TECLA SAP – Do juridiquês ao português: Capítulo 3. Seleção brasileira eliminada. E o controle, heim?

Tempo de leitura: 12 minutos

– Agora que a copa acabou, preciso perguntar uma coisa séria.

– Bem. A copa não acabou. Só a seleção brasileira foi eliminada. Mas pergunte.

– Esse negócio de “controle da Administração Pública” presta? Ou não tem como fazer isso acontecer aqui no Brasil?

Então senta que lá vem história…

Há algo que não podemos negar e que é lugar comum dizer: quem detém poder, tende a abusar dele. No Brasil, assim como em diversos outros países, a maioria das estruturas está corroída. Fraudes, desvios, jogos políticos escusos, superfaturamentos contratuais, pagamento de propinas, todos esses vícios são comuns em nossa história, inclusive a mais recente. A previsão de mecanismos de controle é uma tentativa de coibir esse tipo de realidade. Em diversas situações, a única coisa que se interpõe entre um criminoso e a consumação do prejuízo ao Estado e à sociedade é a mera possibilidade de eventual controle. Frases como “Quando isso chegar no MP…” ou “pode até fazer agora, mas cai no Judiciário” ou, ainda, “já pensou quando a Corregedoria pegar isso?” são, muitas vezes, a única forma de convencer um sujeito a desistir de um desvio ou de coisa pior.

Por outro lado, quando exageramos nos mecanismos do controle acontece o que já vimos em diversas situações: a paralisação. Ou pior: a petrificação da Administração Pública. Nenhuma autoridade se dispõe a correr riscos, sob pena de responder no futuro, com restrições graves de natureza pessoal. Ganha espaço uma concepção engessada e burocrática de administrar, em que novidades são vistas com desconfiança e receio, sendo mais confortável manter um grau seguro de ineficiência medíocre. Pode ser ruim, mas o péssimo é herança de um passado secular e com sua mera administração ninguém em regra vai preso, nem terá patrimônio declarado indisponível numa ação de improbidade. O medo prevalece e não se dá um passo adiante.

Não esqueçamos, também, que o pensamento que orienta a nossa formação jurídica é binário: certo/errado, lícito/ilícito, permitido/proibido. Isso se alia a uma tendência imatura de dividir o mundo entre “o bem” e “o mal”, cabendo a cada um tomar partido nessa luta. Afinal, ou você está comigo, ou você está contra mim. Então, de uma forma rasa, olhamos para gestores/administradores, de um lado, e para os controladores, do outro, e pensamos: “de que lado está o bem? E quem está do lado dele?” Como se pudesse ser tão simples e tudo fosse tão raso assim…

A verdade é que podemos ter (e temos em algumas situações) excelentes administradores coagidos e impedidos de atuar eficientemente por instâncias múltiplas e esquizofrênicas de controle, assim como podemos ter (e temos em outras realidades) péssimos administradores que desviam livremente recursos do erário, comprometendo a vida de milhões de brasileiros, sem sequer serem incomodados pelos diversos órgãos de controle. Esses são os extremos. As combinações podem ser as mais variadas: bons administradores e controladores equilibrados, administradores criminosos e controladores arrogantes, péssimos gestores e controladores hábeis, bons gestores e controladores que se acham Deuses. O desafio é descobrir como construir um sistema normativo em que as piores tendências de cada uma das esferas seja limitada por procedimentos que reduzam os riscos de que os respectivos vícios tornem-se um caos generalizado. Independente de o gestor ser um santo ou o demônio, de o controlador ser um gênio ou um idiota, precisamos de normas que sirvam de parâmetros seguros para a tomada de decisões, de modo a afastar excessos e insuficiências de todos eles.

Fazer isso no atual momento da ciência jurídica não é fácil. Especialmente no Direito Administrativo, vivemos um momento em que não há como fixar regras legais que procedimentalizem especificamente cada passo da atividade do administrador, nem do controlador. São claras a morosidade do processo legislativo, o excesso de demandas impossíveis de obterem resposta em regras legais específicas e por atos administrativos subsequentes, a captura do Poder Legislativo por interesses econômicos e outros escusos, além da manifesta falta de credibilidade dessa esfera como o espaço adequado para solucionar tensões como a existente entre gestor e controlador. Os princípios, com sua baixa densidade normativa, ganharam espaço tanto na sua significação feita pelo Executivo no exercício da atividade administrativa quanto no controle realizado por órgãos como Judiciário, Tribunal de Contas, Corregedorias, Ouvidorias, Advocacia Pública, Controladorias e tantos outros órgãos que exercem controle interno e externo do Executivo. Assim, cada um entende, p. ex, que “moralidade” significa algo em uma situação, sucedendo-se manifestações estatais diferentes e não raro contraditórias até que se chegue ao último órgão de controle, que detenha a palavra final (normalmente, no Poder Judiciário e, no topo da sua estrutura, o Supremo Tribunal Federal). Nesse meio tempo, tem-se insegurança jurídica, abusos potenciais de diversas espécies e o comprometimento da única coisa que é preciso, de fato, proteger: os interesses da sociedade.

No tocante à tensão entre administração e controle, o Direito deu, ao longo do tempo, respostas não uniformes. Às vezes, o pêndulo foi em direção à redução do controle e à ampliação da liberdade administrativa do gestor público. Nesse contexto de poucas regras legais prevendo mecanismos de controle, em países com histórico de graves desvios e fraudes, tem sido muito comum o agravamento dos atos de improbidade e o aumento dos crimes contra a Administração Pública. Não raro, a resposta legislativa imediata é o aumento da previsão de esferas e instrumentos de controle. A ideia de que o gestor é sempre o criminoso ganha adesão social e a ilusão de que o controlador será alguém infenso a qualquer vício corrobora que o pêndulo vá em direção ao excesso de controles. Algum tempo depois, tem-se uma Administração coagida, refém de juízos posteriores rigorosos feitos pelos controladores, impossíveis de serem realizados quando da tomada das decisões pelos gestores, sendo resultado, na melhor das hipóteses a tal petrificação da estrutura executiva. Diante de um casuísmo teratológico na fixação dos deveres administrativos por quem controla, o gestor abdica da tarefa que lhe incumbe – planejar e executar – e 1) ou simplesmente se vitimiza e culpa o controle inclusive pela negligência e imperícia administrativas; ou 2) chega a transferir a tarefa de administrar ao controlador que, então, abdica do seu papel de controle e passa a gerir. Em qualquer caso, termina dando errado, por óbvio. A premissa de “ado, ado, ado, cada um no seu quadrado” não é desrespeitada impunemente, nem mesmo no Estado.

A primeira coisa que precisamos é “elevar o debate” e isso significa parar de fazer considerações superficiais, binárias e absolutas. Por óbvio, existem profissionais competentes e bem-intencionados na gestão administrativa e no exercício do controle. Também há criminosos de ambos os lados. Infelizmente, para todos nós. Reconhecer isso é um passo essencial para que todos enfrentem as próprias culturas internas organizacionais corporativistas. Se cada um permanecer dentro da própria instituição, defendendo a amplitude de liberdade de atuação como se todos os membros fossem incapazes de qualquer desvio ou erros graves, não conseguiremos formatar paradigmas seguros que evitem ilícitos de diversas naturezas e que excluam os atuais excessos e insuficiências.

É preciso equilíbrio, racionalidade e análise ponderada de qual controle, com quais mecanismos de ação, é cabível diante de uma realidade específica. Não se combate câncer com aspirina e não se pode receitar quimioterápico para uma gripe. É preciso normatizar o controle sem o considerar a solução mágica para os problemas do Estado, nem o reputar o único responsável pelos erros da Administração Pública. Cabe-nos realizar estudos, identificar teses, fixar padrão de fiscalização e planejar como ensejar que tipo de controle para qual tipo de atividade administrativa. Ao legislar sobre essa matéria, entre a “ilusão positivista de uma única resposta para todas as perguntas” e o “surto neoconstitucionalista da ampla discricionariedade, inclusive a do controlador judicial” há de se construir uma alternativa mais adequada à realidade dos órgãos de controle brasileiros, com preocupação sistêmica de um mínimo de equilíbrio e efetividade.

É de bom tom reconhecer que não apenas “atos e contratos da Administração Pública” precisam ser controlados, mas o comportamento do Poder Público como um todo: a) emendas parlamentares que destinam recursos públicos e precisam ter efetivo comprometimento com as determinações constitucionais; b) gestão de pessoal; c) gestão do patrimônio público; d) cumprimento do mínimo a ser aplicado na saúde e na educação; e) gestão de recursos orçamentários à luz do ordenamento jurídico como um todo; f) observância das regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, inclusive arrecadação e renúncia de receita; g) regularidade e probidade nas contas dos gestores de recursos públicos e nas contas do governo; h)  constitucionalidade de privatizações, bem como de transferências realizadas por concessões, PPPs e outros mecanismos administrativos; i) concepção e implantação de políticas públicas; dentre tantos outros aspectos.

No exercício desse controle, é preciso que os diplomas legais não sejam editados aleatoriamente, com determinações não convergentes de instrumentos de fiscalização, consensualização e repressão. A preocupação com a articulação interna e externa, principalmente interinstitucional de controle, deve começar na edição da lei e culminar no cotidiano de atuação desses órgãos públicos. Atuações contraditórias e pulverizadas, sem qualquer estratégia única, somente enfraquecem os órgãos de controle e os torna inimigos da proteção ao interesse público. Modernizar essas esferas implica o trabalho de articulação e coordenação que certamente refletirá na qualidade do trabalho prestado. Para tanto, será preciso superar as resistências internas, implantar uma comunicação ágil e efetiva, mudar as culturas isolacionistas de trabalho, viabilizar a monitorização de processos cujos resultados tenham repercussão em outras instâncias e apostar em manifestações técnicas de especialistas que estejam convencidos da importância da atividade interdisciplinar dos diversos órgãos.

Outrossim, é preciso reforçar a atuação de quem, por natureza institucional, pode atuar preventivamente evitando desvios, fraudes e ilícitos. Nesse contexto, cabe-nos entrar no século XXI. A galera do Direito segue vivendo como se a inteligência artificial já não fosse realidade, seja em órgãos de controle como a CGU e o TCU, sejam em órgãos da Administração Municipal (como em Recife) ou Estadual (como em São Paulo). Será muito melhor, no lugar de negar a realidade tecnológica, admitir que mais cedo ou muito mais cedo teremos de lidar com algoritmos que definirão como atuar, também o Estado, seja o administrador, seja o controlador. É preciso pensar como compatibilizar com garantias constitucionais fundamentais a concepção dos parâmetros que, automatizados, levarão a uma série de decisões com repercussão pública. Se não fizermos isso, a tecnologia seguirá atropelando a Ciência Jurídica e potencialmente servirá como instrumento de eternizar problemas antigos, de fazer surgir novos até hoje impensáveis, sem falar no agravamento de vícios graves, em cujo combate seguimos perdedores.

Então é assim: o controle é a pior coisa se mal concebido e pior exercido. A mesma coisa vale para a atividade administrativa. Lei burra faz Administração Pública ruim, ainda mais se quem a capturou foram mentes perversas com interesses escusos. Agora… se a gente se esforçar muito para adotar parâmetros normativos melhores e instrumentalizar de uma forma mais inteligente os órgãos cujo pessoal trabalha nessas atividades de administrar e controlar, pode ser que melhore. Daqui a algum tempo. Na verdade, daqui a muito tempo. Isso se a gente começar a estudar bastante como mudar esse equilíbrio de forças agora. E definir certinho os meios de ação e de revisão. E agir sem preguiça. E seguir mudando. E não desistir diante de todos os boicotes que certamente virão. E tiver força para enfrentar a resistência das máfias que ocupam atualmente as diversas estruturas. E não sucumbir diante das derrotas. E insistir. E rever. E planejar. E aperfeiçoar. E…

Pois é.

Mas e o Brasil, heim? Gosto tanto do Tite…

 

2 Comentários


  1. NOBRE COLEGA DRA. RAQUEL CARVALHO,
    TEXTO MUITO PROFUNDO!!!!
    GOSTEI MUITO!!!
    VOU REFLETIR NOS PRÓXIMOS DIAS SOBRE O TEXTO E TE REESCREVO.
    OBRIGADO E ATENCIOSAMENTE,
    CRISTIANO EPIPHANEO

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