Direito Administrativo: um eterno ignorado nas execuções judiciais

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1. Apresentando a questão em bom português

O exercício da advocacia pública permite o conhecimento de situações que poucos profissionais da área jurídica têm acesso. A realidade da estrutura de representação judicial e extrajudicial do Estado é um dos aspectos que, “extra muros”, a maioria desconhece. Experiência com significativo volume de execuções/cumprimentos de sentença permite constatação da insuficiência de pessoal, patrimonial e de sistemas que ensejem atuação individualizada, tempestiva e adequada na integralidade dos processos. Ao assumir atribuições específicas nas fases executórias contra o Poder Público, é comum identificar vícios os mais diversos possíveis e, em muitas realidades, já em fase de expedição de RPV ou de precatório. Nesse contexto, não é raro que impugnações apresentadas fundamentadamente sejam indeferidas pelo Judiciário, com base em institutos relativos aos efeitos do decurso de prazo nos processos, sendo habitual decisão no sentido de que teria ocorrido preclusão ou declaração de mera intempestividade por parte do magistrado.

Para que se compreenda a repercussão concreta de entendimentos com o referido foco restrito e processual, cogite-se a identificação, p. ex., de cobrança de valores relativos a períodos indevidos, a ensejar pedidos executórios de milhões sem lastro na sentença ou no acórdão cujo cumprimento se requer. A resposta judicial não pode ser simplesmente “não é devido, mas já passou o prazo fixado para impugnação e vamos pagar milhões a mais a quem não tem direito, mesmo não tendo sido o que o Judiciário mandou na decisão do processo de conhecimento transitada em julgado”. Esclareça-se que não se trata de situação incomum, tendo em vista ser gigantesco o volume de ações cujo acompanhamento cabe à advocacia pública que, na esfera federal e estadual, cabe a quadros limitados, nos quais aposentadorias, mortes e outros afastamentos sequer vem ensejando novos concursos públicos que viabilizem provimentos dos cargos vagos. Assim, os processos crescem em progressão geométrica e, em sentido contrário, reduz o número dos profissionais responsáveis pelas defesas nas fases executórias. Isso sem mencionar as estruturas sem as quais as impugnações não se realizam, como é o caso dos setores contábeis e orçamentários. São realidades indiscutíveis que é absurdo negar conhecimento e/ou a elas simplesmente responder: “dane-se o Estado, isso é problema dos gestores públicos e dos administradores; se for para pagar a mais por causa da não alegação tempestiva, paciência. É intempestivo e pronto: não acolho as provas produzidas a destempo pelo Poder Público.”

 

2. Da indisponibilidade e os seus efeitos

Em que hipóteses como a mencionada “in retro” está-se discutindo ofensa ao patrimônio público, constituído por bens que são de titularidade de toda a sociedade, protegidos pelo princípio da indisponibilidade. O referido princípio tem norteado o Judiciário a corrigir absurdos nos gastos decorrentes de ações judiciais e comportamentos administrativos. Pagamentos dúplices ou de verbas indevidas, falta de amparo legal ou inobservância dos limites da decisão transitada em julgada, todos esses vícios merecem rechaçamento pelo Judiciário, sendo hipótese expressa que autoriza embargos pela Fazenda Pública quando executada por quantia certa, nos termos do inciso IV do artigo 535 do CPC/2015.

Buscando explicitar o sentido da indisponibilidade, como “pedra de toque” do regime jurídico administrativo, ao qual se atribui força coercitiva positiva e negativa, eis que deduzido de regras da Constituição de 1988 e da supremacia do interesse público, trazemos a lume as valiosas lições do professor Manoel Messias Peixinho:

“Neste princípio, o que é mais importante salientar é que o administrador público não pode gerir o Estado desvinculado do interesse público. Indisponibilidade dos interesses públicos quer dizer obediência obsequiosa aos direitos fundamentais e aos valores constitucionais eleitos pelo constituinte embrionário. Indisponibilidade, no contexto do direito administrativo, não só é ato de não poder dispor com liberdade dos deveres entregues à tutela do administrador, mas, e isto é fundamental anotar, é dever de prover a coisa pública com eqüidade, isonomia, publicidade, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, enfim, com todos os demais princípios explícitos e implícitos, enraizados no direito administrativo, que são afluentes do princípio da indisponibilidade do interesse público.”[1]

É lugar comum afirmar que a Administração não titulariza os interesses públicos, premissa da qual decorre a indisponibilidade de tais interesses pelo agente encarregado de, na sua gestão, protegê-los. Os órgãos e entidades estatais são meros instrumentos da necessária realização da função administrativa em cujo exercício são concretizados os fins superiores destinados ao benefício social. Assim sendo, cabe ao órgão de representação judicial do Estado, bem como o Judiciário, atentar para a máxima proteção possível aos bens públicos, sob pena de ofensa ao princípio da indisponibilidade do interesse público. A doutrina vem insistindo na obrigação de o advogado público promover a defesa do patrimônio público, sem cogitar de faculdade ou discricionariedade:

“É que o representante do ente público, na verdade, encarna o próprio Estado-Administração judicial e extrajudicialmente. Assim, não está obrigado a apenas defendê-lo em situações de conflito. Tem também o dever de agir, tomando a iniciativa de promover ataques judiciais para a defesa do patrimônio público, tendo em vista os princípios constitucionais que norteiam este mesmo Estado-Administração que ele representa, entre os quais, por exemplo, o da indisponibilidade.”[2]

 

3. Vedação de enriquecimento sem causa

Além disso, incumbe registrar ser cláusula geral a vedação de enriquecimento sem causa no ordenamento brasileiro, que como fato e princípio impede o ganho indevido de um, às custas do empobrecimento do outro. Trata-se do repúdio ao locupletamento indevido, o que se acentua quando o prejuízo é sofrido pela sociedade, cujos recursos subsidiam o erário, em favor de um credor do Estado, que deve observar os parâmetros da decisão judicial transitada em julgado e a incidência do ordenamento, tal como definido pela jurisprudência. A propósito do instituto, tem-se o lúcido ensinamento de Cezar Fiúza:

“Os requisitos do enriquecimento sem causa são três:

1º) Diminuição patrimonial do lesado.

2º) Aumento patrimonial do beneficiado sem causa jurídica que o justifique. A falta de causa se equipara à causa que deixa de existir. Se, num primeiro momento, houve causa justa, mas esta deixou de existir, o caso será de enriquecimento indevido. O enriquecimento pode ser por aumento patrimonial, mas também por outras razões, tais como, poupar despesas, deixar de se empobrecer etc., tanto nas obrigações de dar, quanto nas de fazer e de não fazer.

3º) Relação de causalidade entre o enriquecimento de um e o empobrecimento de outro. Esteja claro, que as palavras ‘enriquecimento’ e ‘empobrecimento’ são usadas, aqui, em sentido figurado, ou seja, por enriquecimento entenda-se o aumento patrimonial, ainda que diminuto; por empobrecimento entenda-se a diminuição patrimonial, mesmo que ínfima.

4º) Dispensa-se o elemento subjetivo para a caracterização do enriquecimento ilícito. Pode ocorrer de um indivíduo se enriquecer sem causa legítima, ainda sem o saber. É o caso da pessoa que, por engano, efetua um depósito na conta bancária errada. O titular da conta está se enriquecendo, mesmo que não o saiba. Evidentemente, os efeitos do enriquecimento ocorrido de boa-fé, não poderão ultrapassar, por exemplo, a restituição do indevidamente auferido, sem direito a indenização.”[3]

Destarte, sempre que houver ausência de fundamento jurídico para alguém fazer jus a que uma determinada parcela integre seu patrimônio, deve incidir a proibição de enriquecimento sem causa, nos termos do artigo 884 e 885 do Código Civil, incidente nas relações de direito público, com fulcro no princípio da moralidade objetiva e da legalidade estrita. Afinal, contraria o mínimo da ética que deve prevalecer nas relações jurídicas que alguém absorva como seu um determinado bem sem lastro para tanto, sendo contrário à mais básica noção de legalidade estrita pagar um terceiro com dinheiro público além do direito que lhe seja deferido.

Também a jurisprudência vem aplicando a indisponibilidade e a proibição do enriquecimento sem causa como base do controle de legalidade, inclusive em processos judiciais, já em fase de cobrança forçada, quando intempestivos embargos ou impugnação ao cumprimento de sentença. Trata-se de orientação dos Tribunais prevalecente já à época do CPC/73:

“Em que pesem intempestivos os embargos à execução de sentença opostos pelo INSS, cabível o seu recebimento e o consequente exame das razões ventiladas na inicial, em face da alegação de excesso e da indisponibilidade do interesse público, incumbindo ao juiz da execução verificar de ofício a exatidão dos cálculos apresentados, a fim de evitar enriquecimento sem causa em detrimento do erário.”[4]

 

4. Da tensão em face da segurança jurídica e a primazia da juridicidade. A verdade material e a presunção de legitimidade dos comportamentos públicos.

Seria teratológico que, diante de prova de cobrança excessiva em desfavor do dinheiro público, prevalecesse decisão de pagar ilicitamente determinada verba ao simples (e absurdo) argumento de expiração de prazo para a manifestação pública. Embora seja importante para o sistema jurídico a tempestividade das declarações de vontade do Estado, não se pode atribuir ao decurso do tempo o efeito de tornar lícitos pagamentos e comportamentos contrários ao ordenamento vigente. Diante de uma tensão entre a segurança jurídica (pelo decurso de prazo administrativo ou processual) e o cumprimento da juridicidade e da indisponibilidade do interesse público (essenciais à própria estabilidade do sistema), é preciso reconhecer a primazia da segunda exigência, máxime se se observar a inadmissibilidade de uma visão formalista do Direito. Em pleno século XXI, deve-se atentar para a técnica da ponderação segundo a qual, em situações como a ora em exame, a norma final a prevalecer é aquela que implique menor sacrifício do núcleo dos direitos em questão. Considerando a indisponibilidade do interesse público, a vedação de enriquecimento ilícito, a juridicidade administrativa, a função cogente que obriga os agentes públicos

De fato, é contrário à juridicidade administrativa integrar por duas vezes um mesmo direito em favor do credor ou lhe reconhecer verba indevida ou determinar pagamento de montante prescrito ou qualquer outro absurdo fático qualquer capaz de deteriorar o erário. Não se trata de uma visão “consequencialista” e “atécnica” do direito processual ou administrativo, mas de se levar a efeito uma interpretação sistêmica, comprometida com a integração de aspectos basilares à preservação do patrimônio público indisponível.

Em um momento de evolução na solução dos conflitos de interesses no qual o Estado incorpora medidas como uso de “inteligência artificial”, inclusive no Poder Judiciário[5], não há que se manter uma interpretação restritiva e formalista, que tenha como assento somente a segurança jurídica com ignorância de todas as demais exigências principiológicas e de regras negais, máxime se o resultado é a recusa de vigência do artigo 5º, XXXV da Constituição da República, com ofensa ao que determina o ordenamento vigente. Observe-se que qualquer agente público que tem por função aplicar as normas do sistema jurídico deve garantir a primazia da verdade material, pelo que servidores, controladores, inclusive magistrados, estão obrigados à fazer prevalecer a certeza e a correção quanto aos pressupostos fáticos essenciais à preservação da legalidade. Se, em dada situação concreta, tem-se demonstrado erro na cobrança feita do Estado, é manifesta a ausência de lastro que sirva de motivo do ato estatal, sendo mister que a autoridade competente rechace o divórcio entre o ordenamento, a realidade processual e administrativa.

Não se ignorem os efeitos da presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública que, aliados à indisponibilidade, exigem a primazia do conteúdo das manifestações de vontade administrativas e dos atos de defesa do próprio ordenamento, tanto na via processual, como materialmente nas relações jurídicas entre Estado e terceiros. A jurisprudência vem insistindo na repercussão de tais premissas de modo a afastar qualquer consequência restritiva e desfavorável que seja cogitada na hipótese de descumprimento de prazo pelo Poder Público, até mesmo quando se trata de contestação intempestiva.[6] Sublinhe-se que não há que se falar em presunção de veracidade de quaisquer elementos contrários apresentados pela parte que se relaciona com o Estado, também na via processual, eis que institutos como a preclusão processual ou semelhantes não podem resultar na recusa de vigência e validade da presunção de legitimidade que materialmente protege o interesse público primário defendido pela Administração Pública. Em outras palavras: efeitos da revelia, preclusão ou outras consequências pelo decurso do tempo não podem incidir no caso de indisponibilidade do direito material controvertido, o que é exatamente a hipótese de pagamento indevido às custas de verbas do erário.

 

5. A repercussão da LINDB na fase executória dos processos judiciais contra o Poder Público

Deve ser assegurada a vigência da Lei nº 13.655, de 25.04.2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), passando a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (…)

Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. (…)

Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.”

Decorre dos transcritos dispositivos da LINDB o dever do gestor público e do controlador, inclusive o magistrado, analisarem consequencialisticamente o que resulta da sua atuação, impondo-se o mesmo ônus para ambos: quem age e quem controla o comportamento anterior (artigos 20 e 21). Também se tornou obrigatória a consideração da realidade fática anterior, atentando para as limitações enfrentadas pelos agentes da Administração Pública (artigo 22). Tem-se claro o objetivo das normas no sentido de exigir análise das consequências jurídicas da competência, seja de execução, seja de controle, exercida na espécie, o mesmo ocorrendo no tocante aos aspectos preliminares à atividade em questão. A indicação da LINDB no sentido de que é necessário “cogitar o resultado” tem por finalidade impedir que o controlador limite-se a reconhecer a existência de um dado vício ou mesmo imponha os efeitos da intempestividade de uma manifestação, sem sequer cogitar do comprometimento das demais normas, da realidade absurda que daí pode resultar, nem mesmo das alternativas da ação pública adequada na hipótese. A ideia é a de que, sendo obrigado a ponderar a situação em tensão, diante da realidade administrativa, para as especificar, termine a autoridade ou órgão controlador por refletir se a extinção ou medida tomada é, de fato, a que melhor protege o interesse público e, assim, se é a decisão conforme o ordenamento, ou não.

Na hipótese de se ter evidente um vício no pagamento de um credor do Estado, seja por excesso ou nulidade da cobrança, é manifesto que o Juízo não pode prestar a tutela jurisdicional limitando-se a afirmar a intempestividade da manifestação, sendo imprescindível que analise as consequências práticas da sua decisão (artigos 20 e 21 da LINDB) e as circunstâncias objetivas que condicionaram a realidade em questão (artigo 22 da LINDB). Em se tratando de um Estado com graves e notórios problemas orçamentários como o de Minas Gerais, com a representação judicial realizada por quadros manifestamente insuficientes e sem infraestrutura adequada, com um passivo processual gigantesco causado por uma até agora inevitável judicialização dos litígios com o Poder Público, não é razoável cogitar de deixar alguém receber a mais do erário, sabendo-se dessa ilícita realidade; não é admissível legitimar gasto de dinheiro público (no sentido de “recursos que pertencem ao povo mineiro”) fora dos parâmetros da juridicidade. À obviedade, o que se persegue cotidianamente é que nenhum tipo de intempestividade ocorra e essa é a batalha diária de todos os operadores do direito que laboram em favor do interesse público, inclusive dos representantes da advocacia pública; contudo, em situações nas quais se a constate, não é imaginável ignorar consequências desastrosas para os interesses da sociedade que, em última circunstância, é quem subsidia a existência de todo o sistema. Mais do que isso, não se pode admitir uma interpretação isolada, limitada e restritiva que termine por sacrificar um sem número de normas cuja primazia é nosso dever perseguir.

 

6. Da obrigação judicial no controle da execução. O artigo 518 do CPC e os efeitos da coisa julgada.

Além desses aspectos materiais decorrentes da própria legalidade administrativa, deve-se atentar que, na fase de cobrança forçada de crédito reconhecido em juízo, mesmo de ofício pode e deve o juiz da execução atuar, sempre que o exequente se afastar dos exatos termos do direito consignado no título executivo judicial, conforme ensinamento de Humberto Theodoro Júnior em obra recente:

“No caso de execução forçada, além dos requisitos genéricos para qualquer postulação em juízo, exigem-se condições de procedibilidade próprias, quais sejam, a existência de um título executivo válido e que traduz obrigação certa, líquida e exigível.

Deve a execução não somente instaurar-se com base no conteúdo desse título executivo, mas também desenvolver-se dentro dos seus limites. São requisitos e condições que devem preceder todo e qualquer ato executivo. Ao desviar-se dos requisitos e condições legais, haverá execução sem título ou execução fora de sua força executiva. Haverá, pois, um desrespeito a condição de procedibilidade da execução. A discussão e o acertamento quanto às condições de procedibilidade da execução é algo que se faz no bojo do processo de execução, obviamente.

O que se há de distinguir é a complexidade da questão concreta a ser acertada ou a origem do desvio, de modo a ser demandado ou não processo de conhecimento para repetição do indébito. Via de regra, ocorrendo o indébito ou a constrição e entrega indevida de um bem, por desvio na condução do processo executivo, uma vez que representa excesso de execução ou execução sem título, corrige-se o defeito, promovendo-se a repetição, dentro do mesmo feito.”[7]

Cabe ao juiz o controle da execução mesmo após superado o prazo para interposição de embargos do devedor ou o lapso temporal fixado para impugnação ao cumprimento de sentença, seja por provocação do executado, seja mesmo de ofício, conforme admite a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SENTENÇA. DISPOSITIVO TRÂNSITO EM JULGADO. CORREÇÃO A QUALQUER TEMPO. POSSIBILIDADE. RESPEITO À COISA JULGADA. OBEDIÊNCIA AOS LIMITES DEFINIDOS PELO JULGADOR DO PROCESSO DE CONHECIMENTO. 1. Fixado pela sentença trânsita, o termo a quo da fluência dos juros, é defeso modificá-lo na execução, cujo escopo é tornar efetivo o julgado, sem ampliá-lo.

  1. A correção do rumo da execução, para fins de dar fiel cumprimento ao dispositivo da sentença trânsita em julgado pode ser engendrada de ofício pelo Juiz, em defesa da coisa julgada, atuar que só preclui com o escoamento do prazo para a propositura da ação rescisória.
  2. A execução que se afasta da condenação é nula (nulla executio sine previa cognitio), por ofensa à coisa julgada, matéria articulável em qualquer tempo e via exceção de pré-executividade.
  3. O processo de execução de título judicial não pode criar novo título, o que ocorreria, in casu, acaso se considerasse a possibilidade do cômputo de juros moratórios a partir de termo a quo diverso daquele estabelecido em decisão final transitada em julgado.
  4. Consequentemente, mesmo diante da ausência de impugnação específica da Fazenda Nacional em relação à inexatidão engendrada pela Contadoria Judicial quanto ao cômputo dos juros moratórios a partir da citação, e não do trânsito em julgado, revela-se possível sua correção ex officio pelo Magistrado, porquanto medida de defesa da Jurisdição conquanto conferidora da segurança das decisões judiciais passadas em julgado.
  5. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais.
  6. Recurso especial conhecido e improvido.[8]

O próprio artigo 518 do CPC/2015 determina que “Todas as questões relativas à validade do procedimento de cumprimento da sentença e dos atos executivos subsequentes poderão ser arguidas pelo executado nos próprios autos e nestes serão decididas pelo juiz.” A amplitude da discussão admitida na fase executória, relativa aos aspectos da validade dos atos pertinentes ao cumprimento de sentença e subsequentes, tornou até mesmo desnecessária a exceção de pré-executividade, visto que possível, por simples petição, as alegações adequadas, sem limitação dos meios de prova. Nesse sentido, o processualista baiano, Fredie Didier Júnior:

“O art. 518 do CPC autoriza a alegação, por simples petição, de ‘todas as questões relativas à validade do procedimento de cumprimento da sentença e dos atos executivos subsequentes’. A regra aplica-se à execução fundada em título extrajudicial, tendo em vista o comando do art. 771, parágrafo único, do CPC. Note que a regra autoriza a alegação, por simples petição (exatamente a forma da ‘exceção de pré-executividade), de qualquer questão relativa à validade do procedimento executivo e dos atos executivos, sem, sequer, limitar os meios de prova dessa alegação – é, portanto, uma possibilidade nesse aspecto, ainda mais elástica do que a ‘exceção de pré-executividade’.”[9]

Como bem elucidou o processualista e Ministro do STJ Luiz Fux, “a execução opera-se como instrumento de efetividade do processo de conhecimento, razão pela qual deve seguir rigorosamente os seus limites, que por seu turno são impostos pelo dispositivo sentencial trânsito em julgado, passível de ser corrigido a qualquer tempo, em respeito à eficácia preclusiva da coisa julgada que o reveste, restando indiferente a ausência de impugnação específica do cálculo que a desobedece. Raciocínio inverso implicaria criar um novo título executivo em processo cujo escopo é dar efetividade àquele cuja decisão transitou em julgado.”[10]

De fato, não é razoável imaginar que poderiam amparar que, reconhecido um determinado direito na sentença ou no acórdão, seja executado outro direito. Afinal, a execução de uma decisão judicial é, salvo a incidência de normas de ordem pública, restrita aos termos em que restou fixado o direito na sentença ou no acórdão, conforme os limites do pedido pelo interessado na inicial. Não é juridicamente possível que se transmute, já na fase de execução, um direito em outro, maior e ampliado, sob pena de inobservância dos limites da coisa julgada e ignorância do que foi pedido na inicial do processo de conhecimento, sendo deferido pelo magistrado. Com a devida vênia, nenhum credor pode exigir o cumprimento de obrigação a que o Poder Público não foi condenado adimplir, sendo-lhe vedado ignorar os termos da decisão exequenda e as normas do ordenamento vigente.

Todas as referências de julgados do item 6 do artigo foram indicação generosa do Procurador do Estado de Minas Gerais Dr. Maurício Barbosa Gontijo.

[1] Os Princípios da Constituição de 1988. Organizadores: Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, p. 462-463.

[2] REIS JÚNIOR, Antônio José dos. A obrigatoriedade do procurador do ente público de propor a ação de improbidade administrativa, Revista do TRF da 4ª Região, disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao013/Antonio_Junior.htm. Acesso em 03.04.2019, sem destaque no original.

[3] FIUZA, César. O princípio do enriquecimento sem causa e seu regramento dogmático. Disponível em http://www.arcos.org.br/artigos/o-principio-do-enriquecimento-sem-causa-e-seu-regramento-dogmatico/. Acesso em 03.04.2019.

[4] Apelação Cível nº 0004764-07.2010.404.9999, rel. Desembargador Joel Ilan Paciornik, 1ª Turma do TRF da 4ª Região, DJe 02.03.2011.

[5] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380038.

[6] “Embora tenha sido certificada a intempestividade da contestação ofertada pelo demandado, ora Apelado, o art. 320, II do CPC/73 é claro ao afastar o efeito da presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo Autor na hipótese de indisponibilidade do direito material controvertido, como é o caso, visto que o cerne da presente demanda reparatória envolve a legalidade de procedimento de concurso público para o ingresso no serviço público, nos termos do art. art. 37, II da CRFB/88”. (Processo nº 0151929-11.2014.4.02.5105, rel. Desembargador Guilherme Diefenthaeler, 8ª Turma Especializada do TRF da 2ª Região, julgamento em 12.09.2018)

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. MACIEL, Eduardo Oliveira Horta. O desvio da execução e a repetição de indébito no mesmo processo in “Processo Civil: novas tendências” em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 284.

[8] REsp nº 531.804-RS, rel. Ministro Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJe de 16.02.2004.

[9] DIDIER Jr., Fredie et al. Curso de Direito  Processual  Civil. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 539.

[10] voto do Ministro Luiz Fux no REsp nº 531.804-RS, STJ DJe de 16.02.2004.

 

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