Tempo de leitura: 6 minutos
Ementa: A abertura de procedimento de controle de contratos administrativos exige justa causa. Trata-se de juízo de admissibilidade indispensável, visto que não há discricionariedade outorgada ao controlador para instaurar procedimento sancionatório sem justa causa comprovada.
A doutrina brasileira ainda é muito vaga sobre a justa causa em relação aos processos punitivos que não tenham natureza disciplinar em face dos servidores estatutários. Poucos doutrinadores abordam o assunto e a matéria era sempre associada ao processo criminal. Especificamente nas relações contratuais de direito público, é recente a sua compreensão, com o rigor técnico necessário à concreção dos direitos fundamentais, garantias constitucionais e limites à atividade administrativa.
Até os dias de hoje vivenciam-se entendimento equivocado a propósito da discricionariedade para iniciar procedimento punitivo de empresas contratadas, sendo certo que que muitos processos são instaurados sem que haja uma justa causa. Na verdade, em pleno século XXI, é manifesto que um processo sancionador, inclusive nas relações contratuais firmadas entre Administração e empresas prestadoras de serviço, só pode ser instaurado, quando há evidência de um motivo justo. Afinal, para que se tenha um intuito punitivo como a suspensão de pagamento ou a rescisão de um contrato, é preciso que se tenha evidenciada de forma robusta e coesa materialidade da infração cometida no cumprimento do acordo firmado com o Poder Público que seja imputável ao contratado.
A denominada “justa causa” é fundamental no exercício do juízo de admissibilidade quanto aos processos sancionatórios, qualquer que seja sua natureza. Se não há, evidências de probabilidade, não é razoável admitir que se leve adiante um procedimento punitivo, tendo em vista os ônus e custos que lhe são ínsitos, em desfavor de quem o responde e do próprio Poder Público.
Nesse sentido, caracteriza exercício abusivo de competência ignorar que processos sancionatórios são instaurados em órgãos públicos fiscalizadores sem demonstração efetiva de ofensa ao cumprimento do contrato, com meras suposições e ilações sem base fática, as quais consubstanciam ofensa à necessidade de justa causa e desconhecimento dos pressupostos da competência de controle administrativo.
Imagine-se o custo estimado de um processo de controle, sem elementos ou planilhas que sirvam de fundamento vinculadas a uma análise específica capaz de provar divergência entre o que foi contratado e cumprido pela empresa. Vislumbram-se ônus pela realização de auditoria (praxe em esferas federativas com estrutura de acompanhamento contratual organizadas), há mobilização subsequente de órgãos (ex: controladorias), com custos altos para defesa de quem foi, em última instância, convocado para substituir a Administração quanto ao seu dever instrutório e de agir. Delineia-se um contexto de mau funcionamento do sistema, com potencial injustiça para o contratado, a exigir responsabilidade das unidades administrativas gestoras e de controle interno, com atribuição de controle de juridicidade.
Não se admite, em pleno século XXI, esferas administrativas que ignoram condições para sua atuação e desrespeitam garantias constitucionais àqueles que se relacionam com o Estado. Não é tolerável que ainda se iniciem procedimentos com base em raciocínios meramente teóricos, sem dados documentais aptos a comprovar as alegações, com acusações genéricas de que se extraem conclusões fantasiosas em relação a contratos administrativos cumpridos, com objetos legitimamente recebidos do Poder Público que, aliás, é o responsável pela arquitetura contratual originária.
O direito administrativo sancionador contemporâneo não se coaduna com procedimentos abertos sem nenhum lastro fático, sem que haja justa causa comprovada, contra contratados que passam a ter sua existência ameaçada por comportamento de arbítrio governamental. Não há discricionariedade outorgada ao controlador para instaurar procedimento sancionatório contra contratado sem um mínimo de prova quanto ao ilícito cometido, sustentado por documentos ou outros meios sólidos de evidenciar a infração. Não se admite raciocínios genéricos, sem justa causa. Não se admite inclusão de novas obrigações, ao fim da execução contratual, na instituição de uma infração retroativa não caracterizável originariamente.
Aliás, foram exatamente situações em que se verificam excessos como a presente que justificaram edição de novos diplomas como a Lei Federal nº 13.869/2019 que prevê no artigo 30 como hipótese de abuso de autoridade dar início a processo ou investigação sem justa causa, contra quem se sabe inocente. Admite-se como sujeito ativo do crime, nos termos do o artigo 2º do referido diploma, qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, sendo que, o parágrafo único o define como “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade”.
Se o controle é indispensável para que se evite a eternização de desvios decorrentes da execução viciada de contratos administrativos (e obviamente o é), exige-se do controlador o exercício responsável das suas competências, sem qualquer abuso ou inobservância dos requisitos necessários para afastar excessos ou perseguições indevidos. Isso se mostra especialmente relevante em um tempo no qual a captura de esferas administrativas e controladoras é risco frequente, em razão de uma guerra ideológica acirrada que atingiu níveis diversos do Estado brasileiro.
Destarte, um processo administrativo de controle interno instaurado sem justa causa, em face de um contratado que a Administração Pública afirmou ter cumprido o objeto pactuado, efetuando os pagamentos regularmente, consubstancia coação indevida, enquadrável até mesmo na Lei de Abuso de Autoridade. Isso porque, se não se vislumbra um fundamento razoável para falar-se em débito em desfavor do contratado ou mesmo em comportamento viciado justifique apuração, tem-se como natimorto o procedimento instaurado sem justo motivo e com claro potencial de comprometimento de quem atuou em favor do Poder Público. Em sentido contrário, se o procedimento de controle assentou-se em elementos mínimos evidenciadores de justa causa a embasar o exercício do controle pelos órgãos internos ou externos, tem-se cumpridas as condições que operacionalizam nessa seara as normas principiológicas constitucionais: legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.
O controle, quando necessário, não admite renúncia. O seu exercício deve se dar de modo razoável com o cumprimento de todas as exigências do ordenamento. Para isso os agentes públicos existimos.
O controle, quando desnecessário, não pode ser exercido, principalmente se capturado em favor de interesses que se distanciam do público primário. Excessos são tão indesejados quanto as omissões. Para evitá-los os agentes públicos trabalhamos diuturnamente.
Vale para todas as searas. Inclusive para o controle dos contratos administrativos.