Credenciamento como hipótese de inexigibilidade

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Aspectos conceituais do credenciamento

Atualmente, na ordem jurídica administrativa, fala-se em credenciamento em duas situações específicas: a) uma delas refere-se ao credenciamento como hipótese de inexigibilidade de licitação, com base no artigo 25 da Lei Federal nº 8.666/93; b) a outra situação é relativa às instituições científicas e tecnológicas, visto que, no âmbito federal (Lei nº 8.958/94), prevê-se o credenciamento bienal das fundações de apoio junto ao Ministério da Educação (MEC) e da Ciência e Tecnologia (MCT), sendo esse um pressuposto para que as pessoas privadas sem fins lucrativos possam apoiar projetos de ensino, de pesquisa, de extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico de interesse das ICTs.

Analisando, de modo específico, a primeira situação, tem-se que a Lei Federal nº 8.666, ao regrar o instituto da inexigibilidade licitação, não mencionou o credenciamento. Como esclarece Joel de Menezes Niebuhr, “Não há qualquer dispositivo que aborde o assunto, regrando suas premissas.” Trata-se de um procedimento administrativo que ganhou os seus contornos conceituais a partir da atividade de controle exercida pelas Cortes de Contas que, como a doutrina, reconheceram o fato de a inexigibilidade não depender de autorização legal, tanto que ocorre em todas as situações de inviabilidade de competição, o que remonta à questão fática. “Destarte, a ausência de dispositivos normativos em torno das hipóteses de credenciamento não obsta lhes reconhecer a existência, bem como a inviabilidade de competição, o que acarreta inexigibilidade.”[1]

Passou a se admitir que, para haver inexigibilidade, basta que não haja competição possível entre interessados, como expressamente exige o “caput” artigo 25 da Lei Federal nº 8.666. E a inviabilidade de competição pode resultar de duas hipóteses: a) na primeira hipótese, não há possibilidade de competição porque só existe um único parceiro que atenda às necessidades da Administração; b) na segunda hipótese, a Administração aceita como colaborador todos aqueles que, atendendo as motivadas exigências públicas, manifestem interesse em firmar o vínculo com o Estado. Em outras palavras, há inexigibilidade de licitação em virtude da singularidade do objeto (há um único bem ou serviço que lhe satisfazer) ou em razão da possibilidade de contratação de todos os que satisfaçam as condições exigidas (a Administração não precisa escolher um único licitante para satisfazer os fins perseguidos, mas admite, isonomicamente, estabelecer vínculo com todos os interessados). Sobre essa última hipótese, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes explicita:

Se a Administração convoca todos os profissionais de determinado setor, dispondo-se a contratar todos os que tiverem interesse e que satisfaçam os requisitos estabelecidos, fixando ela própria o valor que dispõe a pagar, os possíveis licitantes não competirão, no estrito sentido da palavra – inviabilizando a competição – uma vez que a todos foi assegurada a contratação. É a figura do credenciamento, que o Tribunal de Contas da União recomendou para a contratação de serviços médicos[2] e, quanto a tais serviços e de odontólogos, pontuou que “a isonomia e a impessoalidade estão garantidas pelo fato de a escolha dos referidos profissionais, no momento da prestação dos serviços, recair sobre o usuário direto, ou seja, o paciente é quem escolhe e não a administração pública”.[3] Em diversas decisões admitiu o emprego do credenciamento (Acórdãos 351/2010, 141/2013, 768/2013, 1.150/2013 e 3.567/2014), tendo a 1ª Câmara da mencionada Corte de Contas explicitado, em fins de 2017, que: “Na prática, vislumbra-se a utilização do sistema de credenciamento, por exemplo, (i) quando se tem, pelos bens a serem fornecidos ou serviços a serem prestados, uma demanda muito maior do que o número de interessados e habilitados a fornecê-los ou prestá-los, ou (ii) quando se trata de fornecimento contínuo de certos produtos (a exemplo de gêneros alimentícios). Nessas hipóteses, a administração se dispõe a contratar todos os interessados e capacitados, sem relação de exclusão, pelo preço por ela definido, devendo cumprir alguns requisitos (a exemplo dos dispostos no Acórdão 351/2010-Plenário, ratificados no Acórdão 5.178/2013-1ª Câmara)” [4]. O importante é que seja viável aferir a pré-qualificação dos interessados no credenciamento, observando-se os princípios da publicidade, da impessoalidade e da isonomia.

 

A normatização do instituto

Considerando a ausência de normatização expressa do credenciamento em norma geral federal, vinculante dos três níveis da federação, a doutrina e os operadores do direito, encarregados das contratações mediante credenciamento, adequam o instituto no artigo 25 da Lei Federal nº 8.666. Diante da insuficiência do conteúdo das regras ali veiculadas, tornou-se manifesta a necessidade de, em sede infra-legal, promover a regulamentação da figura jurídica, até mesmo para que se obtivesse um mínimo de segurança jurídica no cotidiano administrativo.

A Procuradoria Federal da AGU exarou o Parecer n°07-/2013/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU, em que se fixou o objetivo de “prezar pelos aspectos essenciais do credenciamento, de modo não desnaturar nem utilizar de forma indevida”, pelo que foram apresentadas diretrizes a serem aferidas em cada caso concreto, em especial que: “a. haja possibilidade de contratação de quaisquer dos interessados que satisfaçam às condições exigidas; b. preço de mercado seja razoavelmente uniforme que fixação prévia de valores seja mais vantajosa para Administração, devendo ficar demonstrada nos autos vantagem ou igualdade dos valores definidos em relação aos preços de mercado; c. seja dada ampla divulgação, mediante aviso publicado no Diário Oficial da União em jornal de grande circulação local, sem prejuízo do uso adicional de outros meios que se revelem mais adequados ao caso; d. sejam fixados os critérios exigências mínimas para que os interessados possam credenciar-se; e. seja fixada, de forma criteriosa, tabela de preços que remunerará os diversos itens de serviços; f. sejam estabelecidas as hipóteses de descredenciamento; g. seja prevista a possibilidade de denúncia do ajuste, qualquer tempo, pelo credenciado, bastando notificar Administração, com antecedência fixada no termo; h. a possibilidade de credenciar-se fique aberta durante todo período em que Administração precisar dos serviços, conforme fixado em Edital, cuja minuta deve ser analisada pela respectiva assessoria jurídica; i. possibilidade de os usuários ou administrados denunciarem qualquer irregularidade verificada na prestação dos serviços; j. sejam fixados critérios objetivos de distribuição da demanda, por exemplo, sorteio público, excluindo-se os sorteados anteriormente, escolha pelo próprio usuário-interessado etc.”

A normatização federal foi se aperfeiçoando, tendo sido editada a Instrução Normativa nº 05/2017 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, que no item IV do Anexo I definiu o credenciamento como “ato administrativo de chamamento público destinado à pré-qualificação de todos os interessados que preencham os requisitos previamente determinados no ato convocatório, visando futura contratação, pelo preço definido pela Administração.” O Anexo VII-B da IN nº 05/2017, que trata das diretrizes específicas para elaboração do ato convocatório, trata do credenciamento no item 3, nos seguintes termos: “3.1. Para a contratação de prestação de serviços, os órgãos e entidades poderão utilizar o sistema de credenciamento, desde que atendidas às seguintes diretrizes: a) justificar a inviabilidade de competição pela natureza da contratação do serviço a ser prestado; b) comprovar que o interesse da Administração será melhor atendido mediante a contratação de um maior número de prestadores de serviço; c) promover o chamamento público por meio do ato convocatório que definirá o objeto a ser executado, os requisitos de habilitação, as especificações técnicas indispensáveis, a fixação prévia de preços e os critérios para convocação dos credenciados; d) garantir a igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a Administração, pelo preço por ela definido; e e) contratar todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições fixadas pela Administração. 3.2. O Sistema de Credenciamento ficará aberto pelo prazo estipulado no ato convocatório, renováveis por iguais e sucessivos períodos, para inscrição de novos interessados, desde que atendam aos requisitos do chamamento.”

Em face da citada Instrução normativa, Jessé Torres Pereira Junior e Marinês Restelatto Dotti explicitam ser admissível o credenciamento “quando sejam íntimas as diferenças nos serviços ofertados pelos interessados, a possibilidade de a administração pública fixar o valor do objeto a ser contratado”, isso quando seja mais vantajoso para a administração em relação aos valores provenientes da licitação. Advertem os doutrinadores que “Existindo ofertas de preços díspares entre as instituições financeiras, ou seja, não sendo os mesmos os preços praticados pelas instituições, abre-se espaço para a abertura de processo seletivo em busca da proposta mais vantajosa para a administração.”[5]

No âmbito dos Estados e Municípios, identificam-se normatizações do instituto, com destaque para diplomas legais como a Lei Baiana nº 9.433/2005, Lei Goiana nº 16.920/2010 e Lei Paranaense nº 15.608/2007, além do tratamento normativo dado em sede de decretos e outros atos regulatórios de órgãos e entidades administrativas. Assim aconteceu também no âmbito federal tendo o credenciamento sido tratado em decreto em situações como à da ANEEL, o que justificou advertências doutrinárias como as seguintes: a) minutas de contrato devem vir, para análise da Procuradoria, acompanhadas pelos seguintes documentos: I) nota técnica ou ofício de encaminhamento, com as informações necessárias ao exame; II) ata da sessão pública; III) ordem de serviço, conforme o regulamento; IV) atestado de disponibilidade orçamentária e financeira; b) a comissão especial do credenciamento deverá avaliar se efetivamente os objetivos da Administração estão sendo atingidos; c) se constatado que as exigências técnicas dispostas no edital restringiram significativamente o mercado ou inviabilizaram a participação de uma maior quantidade de empresas interessadas em contratar: revogação do processo, “por ferir o princípio da competitividade e isonomia, fazendo-se os ajustes necessários.” [6]

Esse cipoal de diplomas e ponderações jurídicas, de natureza doutrinária, das Cortes de Contas e advocacia pública, demonstra que esse é mais um dos pontos que desafia um tratamento normativo adequado no ordenamento brasileiro. A edição de uma nova lei de licitações de âmbito nacional, que regulamente os pressupostos e regime jurídico de institutos como o credenciamento, evitará desvios e implicará mais segurança no seu emprego em cada realidade contratual da União, Estados, DF ou Municípios. Por hora, é fundamental atentar para que a sua adoção esteja amparada em normas em vigor (como o artigo 25 da Lei Federal nº 8.666), observando-se a normatização legal específica e administrativa que não ofenda a distribuição constitucional de competências legislativas e as demais regras da CR/88.

 

Considerações finais

Cabe falar em credenciamento quando a Administração se dispõe a firmar vínculo com todos os interessados, assegurando-lhes tratamento isonômico. Nesta hipótese, o instituto do credenciamento viabilizará a contratação direta por inexigibilidade com fulcro no artigo 25, “caput” da Lei Federal nº 8.666. De fato, um dos objetivos da licitação é a escolha daquele que melhor realizará o objeto conveniado ou contratado. Se a Administração não necessita de competitividade porque se predispõe a firmar vínculo com todos os interessados, não há que se falar em modalidade licitatória. Na mesma linha de raciocínio, Marçal Justen Filho menciona que não haverá necessidade de licitação “quando houver número ilimitado de contratações e (ou) quando a escolha do particular a ser contratado não incumbir à própria Administração. Isso se verifica quando uma alternativa de contratar não for excludente de outras, de molde que todo o particular que o desejar poderá fazê-lo. O raciocínio não é afastado nem mesmo em face da imposição de certos requisitos ou exigências mínimos. Sempre que a contratação não caracterizar uma ‘escolha’ ou ‘preferência’ da Administração por uma dentre diversas alternativas, será desnecessária a licitação.”[7]

O ponto central, assim, é que o Poder Público tenha por intenção se vincular a todos os fornecedores, prestadores de serviço ou patrocinadores interessados. Não se está diante da hipótese comum em que um único bem ou serviço é capaz de satisfazer as necessidades administrativas. Ao contrário, a impossibilidade de disputa decorre do objetivo de o Estado firmar contrato com todos os interessados, desde que atendam as condições necessárias à celebração do contrato administrativo estabelecidas pelo Poder Público, incluindo-se aí o preço do objeto a ser contratado, padronizado no mercado. Ao fixar os requisitos, é importante que a Administração Pública tenha o cuidado de exigir somente os pressupostos necessários à adequada satisfação do objeto a ser contratado, sem quaisquer excessos que comprometam a competitividade e a própria impessoalidade do certame.

Que, de fato, o credenciamento seja uma forma de racionalizar a contratação administrativa em realidades nas quais o Estado não busca vínculo com somente um prestador de serviço ou fornecedor de bens, o que torna clara a inviabilidade fática da competição. E que a importância assumida pelo instituto justifique seja levada a efeito regulamentação suficiente da matéria, com fixação dos requisitos necessários à efetivação do procedimento, com integral observância dos princípios constitucionais como a isonomia, eficiência e moralidade.

[1] NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. São Paulo: Dialética, 2003, p. 210.

[2] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Sistema de Registro de Preços e Pregão, Belo Horizonte, Fórum, 2003, p. 41.

[3]Acórdão nº 1.150/2013, rel. Min. Aroldo Cedraz, Pleno do TCU, julgamento em 15.05.2013.

[4]Acórdão nº 10.583/2017, rel. Min. Augusto Sherman, 1ª Câmara do TCU, julgamento em 28.22.2017.

[5] PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. DOTTI, Marinês Restelatto. Os novos horizontes da contratação de serviços na administração federal (Instrução Normativa nº 5/2017). Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP. Belo Horizonte: ed. Fórum, ano 16, n. 190, p. 51, out. 2017.

[6] VALADARES, Leandro Savastano. Novo regulamento de credenciamento da Aneel. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, Fórum, a. 7, n. 78, junho 2008, p.71.

[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 8ª ed. São Paulo: Dialética, 2001, p. 46.

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