Sustentabilidade: licitação e contratos administrativos. Parte 3

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1. A definição da sustentabilidade em cada caso

Dos conceitos desenvolvidos nos artigos anteriores (partes 1 e 2 do tema “Sustentabilidade: licitação e contratos administrativos”), resulta clara a necessidade de se analisar as peculiaridades de cada contratação para definir qual a sustentabilidade adequada às características do objeto, do mercado disponível e das necessidades administrativas.

Segundo Vanice Regina Lírio Valle, tem-se desenvolvimento sustentável quando se atende às necessidades do presente, sem comprometer a habilidade das futuras gerações de satisfazer às suas próprias precisões. Além disso, os Estados reconhecem sua própria responsabilidade em garantir um meio ambiente adequado em favor das gerações presentes e futuras.[1]

Trata-se de uma definição que não se vislumbra cabível de modo abstrato em norma que, de natureza abstrata e geral, enseje, mediante o método da subsunção, reiteradas e infindas aplicações de modo direto e objetivo. É preciso que, em face de cada objeto licitado ou contratado, faça-se um juízo técnico sobre o que significará cumprir a sustentabilidade, sob seus diversos aspectos. Atente-se para o fato de que reconhecer que a sustentabilidade de uma ação é “contemplar uma eficiência não estática, que tem em conta que as condições originais da decisão, como default, não se mantém, e que essa oscilação é de ser considerada para a formulação em si de um juízo de valor quanto à efetiva qualificação daquela ação como verdadeiramente eficiente.”[2]

A proteção do meio ambiente é um compromisso inafastável das contratações administrativas, como já se elucidou. Isso significa não somente evitar a degradação de recursos naturais, mas também considerar aspectos sociais e econômicos pertinentes à realidade em questão. Para tanto, é indispensável que haja planejamento que, analisando os elementos atuais, verifique o máximo sustentável que enseje o resultado positivo para o futuro, instrumentalizando-se medidas executórias protetivas.

 

2. A matricialidade como instrumento do Estado em rede

Ao levar a efeito o juízo sobre a máxima sustentabilidade possível, entende-se necessário considerar alguns elementos dentre os quais a doutrina vem destacando “relações de matricialidade, mecanismos garantidores da continuidade da ação, prazo de maturação da política pública em desenvolvimento e indicadores de desempenho. Observe-se que esses quatro elementos dizem respeito diretamente à sustentabilidade da ação, e à legitimidade de uma eventual escolha pela sua descontinuidade.”[3]

Sobre a matricialidade, estudiosos da Ciência da Administração vem especificando mecanismos para que a noção de Administração em Rede seja exequível na realidade estatal. As observações seguintes são resultado da análise de textos de Humberto Martins e Caio Marini, em que o conceito de “governo matricial” surge como mecanismo do chamado Estado em Rede.[4]

Em primeiro plano, admite-se ser necessária uma atuação integradora quando se trata de competências do Estado. Para se falar em integração, é indispensável a presença de coerência, consistência e coordenação dos comportamentos políticos e administrativos em questão, mormente em se tratando de matéria complexa como a que imbrica proteção do meio ambiente, licitações públicas e contratos administrativos.

Nessa seara, é clara a necessidade de se atuar com coerência horizontal, a saber, buscando assegurar que os objetivos individuais e as políticas desenvolvidas por várias entidades e órgãos se reforcem mutuamente, na concreção da sustentabilidade. Já a coerência vertical tem por objetivo garantir que as práticas das autoridades e órgãos escalonados hierarquicamente reforcem-se mutuamente com os compromissos políticos mais amplos. Atente-se para a relevância da coerência temporal cuja função é assegurar que as políticas de proteção ambiental e eficiência licitatória continuem sendo efetivas ao longo do tempo e que as decisões de curto prazo não se oponham aos compromissos de sustentabilidade de longo prazo. A coerência transversal aplica-se, por sua vez, às questões transversais ou intersetoriais e intergeracionais como é o caso da matéria ambiental, dificilmente tratadas de modo coerente devido ao tratamento especializado na legislação e em diferentes áreas de governo. Por fim, a coerência setorial está associada ao grau de consistência lógica e operacional entre ações desempenhadas por diversos atores envolvidos numa mesma arena de políticas públicas. “Pretende-se, nesse sentido, que o governo matricial seja uma plataforma integradora entre estratégias, e entre estas e ações implementadoras”.[5]

Daí surge a ideia do Estado-rede, vinculado à noção de articulação e coordenação política e administrativa. Nas redes reúnem-se pessoas, órgãos públicos, autoridades administrativas e instituições em torno de objetivos comuns, com as características da estrutura de flexibilidade e dinamismo estrutural necessários em determinadas searas que exigem compartilhamento da informação e convergência de esforços.

Para tanto, é preciso revigorar o planejamento governamental de concreção da sustentabilidade, dotar a agenda estratégica de coerência e alinhar a arquitetura governamental com a agenda estratégica de governo. De fato, os programas a serem adotados e os órgãos implementadores precisam estar articulados, com a alocação efetiva de recursos de modo a se ter equilíbrio entre orçamento, pessoas e informações e a agenda estratégica.

Nesse modelo de governança tem-se uma gestão dinâmica que requer alinhamento dos esforços, levando-se em conta as múltiplas dimensões do esforço (processos, recursos, estruturas, sistemas informacionais e pessoas) a serem articulados aos resultados. Num primeiro bloco, é preciso construir uma agenda estratégica que defina propósito, resultados e forma de alcançá-los (mobilização, sondagem de expectativas, elaboração de estudos prospectivos). Um segundo bloco de providências requer alinhamento da arquitetura e a identificação da contribuição de cada unidade, mediante dimensionamento dos recursos necessários e dos incentivos às equipes envolvidas. Por fim, entende-se pertinente que haja um modo de monitoramento e avaliação quanto à realização da estratégia e contribuição de unidades organizacionais nesse sentido.[6]

Uma melhor governança e maior eficiência que sejam resultado da implantação da denominada “Administração em Rede” poderão viabilizar a atuação aperfeiçoada do Estado na concreção da sustentabilidade. A interação entre órgãos da Administração Pública deve se dar da forma mais simples possível, dando concreção às exigências constitucionais de eficiência e economicidade.

As estratégias de atuação do Estado em searas como o cumprimento do atual artigo 3º da Lei 12.349 já devem ser pensadas para ocorrerem de modo coordenado, evitando que terminem em inexecução total ou parcial.  E é numa perspectiva de atuação articulada, surge o conceito de “Administração Pública em Rede” presente quando vários órgãos e autoridades atuam, cada um na sua seara, mas de forma coordenada de modo a assegurar a proteção ao interesse público primário. Ao analisar a noção de Administração em Rede, a professora Maria Coeli invoca o princípio da coordenação “que permite integrar e unificar a ação administrativa, mediante mecanismos de compartilhamento de informações e alinhamento de diretrizes e objetivos, evitando sobreposição de competências e duplicação de níveis decisórios”.[7]

Busca-se viabilizar compartilhamento de informações que tornem possível sejam exaradas decisões administrativas tecnicamente corretas (juridicidade) e com o maior grau possível de estabilidade (segurança jurídica). Como bem acentuou a professora Maria Coeli, “a administração em redes deve buscar os chamados nós de convergência, identificando as diversas forças sociais e políticas que sobre ela atuam, para, sob a arquitetura institucional própria, construir os ambientes propícios à tomada de decisões. Não se defende aqui uma comunicatividade formal e estéril, mas o soerguimento de estruturas e expedientes administrativos plenos de conteúdo.”[8]

A doutrina já reconhece que a coordenação e a articulação de esforços pressupõem o traçado de um norte de uma linha reitora de finalidades. Para tanto, a eficiência da atuação pública global demanda que normas regulamentares que ensejem articulação subsequente, para que se possa atender o fim maior de realização do bem comum.

 

3. A legitimidade dos parâmetros normativos fixados em sede de Decreto do Chefe do Executivo

No contexto delineado, vislumbra-se a edição de parâmetros normativos que conduzirão a atuação em rede dos diversos órgãos com competência para viabilizar a sustentabilidade nas licitações e contratos administrativos. O primeiro ato normativo cabível é o Decreto do Chefe do Executivo do Estado, seguindo-se a edição de manual veiculado por atos regulatórios das Secretarias competentes. Assim sendo, constrói-se o paradigma de uma Administração Pública integrada em sua governança institucional, planejamento e execução de competências comprometida com a cidadania, com a preservação ambiental e economicidade , ao que se acresce o resultado do aperfeiçoamento no exercício das competências públicas, de modo a concretizar a exigência de eficiência e o próprio controle responsivo de legalidade.

A adoção desse modelo viabilizará a melhor concreção possível do parâmetro da sustentabilidade em cada situação específica – obras, serviços, bens, observadas as peculiaridades de determinadas categorias dos objetos licitados, a serem contratados pelo Estado. Tais aspectos devem ser considerados nos atos normativos editados pela Administração Pública, nas esferas do poder regulamentar e do poder regulatório cuja importância, enquanto dever normativo de pormenorizar a lei, já foi adequadamente analisada em artigo anterior. Devem os atos normativos considerar as esferas adequadas para explicitação da sustentabilidade, a saber, descrição do objeto licitado e fixação de obrigações contratuais a serem cumpridas pelo vencedor, evitando-se requisitos de habilitação de difícil operacionalização objetiva nas licitações. Destaca-se, no âmbito federal, a previsão de questões referentes à promoção do desenvolvimento nacional sustentável por meio de licitações e contratações públicas no Decreto nº 7.746, de 05.06.2012, com as alterações do Decreto Federal nº 9.178, de 05.06.2012. Outrossim, critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, contratos de serviços ou obras pela Administração Pública Federal restaram consagrados na Instrução Normativa SLTI/MPOG nº 1, de 19.01.2010. Diplomas estaduais e municipais também poderão fixar tais aspectos e prever expressamente os critérios ambientais nos processos de extração, fabricação, utilização e descarte de matérias-primas, ao estabelecer as especificações técnicas para aquisições de bens e contratações de obras e serviços, de modo a tornar operacionalizável o desenvolvimento sustentável em cada certame.

 

4. O Projeto de Lei nº 6.814/2017 da Câmara de Deputados

Tramita, na Câmara de Deputados, o Projeto de Lei nº 6.814/2017 que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e revoga a Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei Federal nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e dispositivos da Lei Federal nº 12.462, de 4 de agosto de 2011. Em 16.03.2018 determinou-se o apensamento do o Projeto de Lei n. 6.814/2017 ao Projeto de Lei n. 1.292/1995 e se incluiu o exame pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Referido exame mostra-se necessário, tendo em vista os seguintes artigos do Projeto:

“Art. 4º Na aplicação desta Lei serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da probidade administrativa, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da eficácia, da motivação, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e da sustentabilidade.

(…)

Art. 9º O processo licitatório tem por objetivos: I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública; II – assegurar a justa competição entre os licitantes; III – incentivar a inovação tecnológica e o desenvolvimento socioeconômico.

(…)

Art. 108. Na contratação de obras e serviços, inclusive de engenharia, poderá ser estabelecida remuneração variável vinculada ao desempenho do contratado, com base em metas, padrões de qualidade, critérios de sustentabilidade ambiental e prazo de entrega definidos no edital de licitação e no contrato.”

Os artigos 4º e 108 do projeto expressamente referem-se à sustentabilidade, tendo o primeiro a imposto como princípio das licitações e o segundo admitido que critério de sustentabilidade ambiental sejam considerados quando adotada a remuneração variável na contratação de obras e serviços. Ambos preceitos mantem o entendimento de que o certame licitatório não busca contratar o objeto “mais barato”, nem mesmo está comprometido apenas com o tratamento igualitário dos interessados, mas exige uma compreensão ampla de negócio mais vantajoso, vinculado ao atendimento de múltiplos interesses públicos, inclusive a sustentabilidade. O que chama a atenção é o dispositivo específico que trata dos objetivos da licitação (artigo 9º) mencionar no seu inciso III, ao lado da inovação tecnológica, o desenvolvimento “socioeconômico”, e não o desenvolvimento “sustentável”. Referida restrição afigura-se inadequada, uma vez que enseja possíveis controvérsias hermenêuticas futuras, o que se entende absolutamente desnecessário considerando-se o grau de evolução do Direito Administrativo na matéria.

Com efeito, se resulta clara a necessidade de considerar os objetivos do certame além do mero ganho econômico da Administração e da proteção isonômica dos licitantes, também é certo que o conceito de desenvolvimento deverá assumir parâmetros conceituais amplos, que abranjam, além da sustentabilidade econômica e social, também a sustentabilidade ambiental. Não se pode admitir que um procedimento licitatório busque desenvolvimento da economia e da sociedade, sem buscar proteger, simultaneamente, o crescimento da proteção ambiental, interesse que merece ser ponderado em cada caso, para máxima exequibilidade possível.

A esse respeito, ainda comentando a legislação anterior, Jessé Torres Pereira Junior e Marinês Restelatto Dotti explicitaram que aditar o “sustentável” à exigência de desenvolvimento nacional teve razão específica: “O motivo parece evidente: comprometer as licitações e contratações com os princípios e normas de proteção ambiental, igualmente guindados a status de política pública constitucional, com realce, tratando-se de obras, serviços e compras governamentais, para o disposto  no artigo 225, §1º, inc. V, da CF/88 (…).”[9] p. 372-373)

De fato, em se considerando que a sustentabilidade é consagrada como princípio vinculante das licitações e contratos administrativos, nenhuma razão existe para não vincular o procedimento licitatório à realização do desenvolvimento sustentável, afastando qualquer possibilidade de omissão no regime jurídico ou de controvérsia hermenêutica posterior.

Vale lembrar a lição de Daniel Ferreira sobre a sustentabilidade ao invocar a função social, função regulatória ou mesmo função macroeconômica da licitação: ‘”Não se admite mais ‘escolha neutra’ na definição do objeto ou do rol de potenciais fornecedores, devendo se considerar fatores econômicos, ambientais e sociais – em geral (por lei e por regulamento) e concretamente (em cada edital de licitação) – para regular cumprimento da ordem jurídica. E cada escolha pública deve expressar um sem número de circunstâncias que só podem ser valoradas caso a caso, uma a uma, em abstrato ou em concreto. (…) Logo, a promoção do desenvolvimento nacional pela via das licitações não é devaneio; revela – isto sim – a concretização de um objeto da República, a satisfação de um direito fundamental e o cumprimento de um dever legal.”[10]

Denota-se que uma nova legislação que trata das licitações e contratos administrativos consiste em universo de fundamental importância para solidificar a convicção relativa aos deveres do Estado quanto à concretização da sustentabilidade. Vislumbra-se, nesse novo momento, a estabilização do entendimento segundo o qual a descrição do objeto e a fixação das obrigações contratuais são momentos adequados para que, ponderados os diversos interesses envolvidos, seja enfim viabilizado o desenvolvimento sustentável em cada caso.

 

 

[1] VALLE, Vanice Regina Lírio. Sustentabilidade das escolhas públicas: dignidade da pessoa traduzida pelo planejamento público. A&C Revista de Direito Administrativo & constitucional. Belo Horizonte: Fórum, a. 11, n. 45, p. 130, jul./set. 2011.

[2] VALLE, Vanice Regina Lírio. Sustentabilidade das escolhas públicas: dignidade da pessoa traduzida pelo planejamento público. A&C Revista de Direito Administrativo & constitucional. op. cit., p. 134, jul./set. 2011

[3] VALLE, Vanice Regina Lírio. Sustentabilidade das escolhas públicas: dignidade da pessoa traduzida pelo planejamento público. A&C Revista de Direito Administrativo & constitucional. op. cit., p. 144, jul./set. 2011

[4] MARTINS, Humberto. MARINI, Caio. Um governo matricial. Estruturas em rede para gerar resultados de desenvolvimento. Acesso em 12.10.2012 no novo.fundap.sp.gov.br/egap/…/Texto%20Gov%20Matric-Caio.doc

[5] MARTINS, Humberto. MARINI, Caio. Um governo matricial. Estruturas em rede para gerar resultados de desenvolvimento. Acesso em 12.10.2012 no novo.fundap.sp.gov.br/egap/…/Texto%20Gov%20Matric-Caio.doc

[6] MARTINS, Humberto Falcão. MARINI, Caio. Um guia de governança para resultados na Administração Pública. Coeção Publix Conhecimento. Acesso em 12.10.2012 no www.esp.ce.gov.br/index.php?…um-guia…resultados…

[7] PIRES, Maria Coeli Simões. Transparência e Responsabilidade na Gestão Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 81, n. 4, ano XXIV, out./dez. de 2011, p. 66

[8] PIRES, Maria Coeli Simões. Transparência e Responsabilidade na Gestão Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, op. cit., p. 67

[9] PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 372-373)

[10] FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 148.

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