detalhada, sem que isso implique, por si só, em ofensa à sua dignidade humana”, destacou o precedente, da lavra do eminente Ministro Moreira Alves, proferido quando do julgamento, pela Primeira Turma do STF, “do AI nº 220.459/RJ-AgR, assim ementado: ‘Agravo regimental. Revista pessoal em indústrias de roupas íntimas. – Inexistência, no caso, de ofensa aos incisos II, III, LVII e X do art. 5º da Constituição. Agravo a que se nega provimento” (DJ de 29/10/99).’”[4]

Retomando a discussão oito anos depois, de modo a submetê-la ao Pleno do STF, o Ministro Edson Fachin reconheceu estar em questão a aplicação de princípios constitucionais, restando configurada a Repercussão Geral no RE com Agravo nº 959.620-RS, sendo no mesmo sentido a manifestação do Ministro Marco Aurélio e demais membros daquela Corte Suprema. Espera-se, portanto, que seja enfrentada a natureza das revistas pessoais realizadas nas unidades prisionais dos familiares e dos amigos dos reclusos, de modo a viabilizar juízo de futura erradicação do procedimento, mediante política pública adequada que assegure a compatibilização entre os interesses públicos presentes na espécie.

 

2. A dignidade humana como limite à revista pessoal em estabelecimentos prisionais. A importância das visitas aos presos.

Como limite à revista pessoal dos visitantes em estabelecimentos prisionais, a doutrina clássica já invocava a dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, III da Constituição da República, e a proibição de submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante pelo inciso III do artigo 5º da CR que trata dos direitos e garantias fundamentais. Especialmente quanto à dignidade humana, é certo que o referido conceito variou no tempo e no espaço, tendo se convertido em princípio jurídico de estatura constitucional, no caso do Brasil por aceitação como mandamento jurídico extraído do sistema constitucional. A propósito, Luís Roberto Barroso explica haver consequências relevantes no tocante à estruturação normativa do sistema, tendo em vista a dignidade humana ter eficácia direta sobe a realidade proibindo tortura e penas cruéis, ao que se acresce sua finalidade interpretativa condicionante do sentido e alcance das normas jurídicas em geral e a eficácia negativa que evidencia a inconstitucionalidade de qualquer ato que lhe seja contrário. Em virtude do seu valor intrínseco, indica o direito à integridade física proibitivo de comportamentos como o tráfico de pessoas e a tortura, bem como direito à integridade moral ou psíquica. Além do mínimo existencial, o constitucionalista pontua o valor comunitário da dignidade humana a atrai proteção de valores sociais e da solidariedade, devendo esses elementos ser considerados como parâmetro para solução dos casos difíceis.[5]

Com base nos diplomas legais em vigor, cabe invocar os artigos 15 a 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente que fixam o respeito à dignidade da criança e do adolescente, com inviolabilidade da sua integridade física, psíquica e moral; o artigo 10 e seguintes do Estatuto do Idoso que impõem o respeito à integridade do idoso, com idêntica inviolabilidade da sua integridade física, psíquica e moral; bem como a necessidade de respeito às relações sociais, especialmente a família, do preso como condição à sua recuperação, sob pena de a ausência desse apoio ou sua redução a uma presença com ânimo comprometido refletir negativamente até mesmo no comportamento da população carcerária.

Tais aspectos objeto de proteção no ordenamento pátrio encontram equivalência na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que foi ratificada em 1992 pelo Brasil, destacando-se a obrigatoriedade de se respeitar a integridade física, psíquica e moral de toda pessoa (artigo 5º, 1), a inviabilidade da pena aplicada ultrapassar o próprio delinquente (artigo 5º, 3), o respeito à honra e o reconhecimento da dignidade do indivíduo (artigo 11, 1), a proteção da família também pelo Estado como elemento natural e fundamental da sociedade (artigo 17. 1) e medidas de proteção da criança pela família, sociedade e Estado decorrentes da sua condição de menor (artigo 19). Foi ratificada em 1989 a Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e seu Protocolo Facultativo, que entrou em vigor e 2007. As Regras de Bangkok (das Nações Unidas) foram traduzidas para o português em 2016, destacando-se, quanto à revista, a regra 19 exigindo medidas efetivas para assegurar dignidade e respeito às mulheres, ao que se acrescem a regra 20 (“Deverão ser desenvolvidos outros métodos de inspeção, tais como escâneres, para substituir revistas íntimas e revistas corporais invasivas, de modo a evitar os danos psicológicos e possíveis impactos físicos dessas inspeções corporais invasivas”) e a regra 21 (“Funcionários/as da prisão deverão demonstrar competência, profissionalismo e sensibilidade e deverão preservar o respeito e a dignidade ao revistarem crianças na prisão com a mãe ou crianças visitando presas”).

Frise-se que, no Brasil, a Lei Federal nº 13.271, de 15.04.2016, fixou em seu artigo 1º que “As empresas privadas, os órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, ficam proibidos de adotar qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias e de clientes do sexo feminino”, tendo sido vetado o artigo 3º que admitia a revista íntima em ambientes prisionais e sob investigação policial, nos casos previstos em lei, com realização apenas por servidores do sexo feminino. O fundamento do veto pontuou que “a redação do dispositivo possibilitaria interpretação no sentido de ser permitida revista íntima nos estabelecimentos prisionais”, donde se infere, também aqui, o rechaçamento à prática da revista íntima em unidades prisionais, especialmente quando são os visitantes submetidos a tratamento degradante, em flagrante violação de direitos fundamentais.

Cumpre reconhecer que visitas ao preso são essenciais para preservar as suas relações com a sociedade, principalmente em se tratando da sua família, parentes e companheiros, cuja importância é indiscutível para a desejada recuperação do condenado, evitando-se a reincidência comum na realidade brasileira. Deve-se atentar para o artigo 41, X da Lei de Execução Penal segundo o qual é direito do preso a visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados. Além disso, é certo que a visita íntima fortalece as suas relações familiares, devendo ser preservada pelo sistema penitenciário. Nesse sentido, clássica lição da doutrina:

“Fundamental ao regime penitenciário é o princípio de que o preso não deve romper seus contatos com o mundo exterior e que não sejam debilitadas as relações que unem aos familiares e amigos. (…) os laços mantidos principalmente com a família são essencialmente benéficos para o preso, porque o levam a sentir que, mantendo contatos, embora com limitações, com pessoas que se encontram fora do presídio, não foi excluído da comunidade.”[6

 

3. A necessidade de segurança interna nas unidades prisionais e a normatização da revista

Firmada a importância das visitas aos presos, também é preciso reconhecer, por outro lado, a necessidade de cautela no ensejo do contato pessoal viabilizado ao preso com quem estava fora dos limites da unidade, a fim de evitar entrega de mercadorias ilícitas, dinheiro, drogas, armas ou outros produtos inadmitidos naquele estabelecimento. Não se ignora o enraizamento da criminalidade, em algumas situações, de modo a atingir os familiares e o círculo de amizades do preso. Não são raras as realidades em que os (as) companheiros (as) do preso terminam por se contaminar no universo de ilícitos com os quais não possuíam qualquer relação prévia, sujeitando-se, inclusive, a levar vários itens proibidos para aquele que foi condenado à restrição de liberdade. Também se tem amplo conhecimento dos efeitos danosos da presença desse tipo de objeto no ambiente prisional. De fato, em um presídio – local com potencial explosivo de violência que não pode ser desconsiderado – uma arma de baixo potencial letal pode ser o início de uma rebelião com o comprometimento da segurança dos demais presos, dos agentes penitenciários e da própria sociedade, em caso de fuga. Nesse sentido, não só é razoável, como necessário, que se preserve a segurança nos presídios. Trata-se de um dever ao qual o Estado não pode renunciar e que deve desempenhar com a eficiência indispensável e adequada à magnitude dos direitos em questão: vida humana e segurança pública. Tem-se como intolerável qualquer omissão quanto à adoção das formas mais adequadas para que se alcance tais misteres, em face do dever de o Estado buscar, sempre, a melhor administração possível.

Consubstancia procedimento admitido para o escopo de preservar a segurança dentro das unidades prisionais que se faça revista nos visitantes dos reclusos. Há regras específicas no ordenamento de Estados membros que buscam, abstratamente, determinar a necessidade de respeito à dignidade humana. Assim, no Estado de Minas Gerais, a Lei nº 12.492, de 16.04.1997, determina no artigo 1º que “A revista de visitantes, necessária à segurança interna dos estabelecimentos prisionais do Estado, será realizada com respeito à dignidade humana e segundo o disposto nesta Lei”. A regra, segundo o artigo 4º do citado diploma é que o procedimento padronizado de revista não inclui a realização de revista íntima, a qual será efetuada apenas excepcionalmente, dentro dos limites fixados nesta Lei. As condições em que pode ser excepcionalmente realizada a chamada revista íntima estão previstas nos parágrafos do artigo 4º, “in verbis”:

“§ 1º – Considera-se revista íntima toda e qualquer inspeção das cavidades corporais vaginal e anal, das nádegas e dos seios, efetuada visual ou manualmente, com auxílio de instrumento ou objeto, ou de qualquer outra maneira.

  • 2º – A revista íntima será realizada exclusivamente com expressa autorização do Diretor do estabelecimento prisional, baseada em grave suspeita ou em fato objetivo específico que indique que determinado visitante pretende conduzir ou já conduz algum tipo de arma ou droga em cavidade do corpo.
  • 3º – Previamente à realização da revista íntima, o Diretor do estabelecimento fornecerá ao visitante declaração escrita sobre os motivos e fatos objetivos que justifiquem o procedimento.
  • 4º – Quando não houver tempo suficiente para sua expedição prévia, o documento a que se refere o § 3º será fornecido até 24 (vinte e quatro) horas depois da revista íntima, sob pena de sanção administrativa.
  • 5º – A revista íntima será efetuada de forma a garantir a privacidade do visitante, por pessoa do mesmo sexo, com formação na área de saúde.”

Nesse contexto, identificam-se na lei mineira pressupostos subjetivo e objetivo para que a revista íntima possa se realizar. Em primeiro plano, fixa-se a competência autorizativa em favor do Diretor do estabelecimento prisional, sendo essa restrição quanto ao sujeito definição de poder privativo dessa autoridade. Ademais, são dois os pressupostos materiais que, alternativamente presentes, autorizam a revista: ou grave suspeita ou fato objetivo específico que indiquem pretensão ou efetiva condução de arma ou droga em cavidade do corpo. A obrigatoriedade do dispositivo legal obriga tanto os atos normativos subsequentes editados pela Administração Pública quanto as revistas levadas a efeito nos dias de visita nos presídios estaduais.

Considerando a própria norma do ordenamento do Estado de Minas Gerais que enumera pressupostos objetivos como “grave suspeita”, tem-se questionado o uso de conceito jurídico indeterminado que enseja significativa discricionariedade na realidade administrativa. Diante de normas dessa natureza e atentando para o cotidiano dos estabelecimentos penais brasileiros, vale colacionar as lúcidas observações de Carlos Roberto Mariath:

“A escolha para submissão à revista corporal trata-se de verdadeiro exercício de premunição, vez que a imposição ao procedimento, sem qualquer fato ou diligência anterior, baseia-se na possibilidade de ocorrência de evento remoto, como se o responsável pelo procedimento de revista tivesse o condão de prever algo futuro e incerto apena ao olhar para o visitante, presumindo que o mesmo seja portador de materiais, objetos ou substâncias proibidos.

Mister frisar que a pena imposta ao preso não pode dele ultrapassar, atingindo terceiros que estão ali para visitá-lo” [7].

Nesse contexto, tem-se clara a necessidade de reconhecer a importância da segurança nos estabelecimentos prisionais e, simultaneamente e com o mesmo status, evitar revista aleatória que pode se realizar de modo intrusivo e desrespeitoso da privacidade dos visitantes

 

4. Da revista exclusivas nos “visitantes” e a impossibilidade de se presumir como potencial criminoso um familiar ou amigo do preso

Cumpre sublinhar que esse tipo de revista íntima só se faz com os visitantes dos presos e não com profissionais do direito como juízes, advogados ou promotores que acessam a unidade prisional. Se se considera que o exercício de uma profissão relacionada à Ciência do Direito é causa se isenção absoluta quanto aos riscos de segurança no presídio, não é razoável pressupor que um vínculo social ou familiar com um preso justifica presunção absoluta de riscos para a segurança no mesmo presídio. A medida que assim se estruture esconde uma extensão da pena além do condenado, de forma seletiva, sem exigir comprovação prévia de elemento objetivo induvidoso capaz de justificar a sua incidência numa realidade e não em outra. É como se ser advogado, mediante conclusão do bacharelado e inscrição na OAB após aprovação em prova escrita, fosse garantia absoluta de que nenhum ilícito o sujeito pode praticar e, ao contrário, ter um vínculo familiar ou de amizade com um recluso significaria autorização prévia e abstrata de restrição à intimidade em razão do suposto potencial ofensivo à segurança.

A presunção de que familiar ou amigo de um preso é potencial criminoso, o que justificaria procedimentos de constrição diante de pressupostos vagos como “grave suspeita”, configura risco teratológico. Se não se pode ignorar a possibilidade das redes criminosas utilizarem estranhos, familiares e conhecidos para levar objetos ilícitos aos presídios, é inadmissível considerar aprioristicamente os visitantes como inimigos, o que justificaria possível “caça às bruxas” quando do acesso às unidades prisionais, de modo arbitrário (e não discricionário), em modelo com potencial de desumanidade flagrante. Como bem sustenta Zaffaroni:

“Na medida em que se trata um ser humano como algo meramente perigoso e, por conseguinte, necessitado de pura contenção, dele é retirado ou negado o seu caráter de pessoa, ainda que certos direitos (…) lhe sejam reconhecidos. Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a condição de pessoa, mas sim apropria razão em que essa privação de direitos se baseia. Isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente um ente perigoso.” [8]

 

4.1. Da especial violência contra as mulheres, principal contingente de visitantes

O desarrazoado dessa realidade expressa-se até mesmo em se considerando que o maior contingente de visitantes constitui-se predominantemente de mulheres: são as mães, esposas, companheiras, avós e irmãs que se deslocam até as prisões para visitar os condenados, mantendo um mínimo do seu vínculo social, na vida fora dos estabelecimentos. São essas mulheres, que não desistem de amparar os condenados, que podem se sujeitar a humilhação da revista vexatória. E não se ignore que inclusive historicamente são as mulheres que, em regra, sofrem em seus corpos violências dolorosas, as quais não conseguem evitar, quando exercem a atividade de sustentáculo familiar ou institucional. Define-se como violência contra a mulher não só o assédio sexual, a violência racional, mas também a revista íntima, nos termos da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), aprovada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1994 e ratificada pelo Brasil, em 1995. Ter-se institucionalizado um espaço em que violações a essas normas podem ocorrer no próprio Estado é risco que não se coaduna com as exigências mínimas de proteção à dignidade humana.

Em trabalho realizado na cidade de Belo Horizonte, as conselheiras do Conselho Regional de Psicologia Marisa Sanabria e Silvana Pontes Bueno realizaram oficinas com amigos e familiares de pessoas em privação de liberdade, em grupo constituído essencialmente por mulheres, tendo publicado ao final artigo, também apresentado no V Congresso da União Latino-Americana de Psicologia (ULAPSI), em maio de 2014, na Nicarágua, com as seguintes considerações:

“As visitas que estas mulheres realizam na prisão consistem, entre outros procedimentos, de uma revista vexatória que exige o desnudamento das pessoas na frente de terceiros com a exposição das partes íntimas (genitália), chegando, não raras vezes, a ocorrer a penetração do dedo do executor no interior do corpo do visitante.

Entendemos que a violência institucional se faz presente no corpo da mulher onde sempre se instalou a desigualdade, o abuso e o não reconhecimento, a exigência institucional da revista vexatória legaliza e legitima a humilhação, o desrespeito e a violação de corpos desprovidos de cidadania, de dignidade e de direitos, que se submetem a certas penalidades como a única forma de ter acesso às pessoas com as quais têm vínculos afetivos.

A patriarcalidade e arbitrariedade do sistema prisional penalizam não somente aquele que cometeu uma transgressão, senão que maltrata todo seu entorno, e muito mais cruel e duramente quando este é feminino.”[9]

Especialmente sobre o caráter opressivo da revista vexatória, tem-se relatadas expressões como “eu não me conformo com isso de ficar nua na frente dos outros”, “Eu já senti tudo isso aí que você falou, já chorei, já passei por tudo isso aí, por vexame, por tudo”, “A gente chega arrumada, até maquiada, porque a gente pensa que a gente é gente, e depois a gente pelada”, “Esse aqui um banco que a gente fica sentada, a gente nem pode ficar em pé lá porque os agente quase bate na gente, porque não pode ficar em pé nesse corredor. (…) E aqui sou eu pelada, nua. E aqui é uma pessoa dentro da cela, triste”. Trata-se de afirmações que, segundo as autoras, estão claramente representadas no painel construído pelo grupo, revelador das desigualdades sociais e institucionais, a violência de gênero e as arbitrariedades do Estado:

“As verbalizações das mulheres são contundentes, os desenhos mostram corpos sem rosto como forma de simbolizar a ausência de subjetividade, a retirada do sujeito ante uma vivência que se configura como insuportável.

(…) A revista vexatória que os visitantes sofrem deveria adequar-se às normas constitucionais e aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, devendo o Estado munir-se de equipamentos de segurança que garantam dignidade às pessoas. Existe um Projeto de Lei de Iniciativa Popular Contra a Revista Vexatória, da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, de 2010, que regulamenta o procedimento de revista de visitantes nos estabelecimentos prisionais, que precisa ser aprovado.”[10]

Em outro estudo realizado no Presídio de Montes Claros (Minas Gerais), os pós-graduandos de Direito Marcelo Brito, Telma Mendes Vieira de Almeida e Douglas Ferreira de Almeida pontuaram que a família do preso já sofre grande preconceito pelo fato de um membro estar preso, sendo o tratamento, nos dias de visitação, sempre de suspeitos ou indesejáveis:

“Em levantamento realizado no Presídio de Montes Claros/MG, constatou-se que são realizadas cerca de 600 visitas a cada dia dos finais de semana, pelos familiares nesta instituição prisional. Todos são revistados intimamente, sendo uma agente feminina responsável a efetuar as revistas nas mulheres e um agente masculino para as revistas nos homens, estando cada agente em uma sala individual. (…)

Constatou-se assim que, a revista causa constrangimento excessivo aos familiares dos presos, visto que os coloca em situações desagradáveis perante os agentes. Constatou-se mais ainda que muito embora seja o procedimento desagradável, os familiares se submetem a este, devido o desejo de permanecerem próximos aos seus entes para auxílio neste momento de dificuldade.”[11]

Dentre os dados tratados no citado estudo, vale destacar o depoimento da esposa de um presidiário:

“Em questão dos agentes, muitos daqui fazem o seu trabalho, tem outros que não, simplesmente porque somos mulheres de preso eles querem descontar na gente o que eles fizeram de errado. A gente é muito humilhado por causa disso. Não é porque somos mulheres de preso que nós não trabalhamos, que não temos filhos e nem temos família. Mas não, eles acham que pelo fato de sermos mulheres de presos que nos também somos culpados. A gente reconhece quem realmente faz o seu trabalho, mas tem outros que não, principalmente as femininas. Teve casos de algumas falarem nos dias das visitas íntimas “as mulherzinhas já chegaram”. Tipo assim, uma falta de respeito muito grande. Se agente vem aqui pra ter uma vida íntima com o marido, porque ele é meu marido, é porque eu amo, não é porque eu quero vir simplesmente fazer uma relação num lugar como esse. É muito constrangedor. Pelo fato de ser um presídio é família e temos essa sensação de estar em família quando estamos no pátio. Acho que temos que ser respeitados por isso. Eles já estão ali pagando por isso, nós não precisamos pagar pelo que eles fizeram. A primeira vez que eu vim aqui entrei e sai chorando, o impacto é tão forte. Agora passar ali é uma humilhação total, você é humilhada, você treme, você passa um sentimento de fúria tão grande. Pior que se você ficar nervosa eles ainda te perguntam: “Porque você tá nervosa? Porque você tá assim? Você tá devendo alguma? Tá com alguma coisa?”. Todo mundo tem sentimento dentro dele. Toda pessoa tem vergonha de trocar de roupa até na frente de sua mãe, de seu pai que é uma pessoa que te conhece, que cê convive todos dias, agora uma pessoa que você nem conhece, apesar de ser mulher, é muito constrangedor. Hoje já acostumei, porque sou obrigada a aceitar. Porque eu preciso vê-lo, prá dar um apoio, prá fazê-lo crescê-lo. Muitos aqui entram e saem pior é porque não tiveram o apoio da família, porque eles aprendem muito mais aí dentro do que aqui fora. Quem tá lá dentro sabe o nosso sofrimento que é pra tá aqui, e eles vão fazer o possível pra sair de lá melhor”.[12]

 

4.2. O caráter individual da pena e o absurdo da estigmatização familiar

Sobre a inadmissibilidade de se restringir o universo jurídico dos familiares e não apenas a liberdade do preso condenado, Rayssa Pires Amorim Cardoso e Nayara García da Costa insistem no caráter individual da pena (artigo 5º, XLVI da CR) e no princípio da responsabilização pessoal (artigo 5º, XLV da CR):

“Esse princípio visivelmente se faz violado no âmbito dos estabelecimentos prisionais, uma vez que a realização de revistas íntimas sujeita os familiares do recluso a situações vexatórias, momentos de constrangimento que, por equiparação, compartilham a pena da submissão que é imposta ao preso.

Por vezes o tratamento que é dado aos familiares se aproxima ao tratamento que é conferido aos presos. Os familiares compartilham do mesmo estigma conferido ao recluso, uma vez que, no local da visita, se submentem ao cumprimento de normas, sendo limitados, ou mesmo tolhido, seus direitos de liberdade de expressão. Nesse sentido, corrobora o entendimento de Yuri Frederico Dutra (2008) ao afirmar que

‘A estigmatização pela sociedade e o preconceito por alguns agentes prisionais, pelo fato de serem familiares de reclusos e serem consideradas também como criminosas A despersonificação da identidade, representada pela assimilação do linguajar da prisão, pela submissão às regras de vestimentas estabelecidas pela prisão que fazem-nas sentirem menos feminina e pela ausência de liberdade de expressão, por terem que, aceitar as normas abusivas sem reclamações.’

Observa-se que na falta de aparato legal para balizar um procedimento padrão de revista íntima, ao estabelecimento prisional, confere uma discricionariedade para esses estabelecimentos determinar os métodos empregados e os limites, ou, o que parece mais evidente, a falta deles.

A transferência da penalização recebida pelo recluso à sua família ocorre também no meio social. Os parentes do preso sofrem o preconceito nos mais diversos âmbitos da sua vida, quer seja pessoal ou profissional. Os olhares se voltam para essas pessoas com discriminação com se elas próprias tivessem cometido um crime, e mais, tivessem sido condenados por esse crime. Assim,

‘O preconceito que o familiar de recluso sofre fora do muro e dentro da sociedade, punibiliza-o em sua dignidade, pois, sendo pessoas livres, são perseguidas de várias formas, tanto em sua liberdade e direito de trabalhar, como de frequentar certos lugares, como de viver uma vida sem se sentir culpado e ser constantemente punido pela sociedade por um crime que não cometeu’ (DUTRA, 2008).

O fato de ser familiar de um condenado impõe a ele uma marca que gera consequências graves, observadas não só na esfera social, uma vez que compromete as relações afetivas, mas na esfera econômica, visto que o mercado de trabalho se faz retrair para essas pessoas, quando não, fechar. Por vezes, os filhos de recluso sofrem a rotulação de ‘bandidos’, por conta da conduta criminosa dos pais, provocando consequências psíquicas futuras que podem ser determinantes para a formação dessa criança.

As políticas públicas de revista íntima/pessoal, que se configuram como medidas de segurança adotadas pelos estabelecimentos prisionais públicos, são práticas que estimulam a estigmatização social que é conferida aos familiares dos reclusos, uma vez que são tratados como indivíduos suspeitos, que requerem uma abordagem preventiva e vigilância durante a sua permanência no presídio.”[13

 

5. Dos mecanismos de revista, dos seus efeitos e da necessidade de compatibilização com as garantias constitucionais

Diante desses controversos aspectos, discute-se, aqui, se os meios utilizados nos presídios para garantir a segurança mínima são próprios em face dos limites constitucionais incidentes na espécie. Não há dúvida quanto a legitimidade de evitar a entrada de objetos ilícitos nos presídios. Afinal, é certa a necessidade de se proteger a vida e saúde dos presos, daqueles que trabalham nos presídios e da própria sociedade, consoante já se elucidou. A divergência colocada está em como alcançar esses objetivos sem ofensa a direitos fundamentais como a intimidade dos visitantes, protegida pelo artigo 5º, X da Constituição da República. Isso porque não se admite que os familiares e amigos dos presos sejam criminalizados e considerados perigosos pela só existência do vínculo com o condenado. Também não se ignora que em muitas situações, servidores como os agentes penitenciários têm até mesmo suas vidas ameaçadas ao cumprir normas administrativas, ficando receosos e constrangidos diante de providências que lhe são determinadas.

Não são raras previsões de uso, em salas de revista, com o(a) visitante nu(a), de revista manual: no ânus mediante determinação de que se agache três vezes ou mais de frente e costas; se visitante não apresenta condições de realizar o agachamento, há previsão de que deite na maca, em posição ginecológica, para ser realizada a vistoria local, visualmente e com o detector de metais, além de determinação de que a visitante levante os seios para que se realize a vistoria visual. A leitura de tais procedimentos evidencia que a norma administrativa vigente não atenta para a excepcionalidade da revista íntima, não raras vezes sem qualquer menção à necessidade de fato objetivo específico ou de elementos evidenciadores de grave suspeita de objeto ilícito como condições para que se determine o desnudamento do visitante, com exame de ânus, vagina e seios.

Destaque-se que estudos de Departamentos de Psicologia como os realizados pela Professora Cristina Rauter da Universidade Federal Fluminense alertam para os efeitos que perseguem as pessoas constantemente submetidas à revista íntima, comparável à tortura:

“Acrescente-se a isso o já mencionado procedimento da revista íntima, outra situação que pode ser equiparada à tortura – e assim é vivida por quem passa pela experiência. Estou atendendo uma mãe de ex-preso que foi durante anos submetida a esse procedimento e que exibe hoje efeitos psicológicos semelhantes aos dos torturados, de pessoas torturadas na época da ditadura militar.”[14]

Na verdade, a ONU já declarou que nudez e revistas invasivas do corpo constituem violência contra a mulher podendo configurar tortura em função dos seus efeitos.[15] Diversos países do mundo, como Estados Unidos e Colômbia, já baniram esse tipo de medida, afastando qualquer revista que inclua nudez, agachamento ou toque. Isso até mesmo porque medidas invasivas e degradantes dessa natureza geram revolta não só nos presos, mas no seu círculo social, favorecendo o aumento – e não a desejada redução – da criminalidade. Em alguns casos, os presos chegam a requerer que as visitas sejam interrompidas, a fim de evitar que seus familiares passem pelo constrangimento da revista. Isso porque o preso, para ver o seu familiar, fica sujeito a sujeitá-lo a mostrar a genitália em público, o que chega a ser insuportável, excluindo a viabilidade de uma convivência mínima familiar.

A Corte Europeia de Direitos Humanos – em precedentes como o caso “Lorsé e outros contra a Holanda” – já assentou que revista vexatória impactam sobre a privacidade e dignidade, podendo implicar humilhação profunda, sentimento de inferioridade e descrédito sobre a própria dignidade, o que caracteriza tratamento desumano.[16]

Não é que se recuse a revista corporal como meio de prevenir delitos e de fortalecer a segurança dos estabelecimentos penais. O que se tem como claro é que isso deve ocorrer sem violentar garantias mínimas de alguém que nem mesmo foi condenado, nem é preso provisório, mas mero visitante no presídio. Cabe-nos estabelecer procedimentos diversos dos padronizados e normatizados em ordenamentos das pessoas federativas, de modo a concretizar a garantia à dignidade humana também nesse momento da vida do cidadão.

 

6. A necessidade de uma nova política pública para revista em estabelecimentos prisionais à luz da proporcionalidade e razoabilidade

Em pleno século XXI, é preciso que repercuta no orçamento limites constitucionais que tornam prioridade aquisição de equipamentos cujo uso evitará que uma mulher tenha de, nua, abrir as pernas para ser vistoriada por agente penitenciário que olhará dentro da sua vagina, afastando-se idêntica constrição aos homens em relação ao ânus. Não há subjetividade em considerar abstratamente violador da intimidade procedimentos dessa natureza, ainda que não ocorram em todas as revistas no presídio. Na verdade, a mera possibilidade de um ato administrativo normativo ou concreto autorizar que alguém olhe dentro das partes íntimas de um ser humano desnudado para ter certeza de que ele não porta objetos ilícitos é admitir procedimento vexatório. Isso considerando o conceito de intimidade de um homem médio em quase todo o mundo ocidental, inclusive no Brasil em que a maioria das pessoas sente constrangimento, humilhação e desconforto se tem de expor sua vagina e/ou ânus para terceiros, em um ambiente claramente intimidador como o de uma unidade prisional. Em alguns casos o visitante pode ter que fazer agachamentos, completamente nu diante de desconhecidos, sendo alguns locais de revista coletivos, ausentes compartimentos isolados, o que implica que uns fiquem nus diante de outros do mesmo sexo. O fato é que a quase totalidade dos indivíduos que tenha de passar por tal investigação sentirá essa prática como violação sexual, o que se agrava diante da dificuldade de defesa efetiva na hipótese de eventual excesso, seja verbal ou não. A constrição e os danosos efeitos agravam-se quando se imagina uma criança ou adolescente tendo que se despir perante estranhos dentro de uma prisão, sendo inquestionáveis os prejuízos para seu equilíbrio psíquico. Reitere-se que, contrariando o artigo 5º, XLV, primeira parte, da Constituição da República, é vítima de todo esse sofrimento alguém que sequer foi réu em ação penal, sendo sua relação com o sistema penitenciário limitada ao vínculo com o condenado cuja pena, à obviedade, é restritiva à sua própria liberdade. Não é cabível ignorar os relatos de abusos sofridos por visitantes que além do sofrimento de ver um ente querido condenado pela prática de um crime, de passar pela privação material decorrente do seu encarceramento, ainda tem de lidar com a fragilidade emocional de ir até um presídio, a insegurança quanto à realidade que encontrará no estabelecimento e a humilhação da revista íntima. Admitir medidas que constranjam desarrazoadamente uma pessoa pelo simples fato de possuir relações afetivas com um preso não é admissível em um Estado Democrático de Direito.

Outrossim, deve-se trazer a lume o Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos segundo o qual

“a realização desse tipo de revista pessoal atua como instrumento de intimidação, uma vez que o próprio Estado informa que o número de apreensões de objetos encontrados com visitantes em vaginas, ânus ou no interior de fraldas de bebês é extremamente menor daqueles encontrados nas revistas realizadas pelos policiais nas celas, indicando que outros caminhos ou portadores, que não são os visitantes, disponibilizam tais produtos para as presas. (…)

Em outro turno, a Associação pela Reforma Prisional, na tentativa de demonstrar que os objetos ilícitos/proibidos são introduzidos nos estabelecimentos penais de outras formas, informa que, no período de dezembro de 2006 a abril de 2007, em um universo de mais de 10.000 (dez mil) visitantes, foram realizadas apenas 03 (três) apreensões com visitas, ou seja, menos de 0,1% das pessoas revistas foram surpreendidas portando tais objetos”.[17]

No mesmo sentido, tem-se a Manifestação Jurídica nº 40/2014 do Conselho Federal de Serviço Social que, após breve histórico do tratamento normativo da matéria em alguns Estados, com destaque para Minas Gerais e Amazonas, acentuou:

“A Portaria do Judiciário do Estado do Amazonas, além da proibição, destaca que a revista íntima não garante a apreensão de objetos proibidos. O texto cita pesquisa da Rede Justiça Criminal, divulgada neste ano, segundo a qual, no estado de São Paulo, apenas 3 (três) em cada 10 (dez) mil procedimentos de revista íntima resultaram na apreensão de objetos proibidos.

A Portaria inclui, também, dados do Núcleo Especializado em Situação Carcerária e da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Segundo eles, foram realizados 3.407.926 procedimentos de revistas íntimas vexatórias em todo estado em 2012. Em apenas 0,013% foram encontrados aparelhos celulares e, em 0,01%, entorpecentes, sendo que em nenhum caso houve apreensão de armas.”[18]

Tem-se, portanto, que esse tipo de revista pode até ser preventiva quanto a entrada de alguns objetos ilícitos nos presídios pelas mãos de visitantes. Mas é questionável se realmente é eficiente ao alcançar tal finalidade, bem como se esse meio utilizado (revista íntima em determinadas circunstâncias) é a forma menos restritiva possível para se alcançar a segurança desejada, além da controvérsia sobre a existência, ou não, de equilíbrio entre o que se deseja obter (segurança interna nos presídios) e o que se sacrifica (intimidade e dignidade humana). Para tanto, é mister fazer incidir a proporcionalidade como técnica de solução de conflitos entre princípios e direitos fundamentais.

 

6.1. A proporcionalidade como técnica de ponderação diante do conflito entre garantias constitucionais

O próprio Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a técnica da ponderação efetivada por meio da proporcionalidade como instrumento de solução dos conflitos de interesses embasados em proteções de nível constitucional. Já decidiu que a proporcionalidade é um método geral de solução de conflito entre princípios e direitos protegidos pela Constituição. A proporcionalidade incide para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais:

”Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade.”[19]

Observe-se, a propósito da ponderação, o levantamento feito por Edilson Pereira Nobre Júnior: “Sob a égide da atual Constituição, podemos registrar mais alguns pronunciamentos, a saber: a) o RE 219.780-PE, onde se estabeleceu que a reserva à privacidade não pode prevalecer diante do interesse da justiça, sendo lícita, contanto que observado o procedimento legal e a proporcionalidade, determinação judicial de quebra do sigilo bancário; b) o REsp 218.354-RS, em que se entendeu pela não prevalência do princípio da coisa julgada ante o da igualdade tributária, de modo a exonerar o contribuinte do encargo de pagar tributo declarado inconstitucional pelo STF; c) o REsp 35.105-RJ, em cujo julgamento se desprezou a coisa julgada por sua obtenção em contrariedade ao princípio da lealdade processual; d) o Recurso Especial Eleitora 12.374-TO, cujos fundamentos propenderam por admitir que lei, tendente a estabelecer o princípio da isonomia entre os candidatos a pleito eleitoral, poderia afastar a incidência do princípio da liberdade de expressão, restringindo no tempo o direito de propaganda.”[20]

Ao decidir a Reclamação n° 2.126, relatada pelo Ministro Gilmar Mendes, o STF assentou, mais uma vez, a concorrência de princípios e bens protegidos constitucionalmente, fixando, em especial, a tarefa da proporcionalidade:

“Por fim, consideradas as peculiaridades do caso em exame, e observada a presente fase processual,diante dos princípios constitucionais que supostamente encontram-se em conflito, afigura-se recomendável a adoção daquilo que a doutrina define como uma ‘relação de precedência condicionada’ entre os princípios concorrentes. Nesse sentido, ensina Inocêncio Mártires Coelho:

‘Por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta lhe parecer aplicá­vel à mesma situação de fato, ao invés de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com exclusão de outros que, prima facie, repute igualmente utilizáveis como norma de decisão, o intérprete fará uma ponderação entre os standards concorrentes (obviamente se todos forem princípios válidos, pois só assim podem entrar em rota de colisão) optando, afinal, por aquele que, nas circunstâncias, lhe pareça mais adequado em termos de otimização de justiça.

Em outras palavras de Alexy, resolve-se esse conflito estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação de precedência condicionada, na qual se diz, sempre diante das peculiaridades do caso, em que condições um princípio prevalece sobre o outro, sendo certo que, noutras circunstâncias, a questão da precedência poderá resolver-se de maneira inversa.’ (Coelho, Inocêncio Mártires, Racionalidade Hermenêutica: Acertos e Equívo­cos, in: As Vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo, Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Coord. Ives Gandra S. Martins, São Paulo, América Jurídica, 2002, p. 363).»”[21]

Ao definir, com base na proporcionalidade, o bem jurídico previsto constitucionalmente que será protegido na realidade administrativa, deve o aparato estatal preocupar-se com a solução justa e adequada ao tempo a que se destina. É imperioso atentar-se para os valores temporais e para o aspecto positivo ou negativo das normas jurídicas em relação à própria vida humana e estatal, motivo e fim de todo Direito. Quem edita normas administrativas e quem as aplica está obrigado a respeitar as finalidades estatais basilares e os direitos fundamentais protegidos na ordem constitucional. Qualquer comportamento que os comprometa é violador do núcleo fundamental da Constituição e merece repúdio imediato pelos órgãos competentes.

Ao analisar os bens jurídicos em conflito na espécie – segurança pública e dignidade humana – ambos com proteção de status constitucional, cumpre esclarecer que qualquer norma que normatize revista de visitantes em unidade prisional ou os próprios atos de revista devem ser adequados para atender o interesse público pretendido como finalidade do comportamento do Estado. É indispensável que exigências como proporcionalidade e razoabilidade sejam atendidas.

Exige-se dos Poderes Públicos o exercício moderado e razoável das suas competências, observadas as restrições do ordenamento em face da realidade social. Não pode o Estado atuar irracionalmente, estando proibidos o excesso e a insuficiência da ação legislativa, jurisdicional e administrativa. Em razão da proporcionalidade, impõe-se – também na atividade de normatizar e administrar na seara penitenciária – a conduta adequada, necessária e suficiente, bem como o dever de perseguir, de modo refletido, o equilíbrio necessário à proteção dos direitos da coletividade. Para tanto, é preciso o sopesamento dos valores juridicizados no ordenamento em face das circunstâncias concretas, caracterizando violação a este dever quaisquer exageros injustificados. Ao praticar determinada conduta, deve o Executivo viabilizar a concretização do interesse público primário, evitando sacrifícios desnecessários para a sociedade, para estrutura administrativa e para os cidadãos individualmente considerados.

Na tentativa de delimitar a ideia da proporcionalidade, tem-se distinguido a adequação, a necessidade (postulado do meio mais benigno) e a proporcionalidade no sentido estrito (postulado de ponderação propriamente dito). No tocante ao pressuposto da adequação o que se afere é se uma determinada medida consiste no meio certo para levar à finalidade almejada. Não se admitem excessos nos meios utilizados em face do fim público perseguido na espécie. O sacrifício admissível deve ser ponderado em face das normas constitucionais e dos objetivos condutores da atuação administrativa.

“Vale dizer, a medida ato normativo ou ato administrativo que pretenda a consecução do interesse público deve ser evidentemente adequada aos fins que visa concretizar.

(…)

Em arremate, o subprincípio postula, sob essa ótica, que o meio escolhido pelo legislador ou pelo administrador público se apresente em idoneidade suficiente para o alcance do fim almejado e tutelado pelo interesse público.”[22]

Especificamente sobre a necessidade como pressuposto à caracterização da proporcionalidade da conduta administrativa, é mister que cada comportamento estatal seja exigível como condição indispensável à concretização do interesse público, uma vez que “Este subprincípio não questiona, na maior parte dos casos, a adoção da medida (necessidade absoluta) mas sim a necessidade relativa, ou seja, se o legislador poderia ter adotado outro meio igualmente eficaz e menos desvantajoso para os cidadãos”.[23]

Em sentido estrito, é necessário determinar a relação custo-benefício da medida em face do conjunto de interesses em jogo, de modo a ponderá-la mediante o exame dos eventuais danos e dos resultados benéficos viáveis na espécie. Nesse mister, o operador do direito “deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim”.[24]

Quanto à adequação, tem-se que, em alguma medida, realizar revistas íntimas (meio) impede a entrada de objetos ilícitos nas unidades prisionais (finalidade). No entanto, levantamentos realizados no país demonstram que os índices de eficiência são reduzidos (variando de menos de 1% a 10%), considerando-se o total dos produtos ilícitos encontrados nos presídios na revista das celas. Com efeito, em diversos Estados, ao se mensurar o número de celulares encontrados nas unidades prisionais, verifica-se que menos de 10% foi apreendido nas revistas dos visitantes. Daí muitos estudiosos concluírem pela ineficiência da medida de inspeção que se qualifica como vexatória. Essa conclusão é questionada ao argumento de que somente um pequeno percentual é resultado de apreensões de objetos ilícitos durante as revistas íntimas exatamente pelo fato dessa medida ser realizada (os visitantes temem que os objetos sejam encontrados e não tentam leva-los para dentro dos presídios), sendo provável o aumento desse índice se suspensa a providência de segurança. Diante de tal divergência, certo é, no mínimo, que os dados presentes não são suficientes para evidenciar a adequação plena da atual revista como instrumento de garantir a segurança nos presídios, estando no terreno da probabilidade afirmar aumento na hipótese de suspensão.

No que tange à necessidade, ou seja, sobre o fato da revista íntima ser a menor restrição possível imposta aos terceiros, tem-se como certo que as medidas adotadas quando desse procedimento não são a forma mais suave de se aferir se um visitante porta arma, droga ou outro produto inadmitido na unidade prisional. Destaque-se que a revista dos presos e das suas celas são meios razoáveis e eficientes na garantia da segurança interna. De fato, no lugar de mandar visitantes agacharem, nús, para identificar se há, ou não, objetos ilícitos em seu corpo, em especial nas partes íntimas, parece viável inspeção interna após visita em que ocorra contato pessoal. Afigura-se mais razoável não submeter crianças, mulheres, idosos e adolescentes a um procedimento extremo de revista e inspecionar se o preso, após visita de contato pessoal, porta algum objeto ilícito, sendo a revista nas celas e nas outras partes do presídio tarefa igualmente menos restritiva.

 

7. A alternativa do uso de tecnologias como scanners, aparelhos de raio x ou similares

A Lei Federal nº 10.792/2003 já fixara que os estabelecimentos penitenciários deveriam passar a dispor de aparelho detector de metais, a que devem se submeter aqueles que desejem ter acesso à unidade, ainda que exerçam cargo ou função pública no local. Afinal, há tecnologia disponível para que se verifique a existência, ou não, de objeto ilícito em poder de um visitante ou agente público que trabalha em presídio. De fato, a revista pessoal, hoje em dia, pode, em regra, ocorrer mediante uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, aparelhos de raio x, monitoramento por câmeras, scanner corporal ou similares capazes de identificar armas, explosivos drogas e similares. Tais equipamentos não atingem a integridade física, psicológica ou moral da pessoa revistada, mesmo porque dispensam desnudamento, total ou parcial, como se sabe pela prática de revista eletrônica usada inclusive em setores de imigração internacional. À obviedade, existirão exceções como a saúde ou integridade física do visitante correr risco na hipótese de revista por determinados equipamentos (ex: portadores de marcapasso ou equivalente). Nesses casos, haverá de se proceder a um regramento diverso que permita excluir o porte ou posse de substâncias ou produtos proibidos.

Sobre as alternativas à revista íntima, confira-se publicações recentes sobre o tema:

“O scanner corporal ou body scanners é um equipamento que escaneia todo o corpo de quem passa por ele, revelando todos os detalhes e mostrando objetos que estejam escondidos na roupa ou no corpo do visitante. O equipamento pode custar até meio milhão de reais, mas será a solução para evitar as vexatórias revistas íntimas. O uso do equipamento para revista segue a recomendação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária sendo o fim das revistas íntimas nos presídios.

Uma revista íntima pode durar em média dez minutos, com o uso do scanner corporal, a verificação é feita em apenas dez segundos. O equipamento permite identificar objetos ilícitos que possam ser colocados nas roupas ou no corpo das visitas, tais como armas, drogas, aparelhos de telefone celular e chips de telefone.

Os aparelhos possuem zoom eletrônico, dois monitores de 21 polegadas de tecnologia LCD exibem duas imagens simultâneas obtidas através de perspectivas diferentes apenas com uma única passagem, possibilitando aproximar a imagem e sanar qualquer dúvida.

O aparelho quando utilizado será responsável pela redução significativa na circulação de drogas dentro das galerias e pelo fim da revista íntima nos visitantes.”[25]

A Resolução nº 5, de 28.08.2014, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, determina a substituição da revista íntima por tecnologias que possam identificar outros objetos ilícitos. Em Minas Gerais, a Lei Estadual nº 12.492/1997, em regramento pioneiro sobre a matéria, asseverou no seu artigo 3º que “Com o objetivo de garantir a segurança, serão instalados, nos estabelecimentos prisionais, detectores de metais e outros equipamentos necessários para impedir a entrada de qualquer tipo de arma ou droga”.

O que se vislumbra necessário é aproximar a previsão legal da realidade administrativa das unidades prisionais, de modo que a revista íntima deixe de ser prática comum e outros mecanismos aptos a garantir segurança nos presídios sejam adotados. Frisa-se que esses mecanismos que impliquem uso de equipamentos eletrônicos consubstanciam meio menos restritivo de bem jurídico fundamental, qual seja, a dignidade humana (e a intimidade nela fundada) que necessariamente há de repercutir na estruturação do sistema penitenciário.

 

8. O investimento para aquisição dos equipamentos de tecnologia e a questão orçamentária estatal: entre a omissão e a celeridade inexequível

Cabe ponderar, como sempre, a legitimidade de se fazer tais gastos em face da própria ideia de proporcionalidade em sentido estrito. Quando se analisa os custos e os benefícios da revista íntima, indica-se como resultado positivo (ou seja, como benefício) um nível maior de segurança dentro das unidades prisionais, mesmo que alguns questionem a sua eficiência. Em relação aos custos, tem-se sacrifício claro à dignidade dos visitantes dos presos, o que implica comprometimento de direito fundamental protegido constitucionalmente. Em contrapartida, mantidos os benefícios da revista íntima no tocante à segurança nos presídios, ter-se-á menores sacrifícios à intimidade e dignidade dos visitantes se realizada a revista mediante equipamentos eletrônicos. O custo que se mostra superior, neste caso, é o financeiro que não pode ser ignorado para fins de formatação dos passos necessários à execução da política pública.

Não se trata de invocar o investimento necessário para concretizar mecanismo mais razoável de manutenção da segurança pública nos estabelecimentos prisionais com o objetivo de manter a revista íntima atual que implica maiores sacrifícios à dignidade dos visitantes. Trata-se, ao contrário, de considerar os limites reais econômicos e financeiros enfrentados pelo Estado a fim de que se viabilize a política pública alternativa à revista íntima, sem o que terão continuidade procedimentos que, à luz da proporcionalidade como técnica de ponderação, continuarão a sacrificar em desmesurada medida direito fundamental dos visitantes dos presídios.

Como já se explicitou, oferecer melhores condições quando se trata de situações em que, ausente aperfeiçoamento, coloca-se em risco o núcleo de proteção fundamental da Constituição da República, é aspecto a ser necessariamente considerado no planejamento das prioridades do Estado no que tange a políticas públicas basilares. E no planejamento da estruturação do sistema penitenciário, cabe sublinhar que não só a eficiência está prevista no “caput” do artigo 37 da Constituição da República como princípio vinculante de toda a Administração Pública, mas em especial para a segurança pública está imposta pelo artigo 144, § 7º da Constituição: “A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”.

Sobre o limite inerente aos custos dos direitos, a doutrina contemporânea vem advertindo que “A escolha de onde se alocar os recursos finitos dos quais dispõe o Estado representa uma ponderação entre direitos. Aquele que se entender dotado de maior peso no exercício de ponderação deverá ser beneficiado pela alocação dos recursos para sua efetivação.” Aceita-se que os recursos existentes podem ser insuficientes para garantia da integralidade da expectativa prévia de mínimo existencial; neste caso, deverá ser exercida ponderação de valores ligados às pretensões de direitos fundamentais para determinar o conteúdo tocado pela jusfundamentalidade e para o qual deverão ser alocados os recursos orçamentários disponíveis.[26]

Registre-se que o Estado, aqui, não se recusa a prestar o serviço que menos sacrifique o universo jurídico individual dos familiares e integrantes do círculo social do preso. A ideia é programar os investimentos estatais possíveis para realizar as imposições constitucionais – segurança pública e respeito à dignidade humana – progressivamente e do melhor modo possível. À obviedade, as providências sofrerão um aumento contínuo e paulatino, realizando-se da forma mais ampla possível e conforme a lei, os atos necessários na espécie (ex: planejamento, destinação orçamentária, licitação, contratos administrativos de aquisição).

É indispensável reconhecer que as medidas a serem tomadas devem observar duas exigências: a) proibição de omissão ou lentidão indevida; b) exigência de celeridade incompatível com o trâmite regular e necessário a cada uma das etapas. Se não se coaduna com o silêncio ou com o atraso do Estado em formatar uma política pública que implante condições dignas de revista pessoal de visitantes nos presídios, igualmente não se tolera a exigência de resultados imediatos sem a cautela necessária para que os procedimentos realizem-se regularmente, com respeito aos prazos legais e administrativos incidentes na espécie. Silêncio e precipitação são igualmente danosos aos interesses da própria sociedade nesta hipótese.

 

9. A difícil estruturação de uma política pública que compatibilize as exigências do sistema

Reconhece-se que, no curto período subsequente, ainda não será possível disponibilizar alternativas imediatas para os casos de suspeita de porte ou posse de objetos e substâncias ilícitas. Neste caso, enquanto são tomadas providências que variam desde o planejamento das aquisições até a celebração dos contratos propriamente ditos, há que se analisar a possibilidade de outros meios manterem a segurança nos presídios, sem ofensa à integridade física e psicológica do visitante. Vislumbra-se, em princípio, ser possível visita no parlatório ou em local em que inexista contato físico entre visitante e a pessoa presa, sendo necessário conceber outras medidas de idêntica natureza.

Não é legítimo liberar o acesso dos visitantes sem qualquer aferição, uma vez que estaria em risco a vida deles próprios, dos presos, dos agentes penitenciários e dos membros da sociedade, consoante correta advertência dos gestores e dos estudiosos:

“De todo modo, no que concerne às visitas, do entendimento de Anderson Pereira Sanchez (2010) depreende-se que seria irresponsabilidade com os próprios visitantes liberar a entrada sem revista íntima e aplicação de procedimentos que conferissem segurança e evitassem a entrada de material irregular ou ilegal. Nesse sentido, o ideal seria que o sistema prisional dispusesse de outros meios para realizar essa segurança, ou ainda, de equipamentos sofisticados, tendo em vista, a tecnologia que se tem disponível a seu favor. Disto posto, tem-se que,

‘O uso de ferramentas tecnológicas, serviço de inteligência eficiente e efetivo e outros mecanismos como o de cães farejadores seriam itens que podem contribuir com o fim da revista íntima ao evitar e desencorajar a entrada de material irregular por visitantes’ (SANCHEZ, 2010).”[27]

Destaque-se que a formatação da política pública e a sua execução é tarefa do Executivo. Vislumbra-se, entretanto, possível que o Estado articule diversas instituições como o MPE, o Judiciário, a direção dos presídios, a advocacia pública e a OAB, para que sejam concebidas medidas pertinentes transitoriamente aptas a evitar práticas invasivas e vexatórias, sem comprometimento da segurança nos presídios. É necessário evitar providências isoladas que disponham de modo diverso e vinculante em comarcas diferentes, comprometendo a impessoalidade e trazendo ínsitos riscos de arbítrio. A isso se acresce o reconhecimento de que conceber medidas alternativas antes de ultimada a política pública definitiva com uso de recursos tecnológicos é tarefa não estritamente jurídica, mas que depende de conhecimentos técnicos específicos da área de gestão penitenciária, passível a colaboração de quem atua cotidianamente no setor.

Nesse sentido, cabe discutir os termos da evolução da política pública de aquisição de equipamentos eletrônicos, medidas alternativas durante o período de transição, inclusive viabilidade de, em situações absolutamente extraordinárias, previamente normatizadas e aferidas na realidade administrativa, garantir-se privacidade e realização por profissionais da área de saúde. Assim, constrói-se paulatinamente a proteção razoável à intimidade de pessoas livres que, por serem familiares e amigos dos presos, não podem sofrer procedimento degradatório como o atualmente previsto em tantas normatizações dos entes federativos. É indispensável estimular a melhor qualificação das estruturas de inteligência e dos quadros de pessoal que atuam no sistema penitenciário, principalmente de carreiras como a dos agentes penitenciário, viabilizando atuação preventiva eficaz de ilícitos cometidos dentro dos presídios e respeitosa dos direitos humanos.

Também é possível prever em favor de quem dirige/preside as unidades prisionais competência extraordinária, quando comprovadamente necessário, para adotar providências acauteladoras na hipótese de indícios ou elementos seguros que evidenciem que o visitante usa ou porta itens proibidos no estabelecimento, com risco para a segurança dos agentes públicos e dos demais presos. Cabe discutir os limites temporais da decisão administrativa cautelar que proíba acesso de determinado visitante ao preso (ex: 24 horas, 1 semana ou 1 mês), bem como as condições em que poderá ser revogada, se atendidas determinadas exigências administrativas. Trata-se de aferir a pertinência de se prever medidas como impedimento de ingresso na unidade por prazo determinado, dependendo da gravidade do comportamento adotado pelo visitante ao descumprir as vedações de entrada de objetos ilícitos. Nessas situações, é preciso que haja fato objetivo identificado e procedente, devidamente registrado por escrito pela Administração do Presídio, em livro próprio, com assinatura do revistado, de modo a ensejar eventual revisão e credibilidade do seu conteúdo.

Em linha de raciocínio semelhante, depois de reconhecer que “em que pese o custo, a dignidade do ser humano não tem preço e nada mais constrangedor, especialmente a uma mulher, a submissão ao procedimento manual de revista”, a doutrina vem proclamando saídas alternativas como: a) a instalação de aparelhos e uso de outra tecnologia que sanasse o problema da revista íntima, de modo que as visitas sejam recebidas com um mínimo de cortesia e respeito; b) outra alternativa seria a revista no próprio preso, logo após a visita, conforme prudente critério da Administração Penitenciária; c) haja infraestrutura e equipe de agentes capacitados e treinados para utilizar métodos que preservem direitos e garantias dos visitantes, com maiores investimentos no setor. Conclui-se, por conseguinte, que:

“Nesse contexto, no âmbito penitenciário, há que observar que há justamente entre o dever do Estado em garantir a ordem pública, de pacificar as relações, e de punir quando necessário. Contudo, esse poder não é absoluto, e encontra-se limites no seu exercício, objetivando evitar práticas de atos arbitrários que atentam contra as liberdades e garantias individuais, a citar a dignidade humana, não apenas das pessoas sujeitas à revista íntima, mas do próprio preso ao ver que aquelas pessoas são submetidas a situações vexatórias e degradantes. Isso porque muitas vezes não se trata unicamente da necessidade em despir suas vestimentas, mas da necessidade inclusive de agentes penitenciarias pesquisarem objetos ilícitos dentro de seus órgãos íntimos, expondo qualquer pessoa ao maior grau de constrangimento possível.

Ressalta-se, ainda, que o sofrimento a que está submetido o infrator encarcerado, esse acaba por ser transmitido também aos seus familiares, que diante a sua situação subumana, acaba também por se submeter psicologicamente a mesma pena, subvertendo a máxima constitucional de impedir que a pena ultrapasse o corpo do condenado.

O Estado adota como argumento para legitimar essas revistas os casos frequentes de visitantes que tentam adentrar as penitenciarias e cadeias públicas munidos de objetos e substâncias ilícitas, entretanto, como apresentado ao logo do trabalho, percebe-se que existem outras alternativas mais eficientes existem para o combate dessa atividade ilícita.

Assim, entre a valoração da segurança do sistema prisional em detrimento aos princípios constitucionais seria grande parte resolvida através dos avanços tecnológicos. Pois a questão relevante diz respeito a manutenção dos laços familiares como auxílio do recluso como fator fundamental para ressocialização deste, além do que é um direito garantido na LEP.

Dessa forma, tendo em vista as formas alternativas e os próprios dispositivos legais ora apresentados, as revistas íntimas na forma ora tratada é ilegal em decorrência do princípio da dignidade humana, podendo ser realizado apenas em casos excepcionalíssimos de real suspeita do Estado, sob pena de responsabilidade do Estado em face do direito subjetivo violado do cidadão a sua intimidade e dignidade.” [28]

 

10. Conclusão

Conclui-se, portanto, que a desproporcionalidade das medidas que ofendam a dignidade de quem é visitante de presos nas unidades públicas, ao prever revista íntima degradante. O fato de o sacrifício presente atingir a dignidade humana dos visitantes dos presídios torna prioridade na gestão do sistema penitenciário que sejam providenciados outros meios de revista pessoal capazes de garantir a segurança dentro do estabelecimento, sem ofensa a direito fundamental protegido constitucionalmente dos familiares e dos amigos dos reclusos. Todo esse contexto repercute no planejamento e execução das políticas públicas do setor, implicando que seja considerado desde sua concepção até a celebração de contratos administrativos os quais, p. ex., adquiram equipamentos eletrônicos de scanner, sistema de câmeras, raio x e similares. Tendo em vista a complexidade da estruturação necessária e atentando para os limites temporais inerentes à concretização das múltiplas providências, cabe formatar medidas transitórias que, de forma imediata, excluam a restrição indevida à dignidade dos visitantes sem sacrifício da segurança indispensável aos estabelecimentos prisionais.

 

[1] Agravo em Recurso Extraordinário nº 959.620-RS, rel. Min. Edson Fachin, em 01.06.2018: decisão unânime do Pleno virtual do STF pela repercussão geral da questão constitucional. Informativo 906 do STF

[2] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380110. Acesso em 30.06.2018.

[3] Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 959.620-RS, rel. Min. Edson Fachin, decisão monocrática de 03.05.2018, DJe de 04.05.2018.

[4] RE nº 456.654-RS, rel. Min. Dias Toffoli, decisão monocrática, STF, DJe de 22.02.2010.

[5] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010

[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: Comentários à Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. 11 ed. São Paulo, Atlas, 2004, p. 124-125

[7] MARIATH, Carlos Roberto. Limites da revista corporal no âmbito do sistema penitenciário, disponível em portal.mj.gov.br/services/…/FileDownload.EZTSvc.asp?…BF35. Acesso em 23.12.2014.

[8] ZAFFARONI, Eugenio R. O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan: 2007, p. 18.

[9]SANABRIA, Marisa. BUENO, Silvana Pontes. Relato de experiência: Atuação do ‘Grupo de Trabalho do Feminino: Questão de Diferença’, do CRP, no Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade in O Feminino – Diversos Olhares. Belo Horizonte: Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. Coord. Marisa Sanabria, 2014.

[10] SANABRIA, Marisa. BUENO, Silvana Pontes. Relato de experiência: Atuação do ‘Grupo de Trabalho do Feminino: Questão de Diferença’, do CRP, no Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade in O Feminino – Diversos Olhares. Belo Horizonte: Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. Coord. Marisa Sanabria, 2014.

[11] ALMEIDA, Telma Mendes Vieira de et al. A revista íntima feminina no sistema penitenciário brasileiro à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em http://www.congressods.com.br/quarto/anais/GT04/21_GT_04.pdf. Acesso em 05.01.2015.

[12] ALMEIDA, Telma Mendes Vieira de et al. A revista íntima feminina no sistema penitenciário brasileiro à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em http://www.congressods.com.br/quarto/anais/GT04/21_GT_04.pdf. Acesso em 05.01.2015.

[13] CARDOSO, Rayssa Pires Amorim. COSTA Nayara Garcia da. A revista íntima realizada em familiares de presos e sua violação aos princípios constitucionais. Disponível em http://www.webartigos.com/artigos/a-revista-intima-realizadas-em-familiares-de-presos-e-sua-violacao-aos-principios-constitucionais/106346/#ixzz3O2cK4hs5. Acesso em 30.12.2014.

[14] MARIATH, Carlos Roberto. Limites da revista corporal no âmbito do sistema penitenciário, disponível em portal.mj.gov.br/services/…/FileDownload.EZTSvc.asp?…BF35. Acesso em 23.12.2014.

[15] ONU, Human Rights Council, Seventh Session, Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment, Manfred Nowak,15 Jan 2008: A/HRC/7/3: pp. 8,  art. 4 e 5. Disponível em: http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G08/101/61/PDF/G0810161.pdf. Acesso em 22.12.2014.

[16] decisão final da Corte Européia de Direitos Humanos disponível em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/Pages/search.aspx#{“itemid”:[“001-60916, Acesso em 24.12.2014.

[17] MARIATH, Carlos Roberto. Limites da revista corporal no âmbito do sistema penitenciário, disponível em portal.mj.gov.br/services/…/FileDownload.EZTSvc.asp?…BF35. Acesso em 23.12.2014.

[18] Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/29636-nove-estados-ja-proibiram-a-revista-pessoal-vexatoria-em-unidades-prisionais, Acesso em 17.12.2014.

[19] Intervenção Federal n° 2.257-6/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno do STF. Revista de Direito Administrativo, v. 239, p. 21-22.

[20] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 55.

[21] Reclamação-MC n° 2.126, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 12.08.2002, DJU de 19.08.2002, Informativo do STF, n°288.

[22] COELHO, Paulo Magalhães da Costa. “Controle Jurisdicional da Administração Pública”. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 63.

[23] Revista de Direito Administrativo, v. 227, p. 331.

[24] Revista de Direito Administrativo, v. 227, p. 331.

[25] NUNES FILHO, Moises Seixas. A dignidade da pessoa humana e a revista íntima dos visitantes nas penitenciárias brasileiras. Disponível em https://www.conpedi.org.br/publicacoes/z307l234/xzijgq71/PpGQ34Hpn2ibwAx7.pdf. Acesso em 30.06.2018.

[26]TAVEIRA, Christiano de Oliveira. TRAVASSOS, Marcelo Zenni. O controle das leis orçamentárias à luz dos direitos humanos: reflexões teóricas e análise jurisprudencial aplicadas sobre o direito à saúde. Fórum de Contratação e Gestão Pública. Belo Horizonte: Fórum, ano 8, n. 92, p. 38-39, ago. de 2009.

[27] CARDOSO, Rayssa Pires Amorim. COSTA Nayara Garcia da. A revista íntima realizada em familiares de presos e sua violação aos princípios constitucionais. Disponível em http://www.webartigos.com/artigos/a-revista-intima-realizadas-em-familiares-de-presos-e-sua-violacao-aos-principios-constitucionais/106346/#ixzz3O2cK4hs5. Acesso em 30.12.2014.

[28]ALMEIDA, Telma Mendes Vieira de et al. A revista íntima feminina no sistema penitenciário brasileiro à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em http://www.congressods.com.br/quarto/anais/GT04/21_GT_04.pdf. Acesso em 05.01.2015.

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