Defensoria pública – órgão autônomo – e o poder disciplinar

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1. Considerações iniciais

Existem algumas instituições a quem claramente o ordenamento reconhece independência no exercício das suas funções e já a partir do texto constitucional. Assim acontece com o Ministério Público, cujas competências requerem independência técnica em favor dos seus membros, o que repercute também na aferição da ocorrência de ilícitos funcionais e eventuais atos punitivos disciplinares. Não se questiona, modernamente, que Promotores e Procuradores de Justiça submetem-se à Corregedoria do próprio MP que, igualmente de modo independente, deve acompanhar ordinariamente a atuação dos membros da carreira e a quem cabe, diante de ilícitos, exercer o poder disciplinar.

A obviedade com que se encara referido pressuposto para adequada estruturação de uma carreira relevante como a dos membros do Ministério Público não se estende, tão facilmente, àqueles que integram outras carreiras, mesmo quando vinculadas a instituições com previsão constitucional que se caracterizam como órgãos autônomos. Assim acontece com a advocacia pública, a defensoria pública, dentre outras instituições. No presente artigo, será enfrentada a discussão especialmente em face da Defensoria.

 

2. A Defensoria Pública como órgão autônomo

A Defensoria Pública, nos termos do artigo 134 da Constituição da República, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV do texto magno. Além de consagrar os princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional no § 4º (inclusão pela EC 80/2014), o artigo 134 fixou no § 2º garantia de autonomia funcional e administrativa, bem como iniciativa de proposta orçamentária nos limites da LDO às Defensorias Públicas do Estado (incluído pela EC 45/2004)

As Constituições Estaduais trazem, em regra, preceitos que caracterizam a instituição e lhe traçam as atribuições basilares. Em Minas Gerais, a CE, ao tratar das funções essenciais à Justiça, também definiu a Defensoria Pública como “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a que incumbe a orientação jurídica, a representação judicial e a defesa gratuitas, em todos os graus, dos necessitados” (artigo 129 da CEMG). A Emenda à CEMG 75, de 08.08.2006, acrescentou 4 parágrafos no artigo 129, assegurando no § 1º autonomia funcional e administrativa, de modo expresso, ao órgão. Em nível infra-constitucional, destaca-se em Minas Gerais a Lei Complementar Estadual nº 65/2003, com alterações como as incorporadas após editada a Lei Complementar nº 134, de 07.05.2014, estabelecendo o regime jurídico basilar da Defensoria Pública do Estado, com fixação de normas em face do quadro de pessoal que a integra. Destaque-se, em especial, a regra do artigo 2º da LCE nº 65:

“Art. 2° – A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais é órgão autônomo integrante da Administração Direta do Poder Executivo e vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e de Direitos Humanos, nos termos desta lei complementar, ou ao órgão que vier a sucedê-la.”

Resulta claro que, embora a Defensoria Pública não seja órgão subordinado às autoridades e aos órgãos superiores do Executivo mineiro, consubstancia instituição essencial ao funcionamento da justiça que é “órgão autônomo integrante da Administração direta”, por expressa determinação legal.

Especificamente quanto ao conceito de Administração direta, certo é que essa noção partiu do ordenamento federal, inclusive anterior à Constituição da República de 1988. Nos termos do artigo 4°, I, do Decreto-Lei n° 200/67, a Administração Direta “se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e na dos Ministérios”. Assim sendo, é parte da Administração Direta federal, v.g., a Presidência da República, o Ministério da Fazenda, o Ministério dos Transportes, a Casa Civil, o Ministério das Relações Exteriores, dentre outros, bem como os órgãos que a estes encontram-se vinculados, integrando a própria União Federal. Resulta claro que o Decreto-Lei n° 200/67 conceituou a Administração Direta a partir de um enfoque subjetivo, vale dizer, mediante identificação dos sujeitos que exercem a função administrativa no âmbito federal. Sob este prisma, definiu-se a Administração Pública a partir de um conjunto de órgãos que integram a estrutura da União, a partir da Presidência da República e dos seus Ministérios. Estados e Municípios vêm repetindo tal paradigma conceitual, adaptando-o às especificidades regionais e locais, com manutenção da idéia de que Administração Direta é o conjunto de órgãos que integra o ente federativo o qual exerce, assim, de modo centralizado, as competências administrativas que lhe foram outorgadas. A Constituição da República emprega a expressão Administração Direta no sentido tradicional utilizado, no Brasil, desde o Decreto-Lei n° 200. Uma simples leitura do texto constitucional evidencia que a Constituição pressupõe como Administração Direta aquela realizada centralizadamente em cada ente federativo, por meio dos órgãos que lhe integram. Tem razão Marçal Justen Filho ao advertir para o fato de que a sede jurídica da expressão Administração Direta, atualmente, é a própria Constituição, o que limita as possibilidades legislativas de definição dos seus contornos nos âmbitos federal, estaduais, municipais e distrital:

“Mais ainda, os poderes atribuídos constitucionalmente à Administração direta não comportam ampliação por qualquer via infraconstitucional. Como se não bastasse, é impossível produzir, em nível infraconstitucional, a instauração de outras relações jurídicas entre Estado e Administração direta além daquelas previstas constitucionalmente. Para ser mais preciso, a Administração direta é uma manifestação estatal produzida em nível constitucional. O Estado e Administração direta são manifestações indiferenciáveis de um mesmo fenômeno jurídico. A Administração direta é um dos meios pelos quais o Estado se torna presente na vida social.

É possível e necessário que alguma lei infraconstitucional disponha sobre a Administração direta, indicando sua composição, seus órgãos e outros temas. Mas, na essência, o núcleo da Administração direta está determinado e delimitado constitucionalmente.”[1]

Respeitando esses parâmetros, algumas Constituições Estaduais optaram por admitir a criação de órgãos autônomos na estrutura da Administração Direta. Assim ocorreu em Minas Gerais, cuja Constituição fixou, no art. 14, que a Administração pública direta como a que compete a órgão de qualquer dos Poderes do Estado, determinando, no § 3º, ser “facultado ao Estado criar órgão, dotado de autonomia financeira e administrativa, segundo a lei, sob a denominação de órgão autônomo”.

Especificamente sobre a noção de órgão autônomo, a doutrina explicita a possibilidade de classificação dos órgãos conforme sua posição estatal, ou seja, considerando a posição ocupada na escala governamental ou administrativa. Sob esse aspecto da posição estatal, tem-se órgãos independentes, autônomos, superiores e subalternos. Os chamados órgãos independentes são os originários da Constituição e representativos dos três Poderes do Estado, sem qualquer subordinação hierárquica ou funcional, e sujeitos apenas aos controles constitucionais de um sobre o outro; suas atribuições são exercidas por agentes políticos. São também chamados órgãos primários do Estado que exercem funções precipuamente políticas, judiciais e quase judiciais outorgadas diretamente pela Constituição para serem desempenhadas por seus membros, segundo normas especiais e regimentais. Nessa categoria alguns doutrinadores enquadram as Casas Legislativas, a Chefia do Executivo e os Tribunais. Outros enumeram, ainda, o MP federal e estadual e os Tribunais de Contas da União, Estados-membros e Municípios, ao argumento de que são funcionalmente independentes e seus membros integram a categoria agentes políticos.

Já os órgãos autônomos definem-se como os que se localizam na cúpula da Administração que gozam de autonomia administrativa, financeira e técnica, participando das decisões governamentais e executando com autonomia as suas funções específicas, segundo opções políticas do Governo. Alguns doutrinadores indicam o Ministério Público como órgão autônomo, o mesmo ocorrendo com a Defensoria Pública Estadual.

Há Estados em que a caracterização da Defensoria como órgão autônomo não resulta de dispositivo expresso na CE, nem na legislação específica. Em outros, como é o caso de Minas Gerais, a determinação da Defensoria Pública Estadual como órgão autônomo resulta de expressa determinação legal (artigo 2º da LCE nº 65/03 de Minas Gerais), sendo certo que a independência característica dos órgãos autônomos na sua gestão administrativa concretiza, de modo objetivo, a autonomia consagrada no § 2º do artigo 134 da Constituição da República, bem como a independência prevista no § 4º do mesmo dispositivo. Destaque-se que o fato de a Defensoria consubstanciar um órgão da Administração Direta do Estado não compromete, em nenhuma medida, a autonomia e independência previstas no texto constitucional, em razão da natureza de “órgão autônomo” que lhe foi assegurada.

Em face de uma estrutura dessa natureza, tem-se que o Estado, para realizar a atividade que lhe cabe de garantir a assistência jurídica aos desassistidos, optou por se valer por um órgão autônomo, em claro processo de desconcentração administrativa. Com efeito, a cada ente federativo, como um Estado membro, foram atribuídas funções diversas que podem ser exercidas em estruturas administrativas que lhe são internas, constituídas exatamente por órgãos públicos. Clássica é a lição no sentido de que na centralização administrativa “o Estado atua diretamente por meio dos seus órgãos, isto é, das unidades que são simples repartições interiores de sua pessoa e que por isto dele não se distinguem. Consistem, portanto, em meras distribuições internas de plexos de competência, ou seja, em ‘desconcentrações’ administrativas.”[2] Observe-se que esta distribuição interna de competências administrativas não implica a sua transferência a outra pessoa jurídica, mas se dá dentro da mesma pessoa jurídica de direito público interno política (no caso, o Estado-membro), entre órgãos que lhe integram. Estes órgãos são partes da pessoa federativa e são escalonados sucessivamente. No âmbito do estadual e considerando essa perspectiva, a Defensoria Pública é um órgão autônomo integrante do Estado. Trata-se de um feixe interno de competências que faz parte da pessoa jurídica de direito público interno, de natureza política, Estado de Minas Gerais. A pessoa política (Estado) foi desconcentrada e um dos seus órgãos (uma das suas partes) é exatamente a Defensoria Pública que nada mais faz do que exercer a atividade administrativa de prestação de assistência jurídica aos desassistidos. Como ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro define a desconcentração como “uma distribuição interna de competências dentro de uma mesma pessoa jurídica; sabe-se que a Administração Pública é organizada hierarquicamente, como se fosse uma pirâmide em cujo ápice se situa o Chefe do Poder Executivo. As atribuições administrativas são outorgadas aos vários órgãos que compõem a hierarquia, criando-se uma relação de coordenação e subordinação entre uns e outros. Isso é feito para descongestionar, desconcentrar, tirar do centro um volume grande de atribuições, para permitir seu mais adequado e racional desempenho.”[3] Nesse sistema, “órgão público é uma unidade de atuação despersonalizada, integrada em uma pessoa jurídica, apta a expressar juridicamente sua vontade por intermédio da atuação de agentes públicos, sendo centro de imputação parcial de competências atribuídas pelo ordenamento jurídico.”[4] Isso não se altera com a evolução no tratamento normativo do órgão, fazendo-lhe não subordinado aos órgãos superiores da cúpula do Executivo, mas autônomo.

Insiste-se, portanto, que diante da estruturação da Defensoria como órgão autônomo, este consiste em um complexo orgânico, despersonalizado, do Estado a quem cabe exercer função determinada constitucionalmente, própria, de natureza administrativa. A ela caberá a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, em favor dos necessitados, com todas as peculiaridades institucionais consagradas na Constituição da República. Não há dúvida que a Defensoria Pública, ao realizar as competências previstas no artigo 134 da CR, aplica lei de ofício para satisfação das necessidades coletivas mediante prestação de um determinado serviço público, qual seja, a assistência jurídica aos necessitados. Referida tarefa consubstancia atividade administrativa, na perspectiva ampla que atualmente se lhe é dada.

Nesse contexto, a Defensoria Pública, do ponto de vista material, exerce atribuições que têm natureza administrativa (assistência jurídica aos desassistidos) e, do ponto de vista formal, não se subordina a qualquer órgão superior, mas integra a Administração direta do Estado, vinculando-se ao Executivo. Sobre essa vinculação, esclarece-se que a teoria do controle no âmbito do Direito Administrativo opõe exatamente o “controle por subordinação” (controle que decorre da relação de sujeição que existe entre os órgãos públicos hierarquizados) ao chamado “controle por vinculação”. O último consubstancia um controle externo que necessita respeitar a independência reconhecida a pessoas administrativas diversas ou a órgãos autônomos, nos termos em que previsto em lei. Considerando-se ser a Defensoria Pública um órgão autônomo, é certo que o controle cabível é o de “vinculação” que respeita a independência assegurada ao fiscalizado e que admite fiscalizações diante de previsões legais que fixem os limites específicos do controle.

Estabelecidos tais limites, é certo ser competência da Defensoria Pública fixar os critérios que estabelecem as condições de atuação dos seus membros, respeitada a legalidade administrativa, bem como exercer, dentro da sua estrutura hierárquica e com respeito à distribuição de competências, o poder disciplinar na hipótese de infração funcional por qualquer dos seus Defensores e/ou servidores públicos.

 

3. A competência disciplinar em face dos seus membros da Defensoria Pública

Os Defensores e os servidores públicos que integram o quadro de pessoal da Defensoria Pública submetem-se ao regime estatutário, porquanto são providos em cargos que, estruturados em carreiras, formam o quadro organizacional da Administração. Aos agentes superiores é reconhecido o poder não só de comandar os inferiores e de fiscalizar o cumprimento do ordenamento (atribuição hierárquica), mas também o poder de penalizar aqueles que não observarem as normas de regência (poder disciplinar). Com efeito, cabe ao agente público superior ou aquele que receber competência específica penalizar os infratores dos deveres funcionais que lhes são impostos, a fim de manter a legitimidade da atuação estatal, sem qualquer comprometimento da moralidade, da eficiência e da supremacia do interesse público. Além do objetivo claramente repressor em face do ilícito administrativo, tem-se, cumulativamente, finalidade pedagógica de desincentivar condutas semelhantes na estrutura do Poder Público.

Pode-se afirmar que a regra vigente a propósito da competência para o exercício do poder disciplinar é no sentido de pressupor, dentro de uma mesma pessoa política ou administrativa, que os superiores devem penalizar as infrações cometidas por seus subordinados. Ademais, é cabível que regra expressa no ordenamento, do “status” necessário em cada situação – constitucional ou legislativo – fixe a atribuição disciplinar em favor de órgão independente ou autônomo, ou mesmo em favor de servidor provido em cargo isolado, com específica competência disciplinar. O fundamental, quanto ao poder disciplinar, é que haja norma que preveja a competência sancionatória em face de determinadas infrações daqueles que são potencialmente penalizáveis. Esta a situação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, após a Emenda Constitucional 45, de 08.12.04. Em razão da EC 45, compete ao CNJ, originariamente ou de forma supletiva, o controle disciplinar dos magistrados, federais e estaduais, consoante dispõe o artigo 103-B, § 4°, III, e V da CR. Ao CNMP cabe idêntico poder disciplinar vinculante dos membros do Ministério Público, federal e estadual, nos termos em que estatuído no artigo 130-A, § 4°, III e IV, da CR.

A atuação disciplinar insere-se na responsabilização administrativa cabível quando um agente público comete qualquer ilícito em face da ordem jurídica. A pena aplicada ao servidor, como toda sanção administrativa, define-se como “a direta e imediata consequência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo, a ser imposta no exercício da função administrativa, em virtude de um comportamento juridicamente proibido, comissivo ou omissivo”. Esta penalidade incide em face de uma infração administrativa, a saber, “o comportamento voluntário, violador da norma de conduta que o contempla, que enseja a aplicação, no exercício da função administrativa, de uma direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo”, consoante lição de Daniel Ferreira. (FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 34 e 63)

O processo administrativo ao final de que a penalidade será aplicada transcorrerá, em regra, na pessoa de cujo quadro faz parte o infrator, sem interferência possível de outro ente ou entidade pública (RMS n° 12.467-MG, rel. Min. Laurita Vaz, 5a Turma do STJ, DJU de 22.05.2006, p. 220), devendo-se observar a autonomia de instituições criadas como órgãos autônomos, conforme garantido em dispositivos constitucionais e legais incidentes sobre a matéria. Afasta-se tal requisito apenas diante de expressa determinação neste sentido, como no caso do artigo 103-B, § 4°, III e V e do artigo 130-A, § 4°, III e IV, da CR. Ressalvadas exceções expressas na ordem jurídica, é dever do superior, além de fiscalizar a conduta dos órgãos e agentes inferiores (poder hierárquico), fazer incidir a sanção cabível diante de determinada infração (poder disciplinar), competências que não se reconhece presumidas fora do escalonamento sucessivo de competências delineado no sistema.

Diante desse contexto normativo e considerando-se a legislação específica, tem-se que a apuração da ocorrência, ou não, de ilícito funcional por parte de um membro da Defensoria Pública é competência do próprio órgão autônomo estadual. Ainda se encontra em fase de discussão no Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais a criação do CNDP, à semelhança do CNJ e do CNMP, com atuação concorrente na hipótese de apuração de desvio ético-funcional, abuso de poder e de autoridade, erros e omissões do agente público defensorial. O entendimento do STF no MS n° 28.003-DF vinculará o futuro Conselho Nacional da Defensoria Pública (CNDP), mas, por hora, tem-se a competência na esfera da Defensoria Pública Estadual para apurar fatos que caracterizem, ou não, de infração disciplinar, com exercício do poder absolutório ou punitivo subsequente.

Nesse sentido, confira-se a lição doutrinária segundo a qual “O controle ético e funcional dos Defensores é feito por sua própria Corregedoria por intermédio da instauração de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) ou Judicial, com direito ao devido processo legal, com ou sem prévia instauração de Sindicância (investigação administrativa)”, devendo-se observar a competência da Corregedoria da instituição autônoma, “sob pena de dupla aplicação de penalidade semelhante, em claro ‘bis in idem’, trazendo as mesmas características e consequências disciplinares”, bem como o controle da Ouvidoria Geral, nos termos do artigo 98, IV e 105-C, I da LONDP[5]

De fato, a Lei Complementar Federal n° 80, de 12.01.1994 (Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública), ao fixar normas gerais de organização para a Defensoria Pública dos Estados, além de assegurar autonomia funcional e administrativa para o órgão (artigo 97-A), estabeleceu como sua competência “praticar atos e decidir sobre situação funcional e administrativa do pessoal, ativo e inativo da carreira, e dos serviços auxiliares, organizados em quadros próprios” (inciso VI do artigo 97-A), bem como “exercer outras competências decorrentes de sua autonomia” (inciso VII do artigo 97-A). Ao dispor sobre a estrutura da Defensoria Pública Estadual, prescreveu que a compreende, como órgão de administração superior, a Corregedoria Geral da Defensoria Pública do Estado (artigo 98, I, “d”) definida como “órgão de fiscalização da atividade funcional e da conduta dos membros e dos servidores da Instituição” (artigo 103), com as seguintes competências:

“Art. 105. À Corregedoria-Geral da Defensoria Pública do Estado compete:

I – realizar correições e inspeções funcionais;

II – sugerir ao Defensor Publico-Geral o afastamento de Defensor Público que esteja sendo submetido a correição, sindicância ou processo administrativo disciplinar, quando cabível;

III – propor, fundamentadamente, ao Conselho Superior a suspensão do estágio probatório de membro da Defensoria Pública do Estado;

IV – apresentar ao Defensor Publico-Geral, em janeiro de cada ano, relatório das atividades desenvolvidas no ano anterior;

V – receber e processar as representações contra os membros da Defensoria Pública do Estado, encaminhad­as, com parecer, ao Conselho Superior;

VI – propor a instauração de processo disciplinar contra membros da Defensoria Pública do Estado e seus servidores;

VII – acompanhar o estágio probatório dos membros da Defensoria Pública do Estado;

VIII – propor a exoneração de membros da Defensoria Pública do Estado que não cumprirem as condições do estágio probatório.

IX – baixar normas, no limite de suas atribuições, visando à regularidade e ao aperfeiçoamento das atividades da Defensoria Pública, resguardada a independência funcional de seus membros;     (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

X – manter atualizados os assentamentos funcionais e os dados estatísticos de atuação dos membros da Defensoria Pública, para efeito de aferição de merecimento;    (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

XI – expedir recomendações aos membros da Defensoria Pública sobre matéria afeta à competência da Corregedoria-Geral da Defensoria Pública; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

XII – desempenhar outras atribuições previstas em lei ou no regulamento interno da Defensoria Pública. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

O artigo 134 da LONDF, por sua vez, fixou que “A lei estadual estabelecerá as infrações disciplinares, com as respectivas sanções, procedimentos cabíveis e prazos prescricionais”, estando em vigor no Estado de Minas Gerais a Lei Complementar n° 65, de 16.01.2003.  O referido diploma reiterou a Corregedoria Geral como integrante da estrutura orgânica da Defensoria Pública (artigo 6°, I, d) e a sua natureza de “órgão de fiscalização e orientação da atividade funcional e da conduta dos membros e dos servidores da Defensoria Pública”.

Nos termos do artigo 34 da Lei Complementar Estadual n° 65/2003, ao Corregedor Geral compete:

“I – realizar inspeções e correições funcionais nos Núcleos e nos serviços da Defensoria Pública e remeter relatório reservado ao Conselho Superior;

II – sugerir ao Defensor Público Geral, fundamentadamente, o afastamento do Defensor Público que esteja sendo submetido a correição, sindicância ou processo administrativo-disciplinar;

III – receber e processar representação contra Defensor Público e encaminhá-la, com parecer, ao Conselho Superior;

IV – propor a instauração de processo administrativo-disciplinar contra Defensor Público e servidor administrativo auxiliar e encaminhar a proposição ao Defensor Público Geral;

V – propor ao Conselho Superior, fundamentadamente, a suspensão do estágio probatório do Defensor Público;

VI – acompanhar a atuação do Defensor Público durante o estágio probatório, mediante avaliação permanente de seu desempenho;

VII – propor ao Conselho Superior, fundamentadamente, a confirmação do Defensor Público no cargo, até sessenta dias antes do término do estágio probatório;

VIII – propor, fundamentadamente, a exoneração do Defensor Público em estágio probatório, com base em avaliação especial, procedida por comissão constituída especificamente para esse fim;

IX – representar sobre verificação de incapacidade física, mental ou moral de membros da Defensoria Pública;

X – integrar como membro nato o Conselho Superior da Defensoria Pública;

XI – baixar instruções, sem caráter vinculativo e no limite de suas atribuições, visando à regularidade e ao aperfeiçoamento das atividades da Defensoria Pública, bem como à independência funcional de seus membros;

XII – manter atualizados os assentamentos funcionais e os registros estatísticos de atuação dos membros da Defensoria Pública, especialmente para efeito de aferição de merecimento, neles devendo constar:

  1. a) os pareceres da Corregedoria-Geral, inclusive o previsto no art. 52 desta lei complementar, e a decisão do Conselho Superior sobre o estágio probatório;
  2. b) as observações feitas em inspeções e correições;
  3. c) as penalidades disciplinares aplicadas;

XIII – oferecer ao Conselho Superior da Defensoria Pública, quando da composição de listas tríplices para promoção, os assentamentos sobre a vida funcional dos Defensores Públicos que satisfaçam o requisito de interstício, assim como outras informações consideradas necessárias;

XIV – exercer outras atribuições que lhe forem cometidas pelo Defensor Público Geral ou pelo Conselho Superior da Defensoria Pública;

XV – encaminhar ao Defensor Público Geral o processo administrativo-disciplinar afeto à decisão deste;

XVI – apresentar, quando requisitado pelo Defensor Público Geral, relatório estatístico sobre as atividades dos órgãos de atuação;

XVII – prestar ao Defensor Público informações de caráter pessoal e funcional, assegurando-lhe o direito de acesso, retificação e complementação dos dados;

XVIII – requisitar informações, exames, perícias, documentos, diligências, certidões, pareceres técnicos e informações indispensáveis ao bom desempenho de suas funções;

XIX – elaborar o regulamento do estágio probatório;

XX – propor ao Defensor Público Geral e ao Conselho Superior a expedição de instruções e outras normas administrativas, sempre que necessário ou conveniente ao serviço;

XXI – convocar Defensores Públicos para deliberação sobre matéria administrativa ou de interesse da instituição;

XXII – desempenhar outras atribuições previstas em lei ou no Regulamento Interno da Defensoria Pública.”

Outrossim, a legislação dos Estados habitualmente trata do regime disciplinar incidente em face dos Defensores, sendo que, em Minas Gerais, a Lei Complementar Estadual n° 65/2003, consagrando que “Pelo exercício irregular de suas funções, o Defensor Público responde civil, penal e administrativamente” (artigo 83), sendo que “A apuração da responsabilidade de membro da Defensoria Pública dar-se-á por meio de procedimento determinado pelo Defensor Público Geral, na forma desta lei complementar” (artigo 84). Há previsão de que “A atividade funcional dos membros da Defensoria Pública estará sujeita a inspeção permanente, por meio de correição ordinária ou extraordinária” (artigo 85), com previsão das penalidades nos incisos do artigo 88 (advertência, suspensão por até noventa dias, remoção compulsória, demissão e cassação de aposentadoria) e das autoridades competentes para as aplicar, quais sejam, Governador do Estado nos casos de demissão e de cassação de aposentadoria (artigo 91, I) e Defensor Público Geral nas demais hipóteses (artigo 91, II). O tratamento do processo disciplinar encontra-se nos artigos 98 e seguintes da Lei Complementar Estadual n° 65/2003, admitida a regulamentação da matéria pela Corregedoria Geral, atendido o disposto na lei (artigo 102), com aplicação subsidiária das normas baixadas pelo Conselho Superior da Defensoria e as da legislação atinente aos servidores públicos do Estado (artigo 121).

Resulta claro, diante dos mencionados preceitos legais, que o ordenamento jurídico normatiza o poder disciplinar a se exercer sobre a atividade dos Defensores Públicos estaduais, submetendo-os à Corregedoria da própria Defensoria a quem cabe apurar os fatos que demonstrem eventual ocorrência de ilícito funcional, bem como sancionar, se for o caso. Essa competência disciplinar, específica da seara administrativa do órgão, não foi reconhecida à advocacia pública, a quem cabe a orientação jurídica de órgãos da Administração Direta como a Defensoria, nos termos em que normatizado na ordem jurídica, nem mesmo ao Ministério Público, cujos poderes de atuação se exercem em searas diversas, por seus Promotores e Procuradores de Justiça, como, v.g., na apuração de improbidades administrativas. À obviedade, reconhece-se aos membros do MP independência funcional para exercer tais atribuições, sendo legítimo que a autoridade máxima da instituição, se assim entender necessário, recorra à orientação jurídica da consultoria jurídica da advocacia pública competente em matéria administrativa relativa à gestão funcional.

 

4. Conclusão

Diante de tais ponderações, é mister reconhecer ser atribuição da Defensoria Pública aferir a ocorrência, ou não, de infração disciplinar dos seus membros, com respeito à competência da própria Corregedoria. O cabimento da orientação jurídica, por membros da advocacia pública, no tocante à matéria administrativa de gestão funcional, não implica qualquer risco de ofensa à independência da instituição, porquanto assegurada a atribuição disciplinar em favor de órgão específico que integra sua estrutura.

[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 101.

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 137, itálico no original.

[3] PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito administrativo. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 361.

[4] MOTTA, Fabrício. Órgãos Públicos. “In” Administração Pública e servidores públicos. v. II. PIETRO, Maria Sylvia Zanella di e MOTTA, Fabrício. Coord.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 104.

[5]ARRUDA, Igor Araújo de. Defensor Público não exerce Advocacia Pública. Revista Jus Navigandi. Teresina: ano 18, n. 3486, 16 de janeiro de 2013.

1 comentário


  1. Indago a senhora:
    Pode a Defensoria Publica, impor a seu assistido, a penalidade de não mais prestar os serviços jurídicos gratuitos ao assistido, por conta de suspeição do defensor publico. Ao assistido não foi dado o direito à ampla defesa e contraditório, tendo sido “expulso” da Defensoria Pública sem qualquer fundamento legal que justifique. Nao há previsão legal para esta atitude.
    Então, pergunto, a quem o assistido deve recorrer para voltar a ter seu direito Constitucional da prestação gratuita dos serviços jurídicos prestados pela DP.
    Qual seu entendimento?

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