Tempo de leitura: 13 minutos
O nascimento da série “Tecla SAP”
A impressão para quem trabalhou desde a manhã de quarta até a madrugada dessa quinta-feira preparando uma palestra é de que parte do país acompanhou, voto a voto, a decisão do STF. As reações foram as mais distintas possíveis e apareceram no whatsapp do celular que insistia em vibrar ao lado dos livros e da tela do computador. Com o passar do tempo, o cansaço derrubou os humores e as reclamações sobre a prolixidade e o peso do linguajar jurídico começaram a dominar, superando os comentários sobre o conteúdo dos votos.
Primeiro, uma grande amiga: “Irmã me explica: É realmente necessário levar 40 minutos para proferir um voto?”. Pontuei que era um caso especial, que teria repercussão na vida política do país e de milhares de outras pessoas, sem falar nas consequências eleitorais, para o funcionamento da magistratura, na ciência do Direito e muito mais. “Não vai terminar nunca. Ninguém merece.” Apelando para o vínculo de amizade, contra-argumentei: “Se fosse eu, falaria três horas…” Sem respeito, afirmou que mandaria cortar o microfone e que deveríamos trabalhar com mais objetividade. Insisti: “Há juristas muito objetivos. Mas prolixos. O volume de argumentos é grande.” Impiedosa, Luciana Leroy concluiu: “Mesmo os que gosto de ouvir, acho que demora demais. Me perco. Nós, pessoas normais, somos disléxicos para o Direito. Vocês deveriam considerar isso.”
Já meia noite, não resisto e abro o facebook para ver se havia o resultado final. Encontro, no alto da linha do tempo, uma das professoras da “Terapia da Palavra”, curso de literatura virtual. A delicadeza e português impecável da mestre não resistira às horas na frente da tv: “”Falar português claro deveria ser um preceito fundamental dessa bagaça. Num ‘guento com juridiquês.” E ainda: “O Brasil é de um lado essa gente que fala difícil, incompreensivelmente e [acha que] bonito e do outro aquela estapafurdice da câmara na votação do impeachment. Num tem como isso dar certo.” Tentei sensibilizar, mais uma vez: “Eu não assisti nada pq estou trabalhando. Sei juridiquês e uso muito. É horrível, elitista e é preciso mudar isto. Pra quem é viciado, tarefa inglória…”
Entre as dezenas de comentários, um me fez refletir: “Tinha de ter um dicionário do Direito para o português”. Reconheci que isso facilitaria bem a vida… Há muitos anos, quando leciono direito administrativo para servidores e alunos ainda sem formação técnica suficiente, tento, por alguns momentos, abandonar o linguajar estritamente jurídico e traduzir o conteúdo para expressões corriqueiras, com sotaque, um jeito de falar local, de modo a facilitar a absorção de tantos conceitos. Fiquei pensando o quanto é pior com o texto escrito (especialmente quando a redação jurídica pessoal é muito pesada) e que seria interessante fazer uma Série que funcionasse como “tecla SAP” e, assim, que traduzisse o Juridiquês para o português comum, facilitando a vida das pessoas.
Pois então esteja oficialmente aberta a conversa ao pé do ouvido, bem mineira, às vezes baiana, de tradução do Direito ao mundo real: A SÉRIE “TECLA SAP: DO JURIDIQUÊS AO PORTUGUÊS NO DIREITO ADMINISTRATIVO”
Capítulo 1 – A Motivação
O professor Paulo Modesto publicou exatamente na noite do dia 04 de abril, um artigo escrito há algum tempo – “O Imbroglio na nomeação de Ministros de Estado” (http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/raquel-melo-urbano-de-carvalho/o-imbroglio-na-nomeacao-de-ministros-de-estado-) – em que trato do dever de motivação no exercício das funções de governo e administrativa. Uma amiga médica me implorou: “Traduz, pelo amor de Deus?” Ela se referia a frases como essas:
“Na verdade, não só a existência do motivo, mas a própria motivação, é exigência vinculante da prática de qualquer comportamento público, inclusive atos de governo. Não se trata de requerer exaustiva indicação fática ou extenso raciocínio jurídico que amparem a ação estatal. Basta que, de forma sucinta, os fundamentos normativos e a situação empírica sejam demonstrados, de modo que seja possível aferir o cumprimento das normas principiológicas de regência.
A verdade é que se evoluiu no tocante à posição originária do Direito Administrativo brasileiro a propósito do dever de motivar os comportamentos estatais, em especial os atos de governo praticados por agentes políticos. Segundo a primeira corrente, não haveria a obrigatoriedade de enunciar os pressupostos de fato do ato administrativo, salvo na hipótese de ato vinculado ou em face de expressa exigência legal. Diverge-se deste entendimento segundo o qual a discricionariedade que outorga à autoridade uma margem de liberdade para escolha segundo conveniência e oportunidade políticas evidenciaria a desnecessidade de que sejam explicitadas as razões empíricas e teóricas da opção realizada. Ao contrário, defende-se que não se pode admitir que qualquer conduta do Estado, independentemente da sua natureza vinculada ou discricionária, política ou administrativa, possa tornar-se realidade sem a indicação do seu suporte fático e jurídico, principalmente em se tratando de um Estado que se pretende Democrático de Direito.
Mesmo diante da omissão legislativa de exigência expressa de motivação, decorre tal obrigatoriedade do modelo de Estado traçado na Constituição em vigor. Quem exerce poder em nome dos cidadãos, a eles têm de indicar as razões da sua escolha e todas devem necessariamente subserviência à Constituição. Não se ignore que os princípios inafastabilidade da jurisdição, moralidade, transparência, impessoalidade e republicano, dependem da indicação dos motivos fático e legal do comportamento do Estado de modo que seja possível avaliar o cumprimento do seu teor, ou não. Sem motivação, é inviável o controle relativo à concretização do texto constitucional naquela hipótese.
(…) O fato de haver discricionariedade política (…) (e há e esse espaço de liberdade deve ser mantido) não significa ausência de limites constitucionais, nem mesmo afastamento do dever de motivar expressamente a escolha feita.
Se, a despeito da obrigatoriedade de motivação, a autoridade não se desincumbiu do seu dever, esta falta por si só, caracteriza, em princípio, um vício de conteúdo na ação do Estado, pois significa inobservância de princípio implícito no texto constitucional, deduzido de vários outros como transparência, eficiência e moralidade. Há decisões judiciais no sentido de que a falta de motivação caracteriza, por si só, arbítrio e ofensa ao ordenamento capaz de atrair imediata repulsa pelo Judiciário. Em outras palavras, a simples ausência de fundamentação, que já implica em falta de transparência no tocante às razões de fato e de direito embasadoras do comportamento do Estado, nega vigência a garantias constitucionais basilares, comprometendo a necessária publicidade. Doutrinadores e Tribunais já consideraram que o descumprimento do dever de motivar significa ofensa da autoridade ao direito subjetivo público de todo cidadão ver revelados os pressupostos de fato ou de direito que permitiram ou exigiram o comportamento administrativo.
Embora haja firme posição doutrinária e jurisprudência no sentido de que não se pode ter condescendência com vícios na motivação, igualmente não é lícito ignorar que, em determinadas situações, invalidar o comportamento público exclusivamente com fulcro na falta de motivação clara e lúcida, prévia ou simultânea ao ato, não atende o interesse público primário, pois é possível aferir a juridicidade e a essencialidade da conduta pública para satisfação das necessidades coletivas. Nestes casos excepcionais, cumpre ponderar as normas principiológicas em tensão, fazendo prevalecer aquela que efetivamente conduza à prevalência do interesse social.”
Disso tudo aí, alguns pontos são importantes de entender:
Primeiro, nem todo mundo pensa como eu. E, lógico, posso estar errada e quem diverge certo. Mas tentando explicar meu raciocínio e mostrar porque acho adequado esse jeito de ver as coisas, digo que qualquer pessoa que exerce poder em nome de outra tem que explicar porque está fazendo aquilo daquele jeito. Então se uma autoridade pública exerce poder que é da população, tem que explicar direitinho as razões de fazer algo daquela forma específica aos cidadãos. Ela deve satisfações ao povo. E se não fizer isso, não dá nem para saber se ele fez o que podia, dentro dos limites que podia.
Não interessa se estava tudo escrito direitinho na lei, tim tim por tim tim (tipo “faça X. Não Y. Não Z. FAÇA X”), ou se a coisa estava meio vaga, com uso de umas expressões aaaaamplas tipo “interesse público” que ninguém consegue, de cara, saber direito o que é. Não importa. O que importa é que X ou “interesse público” têm relação com um poder que a autoridade pública não é “dona” dele. Ela, na verdade, é um instrumento para que o poder seja exercido em favor das pessoas. Sabe quando o piano é o instrumento da música? O pneu é o instrumento do carro, sem o qual ele não anda? Pois é. O Governador, o superintendente, o técnico, esse povo todo é só instrumento do poder no Estado. Nada é deles. Eles são pessoas-instrumento de fazer o que é preciso. Tem umas regras de como devem agir. É preciso que expliquem como e por que fazem, para que saibamos se eles estão seguindo as regras. É preciso reconhecer que eles acabam participando um pouco (ou muito) da própria definição das regras, porque quem toca o piano escolhe a força da interpretação da partitura. De todo modo, não dá para transformar a Quinta Sinfonia de Bethoven em Que Tiro é Esse?… E se ele não explicar como está tocando e porquê ninguém vai conseguir ter certeza de que as notas eram para ser aquelas mesmas.
O principal, portanto, é que QUALQUER COMPETÊNCIA GOVERNAMENTAL OU ADMINISTRATIVA TEM DE SER MOTIVADA, segundo o que eu penso.
É quando se torna indispensável entender que diabos é motivação. O que é “motivar”, afinal de contas?
No juridiquês, motivação é “indicar o motivo e a fundamentação jurídica do ato”. Isso significa que motivação é explicar a realidade (os fatos, os acontecimentos, o que aconteceu) e as normas (o que está escrito na Constituição, nas leis, nos decretos e em um monte de norma que existe – circular, resolução, portaria, etc). Ou seja, motivar é contar um causo e dizer, bem explicadinho, o Direito que serve de base para o causo.
Exemplificando: A motivação de um ato de demissão é: Em se considerando que restou comprovado no processo disciplinar, conforme parecer de flsXX, que o servidor acusado recebeu indevidamente 2 milhões de reais do licitante para ser o único habilitado no procedimento, que o princípio da moralidade está previsto no artigo 37 da Constituição de 1988, que a Lei nº 8.666 veda tais comportamentos infracionais nos artigos tais e tais e que o Estatuto do Servidor Público fixa a pena de demissão para quem comete incorre em tais ilícitos administrativos (até aqui tem-se a motivação) DEMITO o servidor.
Tecla SAP: “Sabe pq o servidor vai pra rua? Pq a criatura recebeu dois milhões para a empresa ficar so-zi-nha na licitação e ganhar o contrato, enquanto um tanto de outras empresas tinham direito de disputar o contrato. No processo disciplinar e na própria licitação ficou provado tudo. E tem um tanto de norma que fala que tem de mandar embora vagabundo que não respeita a Constituição, nem a lei das licitações, nem a lei dos servidores!”
Ficou claro? Motivação é contar o causo e falar do Direito. É falar dos fatos (recebeu indevidamente propina) que embasam a decisão (demissão) e contar o que do Direito justifica o ato de demissão (mencionando a Constituição, os tratados ratificados pelo Senado, as leis, os decretos e etc e tal).
E se não tem motivação, em princípio, tá errado e não tem conserto. Se não explicou porque demitiu, ANTES de demitir, não dá para manter o demitido demitido. Até porque é arriscado demitir por uma razão (ex: perseguir alguém) e depois inventar outras coisas que podem parecer verdadeiras mas nem são. Sem falar no direito de todos os cidadãos de saber porque quem tem competência para demitir fez aquilo. Ele não é dono desse poder. Ele deve satisfação para cada um de nós. Tem que explicar. E explicar an-tes: para o demitido, afetado pelo ato; e para as pessoas, que somos os titulares verdadeiros desse poder.
É verdade que nada é tão absoluto assim. Desculpem… Direito é um negócio complicado pra danar. Porque Direito é vida e vida é complicada e exige bom senso nas partes difíceis. Pois é usando o bom senso que a gente reconhece que, em algumas situações excepcionais, não ter explicado ANTES de agir as razões do comportamento pode não levar a acabar automaticamente com o ato. Isso porque fazer sumir o que foi feito “sem explicação antes” pode ser muito pior! Então não ter contado antes da demissão que o demitido foi demitido “por isso por aquilo e poraquiloutro” não é tão grave como manter o demitido bem demitidinho se dá para ter certeza que ele foi para a rua porque: 1) recebeu propina; 2) isso foi apurado num processo disciplinar regular; 3) as leis e a Constituição fundamentavam a demissão; 4) a autoridade pública só foi descuidada e esquecida em indicar tudo certinho antes de fazer, mas dá para ter certeza que tudo foi feito do jeito correto. Nesse caso especial, explicar depois está valendo.
Não precisa falar muito e prolixamente como “algumas pessoas” (ok. sou prolixa. aceitem logo que vai doer menos). Já para motivar, a criatura pode ser sucinta e objetiva, desde que clara e suficiente. Ah! explicar ANTES e direitinho é o segredo do sucesso…