Multas processuais: a nova indústria

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1.As dificuldades estruturais da Administração Pública em cumprir determinações judiciais definitivas. Nem a inteligência artificial pode salvar.

Não é raro que, após longo trâmite processual, seja necessário tempo significativo para fazer cumprir determinação judicial transitada em julgado, inclusive quanto às obrigações de fazer.

Dentre os inúmeros aspectos, destaca-se o fato de os entes federativos terem entidades descentralizadas e, em cada um, ter-se desconcentração material e territorial. Assim, uma intimação recebida por um Procurador precisa ser encaminhada a uma Secretaria/Ministério (em regra à assessoria jurídica) que enviará a um órgão central, que redirecionará ao órgão local, que fará uma indagação de volta ou, não raras vezes, se dirá incompetente, até que se encontre “quem” é, de fato, o órgão competente para tomar as providências concretas naquele caso.

Não se pode olvidar que a comunicação quanto à necessidade do cumprimento da decisão judicial parte da advocacia pública que, além da falta crônica de recursos e de renovação dos quadros pela ausência de novos concursos, enfrenta o crescimento das ações judiciais em progressão geométrica. Os advogados públicos diminuem (em razão de mortes, aposentadorias e pedidos de exoneração), as ações judiciais aumentam exponencialmente, falta estrutura tecnológica e de suporte administrativo para lidar com o volume e complexidade das demandas; à obviedade tudo isso dificulta o início do trâmite indispensável à comunicação da decisão a quem precisa atuar.

A verdade é que o Estado brasileiro, acusado de incompetente cotidianamente, vem sendo sucateado e cada vez mais. Em todas as searas (federal, estaduais e municipais), é raro o investimento em novos concursos para admissão de profissionais nos cargos vagos, os servidores que estão na ativa não são treinados e enfrentam um cotidiano de demandas que explodem com urgência angustiante. Há de se considerar que são parcos instrumentos de atividade do Executivo destinados efetivamente para os órgãos que atuam em ações como as necessárias para “fazer funcionar a máquina administrativa adequadamente”. Essa a realidade com que cotidianamente lidamos no âmbito do Estado, com extrema preocupação e frustração. Não é que esteja difícil e Procuradores, servidores e outros envolvidos estejam a lavar as mãos como Pôncio Pilatos. A grande maioria não desiste e boa parte insiste até conseguir. Basta acompanhar, em qualquer “repartição” quantos ofícios são expedidos para órgãos que precisam cumprir sentenças e quantas manifestações são feitas nos autos informando os magistrados. Não raras vezes, a prova do cumprimento de sentença ou do acórdão surge com documentos de centenas de laudas cuja verificação exige leitura e análise cuidadosa. É improvável que a referida tarefa possa ser substituída, mesmo no futuro próximo, pelo que atualmente se denomina “inteligência artificial”, tendo em vista a “sensibilidade ao contexto” processual dificilmente pode ser objeto de representação simbólica para automatização e muito menos para decisões independentes, pertinentes a realidades diversas. Parece que não, mas na fase de execução dos processos trabalha-se com realidades que requerem análises não padronizadas e que não são passíveis de reprodução em mesmas bases para um outro sem número de situações. Em regra, é necessário aferir especificidades que sequer consubstanciam variáveis passíveis de representação em algoritmos, porquanto improvável a descrição segura e em número adequado. É preciso gente, e gente qualificada, para orientar, atuar e controlar o cumprimento da determinação judicial. E é essa gente que falta nas diversas estruturas. E é com essa gente que boa parte das esferas de governo deseja acabar.

Num contexto com tal gravidade, não é raro que ocorram atrasos nas medidas administrativas mais basilares de cumprimento do que foi decidido pelo Judiciário, já em caráter definitivo e obrigatório da Administração Pública. É comum, diante da ineficiência administrativa, que os magistrados fixem multas diárias buscando induzir ao cumprimento das sentenças proferidas. Antes mesmo da análise jurídica dessa realidade, adverte-se: não se pode decidir, em Juízo, de modo a PIORAR as dificuldades do sistema. Fixar elevadíssimas multas, quando p. ex. há atraso em cumprir obrigação de fazer determinada pelo Judiciário, não resolve e, sim, piora uma realidade qualificável como trágica, reiteradas vênias solicitadas. Isso sem mencionar algumas considerações indispensáveis sob o ponto de vista estritamente jurídico, senão vejamos:

 

2. Algumas ponderações processuais

Para se entender a complexidade da matéria, é recomendável reavivar a natureza e finalidade das “astreintes”. Segundo Rizzo Amaral, “As astreintes constituem técnica de tutela coercitiva e acessória, que visa a pressionar o réu para que o mesmo cumpra mandamento judicial, pressão esta exercida através de ameaça a seu patrimônio, consubstanciada em multa periódica a incidir em caso de descumprimento”.[1] De fato, trata-se de mecanismo indutivo de execução indireta, com o objetivo de levar o devedor a cumprir determinada obrigação ao lhe acenar com a imposição de multa pecuniária.

Ao tratar da multa de 10% a que está sujeito o devedor pelo não pagamento da condenação no prazo de 15 dias previsto no art. 523, § 1º do CPC, no cumprimento de sentença contra o particular, Araken de Assis concluiu ter andado mal o legislador, acreditando que o objetivo da norma seria melhor alcançado com a adoção de benefícios econômicos e não com penalidade (multa), exemplificando com o uso abusivo das “astreintes”, “verbis”:

“O objetivo da multa é de tornar vantajoso o cumprimento espontâneo e, na contrapartida, excessivamente oneroso o cumprimento forçado da condenação. Desconhecem-se dados quantitativos acerca do proveito real desse regime. À primeira vista, melhor se conduziria o legislador adotando técnica oposta, concedendo benefícios econômicos para o condenado (v.g., parcelamento do valor da dívida), em lugar de lhe impor sanção pecuniária. A técnica de tornar as dívidas judiciais desvantajosas financeiramente não produziu frutos apreciáveis e, a mais das vezes, produz distorções a muito custo equacionadas (v.g., o valor desproporcional da astreinte).”[2]

Movimento semelhante verificou-se em inúmeros julgados examinando pedidos de indenização por danos morais logo após a edição da Constituição da República, sob inspiração das indenizações milionárias praticadas no Judiciário Norte-Americano. O tempo demonstrou o desacerto daquele posicionamento, cabendo registrar que as indenizações por danos morais estão atualmente afetas aos Juizados Especiais, em razão dos valores das condenações, que raramente ultrapassam a quantia de 20 salários mínimos.

Sendo o Estado presumidamente ser ético por excelência, não haveria necessidade de fixação de multa para convencê-lo a cumprir a ordem jurisdicional, ainda que aplicável a medida contra a Fazenda Pública, sob o novo CPC; a “astreinte” se justifica somente quando há resistência injustificada da parte à qual a ordem é endereçada. Nesse contexto, uma prática que se tem tornado comum no Judiciário – fixar multa previamente, sem que se tenha qualquer recalcitrância – afigura-se teratológico, “concessa venia”.

A resistência injustificada não se confunde com a demora ou com o retardamento no cumprimento da decisão, ou ainda quando se alega descumprimento total ou parcial do comando, situações que se debitam à azáfama própria da Administração Pública em boa parte das situações, às regras rígidas que ditam o agir da máquina administrativa (burocracia é forma destinada à segurança dos atos estatais), ao já denunciado déficit no quadro de pessoal, inclusive nas Procuradorias judiciais e ao expressivo número de processos em trâmite contra a Fazenda Pública, dado sempre invocado pela magistratura para justificar o tempo consumido na tramitação do processo judicial.

A multa diária prevista nos artigos 536 e 537 do CPC não é acessório da condenação, embora o juiz possa fixá-la na sentença; não tem caráter punitivo, ao contrário do que apregoam alguns julgados, que lançam mão da astreinte sob a alegação de assegurar a efetividade das decisões judiciais, cujo uso abusivo e sem critério atua contra os fins do instituto.

“A finalidade da multa é coagir o demandado ao cumprimento do fazer ou do não-fazer, não tendo caráter punitivo. Constitui forma de pressão sobre a vontade do réu, destinada a convencê-lo a cumprir a ordem jurisdicional”.[3]

Ora, a multa do art. 536 do CPC não se destina a enriquecer o credor, que não raro se aproveita das mazelas da Administração Pública e da sanha na alegada busca da rápida solução do litígio, por vezes como meio de compensar o tempo consumido na tramitação dos processos judiciais, com atropelo de direitos processuais, esquecendo-se da advertência de Barbosa Moreira: “Celeridade sim, mas não a qualquer custo”.

Dispõe o caput do art. 537 do CPC que a multa é cabível “desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito”.

Ao juiz é dado, mesmo de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa caso verifique que (i) se tornou insuficiente ou excessiva e, ii) o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

Diante dessas razões, é certa a necessidade de ser fixado prazo “razoável para cumprimento do preceito”, atento às peculiaridades do agir da Administração Pública. Contudo, o que se tem verificado é o estabelecimento de prazos inexequíveis, impraticáveis, com prejuízo para o erário e facilidades para os que torcem pelo retardamento da máquina administrativa. Sempre cobrado pelo longo tempo consumido na tramitação dos processos, em diversas situações o Judiciário não se vê constrangido em impor prazos exíguos ao Executivo, ainda que o juiz não esteja familiarizado com o funcionamento interno da Administração Pública. A esse respeito, advogados públicos podemos atestar complexidades inimagináveis para quem não integra a própria estrutura executiva, desestruturação e falta de recursos impensáveis e inconfessados sem qualquer comprometimento governamental de superação das dificuldades, além da completa inocuidade de fixação de multas às custas dos cofres públicos.

Mesmo quando ausente qualquer atraso ou em situações nas quais há atraso menor de prazo fixado sem a necessária adequação ao caso, que raramente merece o qualificativo de “razoável”, presenciamos o agigantamento das multas cominadas contra o Estado, muitas vezes para gozo dos autores que não alimentavam tal expectativa quando vieram a juízo, bem como de alguns advogados que passaram a receber parcela das multas fixadas judicialmente, prejudicando o cumprimento de políticas públicas, tudo isso em face de pessoas federativas com gravíssimos problemas orçamentários.

Tal prática, que já vem se tornando corriqueira, passou a alimentar no espírito dos demandantes e de seus combativos advogados, a expectativa de obter o reconhecimento judicial de seu direito e ainda apurar “mais algum”, desatualizando a advertência de José Olympio de Castro para quem “o autor não vem ao Judiciário para fazer bons negócios”…

Entendendo que a multa imposta ao ente público acaba sendo suportada por toda a coletividade, não servindo aos fins a que se destina, decidiu o Eg. TJMG:

1- (…). 2- A multa cominatória, para o caso de descumprimento de ordem mandamental contida em sentença, não pode ser imposta ao ente público, pois acabaria sendo suportada por toda a coletividade e não serviria aos fins a que se destina. Hipótese dos autos em que, ademais, o credor da multa é o próprio Estado de Minas Gerais, de modo que sua aplicação é inócua. 3- Segundo o disposto no parágrafo único do art. 14 do CPC, quem deve ser penalizado é agente político responsável pelo cumprimento da ordem que, além do mais, está sujeito a ser processado por crime de desobediência. (Processo n. 1.0433.07.235733-1/001. Relator: MAURÍCIO BARROS. Julgamento: 20/02/2009).

 A imposição de multa cominatória por descumprimento de ordem judicial resulta em privação de recursos públicos escassos. Em tais situações, a apenação de crime de desobediência poupa recursos públicos e é igualmente eficiente. (…) (Processo n. 1.0142.07.018116-9/002(1). Des. Rel. BRANDÃO TEIXEIRA. Publicação: 04/02/2009).

 Mostra-se desarrazoada a fixação da multa diária pelo descumprimento da obrigação imposta, em virtude da complexidade burocrática da Administração para a aquisição de fármacos. (Processo n. 1.0142.07.018114-4/001(1). Des. Rel. DORIVAL GUIMARÃES PEREIRA. Publicação:22/07/2008).

(…) Incabível a fixação de “”astreintes em sede de ação mandamental, uma vez que tal imposição não encontra guarida na Lei 1.533/1951, além de resultar, “”mutatis mutandis””, no próprio enfraquecimento da decisão concessiva da ordem, uma vez que acaba permitindo, em tese, que a autoridade coatora se furte de cumprir a ordem mediante o pagamento de multa. Doutra banda, tal penalidade mostra-se desnecessária na hipótese, já que o descumprimento da segurança gera sanções outras a serem suportadas pela autoridade coatora, como, por exemplo, aquelas decorrentes da prática de crime de desobediência – mais severas do que mera estipulação de multa pecuniária. – Recurso ao qual se dá parcial provimento. (Processo n. 1.0699.07.077186-9/001(1). Rel. Des. DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA. Publicação:29/07/2008).

 CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – AGRAVO DE INSTRUMENTO – MANDADO DE SEGURANÇA – DEFERIMENTO DE LIMINAR – RECURSO – POSSIBILIDADE DE SEU AVIAMENTO – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO – PLEITO LIMINAR – REQUISITOS DEMONSTRADOS – DEFERIMENTO – MANUTENÇÃO – IMPOSIÇÃO DE MULTA EM CASO DE SEU DESCUMPRIMENTO – PODER PÚBLICO – INVIABILIDADE – PARCIAL PROVIMENTO DA IRRESIGNAÇÃO – INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 196 E SEGTS. DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. (…) A imposição de multa diária ao Município pelo descumprimento de liminar contra ele deferida mostra-se inviável. (Processo n. 1.0699.07.073064-2/001(1). Rel. Des. DORIVAL GUIMARÃES PEREIRA. Publicação:04/03/2008).

 

3. Uma nova indústria e as cautelas necessárias. A sociedade que paga a conta.

Não há dúvida que, periodicamente, tem-se instaladas determinadas “indústrias” na prestação jurisdicional e nunca sem lastro fático na realidade: assim ocorreu com os pedidos de indenização por dano moral, as ações relacionadas às prestações de saúde e, agora, as “astreintes” que constritam o patrimônio público. Não há dúvida que empresas atuam no mercado sem muito constrangimento em causar prejuízos morais aos cidadãos: essa a base fática dos inúmeros pedidos de ressarcimento por danos morais levados aos magistrados; também é certa a dificuldade dos cidadãos em ter garantido o mínimo direito à saúde junto ao Poder Público, aos planos de saúde e instituições hospitalares: esse o lastro das centenas de milhares de ação em trâmite sobre a matéria; também não é segredo que a imensa estrutura do Estado, com gestão deficiente, parca infra-estrutura de apoio, agentes públicos não treinados e excesso de demandas não consegue dar vazão a obrigações basilares como cumprir determinações judiciais tempestivamente: essa a realidade que enseja decisões que arbitram multas significativas por cada dia de atraso, chegando a centenas de milhares de reais. A realidade que é consequência da ineficiente máquina administrativa (órgãos que não conseguem se comunicar, informações que não chegam à advocacia pública, dezenas de ofícios reiterados não analisados de forma congruente pelas partes processuais e magistrados competentes), não significa que em todos os casos é legítimo o deferimento das sanções pretendidas. Na verdade, a atuação cotidiana demonstra que em boa parte das realidades é claro o descabimento de multa. Isso porque uma investigação cuidadosa demonstra o exercício das atribuições devidas, no meio de centenas de milhares de expedientes que tramitam diariamente sob responsabilidade de cada agente público, inclusive servidores e Procuradores, atuando sem estagiários, sem apoio funcional, sem qualquer estrutura.

O desafio para quaisquer dos envolvidos é focar, em princípio, na defesa do interesse público primário (sim, o da sociedade e não o de governos transitórios, nem os de cada pessoa privada com que o Estado se relaciona). Para tanto, é preciso verificar se ocorreu, ou não, o prejuízo alegado, já que, não raras vezes, sequer há descumprimento, mas mera aposta da desorganização administrativa para obtenção de acréscimo nos ganhos do vencedor da demanda. Também é preciso investigar se houve, ou não, resistência injustificada à ordem judicial ou se, na verdade, a estrutura administrativa se move, com a lentidão analógica da sua triste realidade, no sentido de cumprir ENFIM o que o Judiciário determinou. Já se percebe que alguns magistrados vem trazendo à tona lúcidos fundamentos como os sustentados pelo Juízo da CENTRASE das Varas da Fazenda Pública da comarca de Belo Horizonte (Minas Gerais) nos autos 0024.08.842.682-9 em processo no qual se arbitrou multa diária de R$ 300,00, limitada a R$ 30.000,00:

“Inicialmente, destaco que deve ser reconhecido que a morosidade pública vem, em grande parte, da necessariamente burocrática organização estatal instituída que torna imprescindível a realização de inúmeros procedimentos, advindos do princípio da legalidade, relacionados às atividades da Administração Pública e que, infelizmente, transformam-se em obstáculos a sua rapidez e agilidade.

Nesse sentido, a pena de multa cominatória, por maior valor que fosse o valor arbitrado, baixa eficácia teria em se tratando da Administração Pública, visto que aquela não tem o efetivo poder de servir como real incentivo ao movimento da máquina estatal. Nesse caso, as astreintes não realizam o seu objetivo final, e disso pouco benefício se retira em se tratando do adimplemento da obrigação devida, cujo cumprimento não é acelerado de forma eficaz; e, por sua vez, resta como maior prejudicada a própria coletividade, que arca com tais ônus.

Além disso, em se tratando do conteúdo da obrigação aqui discutida, tenho que o montante final decorrente da multa, ainda que fosse devido, consiste em valor exorbitante que em nada lhe é proporcional ou mesmo razoável.”

Tais observações aplicam-se à maioria das realidades processuais em que se discute a pertinência de fixação de multas processuais, reiterando-se que, com aposentadorias, mortes de servidores e ausência de concursos públicos, o Estado vê-se premido pela ausência de quadros funcionais suficientes para realizar as atribuições necessárias na Administração direta e indireta, sendo desarrazoado onerar qualquer parte da sua estrutura com dificuldades orçamentárias manifestas. Mais uma vez frisa-se que todos os agentes do Estado, principalmente aqueles comprometidos com o exercício efetivo das suas atribuições, veem-se assoberbados de demandas infindáveis que nem mesmo toda a dedicação e responsabilidade são aptas a ensejar sua satisfação. Não seria juridicamente possível qualificar qualquer limitação como desídia ou inércia que caracterize ilícito processual punível com multa, principalmente quando se cumpriu previamente o comando decisório como neste caso. Não se vislumbra o lastro fático (descumprimento da obrigação por negligência com os deveres públicos) que justifique sanções pecuniárias.

A penalidade, repita-se, só significa prejuízo ao titular do patrimônio público, a saber, a sociedade que, aliás, já sofre com a ausência da disponibilidade orçamentária inerente à crise econômica que atinge gravemente o Estado de Minas Gerais. No Processo nº 9053836.24.2017.813.0024, a 3ª Unidade Jurisdicional da Fazenda Pública da comarca de Belo Horizonte (Minas Gerais) advertiu que “a aplicação de penalidade de multa diária só deverá ser feita a posteriori, isto é, desde que haja efetiva recalcitrância no cumprimento da determinação judicial pelo ente público, sob pena de permitir o enriquecimento sem causa do particular em desfavor do erário” e, ainda:

“Entendo que no caso dos autos, restou evidenciada a mora do ente Réu, em fornecer informações sobre o cumprimento da obrigação de fazer a ele imposta mas não há qualquer evidência de efetivo descumprimento da obrigação em si, ou mesmo efetivo prejuízo suportado pelo autor. (…) a mudança de entendimento se justifica mormente por se tratar da Fazenda Pública, pois se discute o pagamento de valores de toda a sociedade em favor de particular, que não pode almejar auferir enriquecimento sem causa, em prejuízo do erário”.

De fato, o Judiciário vem percebendo que a astreinte não cumpre a finalidade em boa parte das situações, não havendo resistência estatal injustificada, mas uma desestruturação dificilmente passível de enfrentamento e superação em razão de mera fixação de multa. Diante desse contexto, não é razoável qualquer fixação de multa em desfavor do erário, muito menos elevadas punições. Afinal, não justifica o gasto do dinheiro público com o pagamento de “astreinte” aplicada sem recalcitrância injustificada do Poder Público, visto que, em boa parte dos casos, os agentes públicos perseguiram a informação quanto ao cumprimento à decisão transitada em julgada, o que se demonstra por meio de vários documentos públicos, com presunção de veracidade e legitimidade inerente aos atos administrativos.

 

4. Os desafios aos envolvidos

O que se requer do Judiciário, na sua tarefa Sísifica de solucionar os conflitos de interesse com definitividade, é a lucidez de separar o joio do trigo, de atentar para a natureza jurídica dos institutos, de não decidir genericamente sem verificar a ocorrência, ou não, dos pressupostos específicos, em cada caso, para o deferimento de verbas requeridas judicialmente. Se não houver MOTIVO (aqui no sentido técnico de razão fática que justifique a medida) para deferir a imposição de penalidades diárias em desfavor do Estado, que não se condene o Poder Público de modo a reduzir os já escassos recursos do erário.

Aos profissionais do direito, inclusive os combativos advogados que litigam contra o Poder Público, cabe o exercício das suas atribuições com lealdade e boa-fé diante dos esforços daqueles agentes públicos que lutam para fazer andar a emperrada engrenagem do Estado e das entidades descentralizadas, ou teremos mais uma indústria a extrair verbas do erário indevidamente. Estamos falando de sacrifício absurdo do patrimônio que pertence à sociedade (sim, o dinheiro do Estado “não nasce em árvores”, mas é fruto da arrecadação tributária que atinge os cidadãos e as diversas pessoas jurídicas contribuintes). O risco, neste caso, é entregar a diversos exequentes centenas de milhares de reais do dinheiro do povo, sem fundamento capaz de sustentar as consequências desastrosas da ampliação dessa realidade. O discurso de que o Estado é um malvado que precisa ser punido financeiramente não é razoável em plena realidade do século XXI. O Estado somos todos nós e vem sendo desestruturado a cada dia de modo a tornar cada vez mais ineficiente a ação administrativa, sendo a fixação progressiva de “astreintes” como as que aqui em exame apenas mais um mecanismo para a desintegração pública.

Em tempos de uma advocacia pública de massa, com o Judiciário afogado em dezenas de milhares de processos, é certa a dificuldade de LER todas as peças, ANALISAR A PROVA, estabelecer OS PONTOS LITIGIOSOS, analisar o que restou demonstrado e DEFINIR O DIREITO conforme o ordenamento. Reitera-se a cautela necessária diante da ideia apresentada como solução milagrosa que encontra eco entre os profissionais em face dessa realidade: usar inteligência artificial na prestação da tutela jurisdicional e na advocacia pública. Adverte-se, mais uma vez, que nem sempre a resposta algorítmica, superficial e/ou célere é cabível: tornar realidade o artigo 5º, XXXV da Constituição exige que, em dados momentos, os profissionais do Direito encarem a necessidade de um trabalho artesanal: analisar a matéria litigiosa, a partir das manifestações das partes, com exame cuidadoso da prova documental. É exatamente isso que a cabe à advocacia pública no presente momento da evolução do controle externo da Administração Pública.

Em inúmeros processos, passam-se dias tentando selecionar em quais processos será feito o requerimento para que seja cassada a multa indevidamente aplicada pelo Judiciário, evidenciando ofensa à indisponibilidade do interesse público e à vedação do enriquecimento sem causa (artigo 884 e 885 do CPC), com claro comprometimento das normas basilares do regime jurídico administrativo e ignorância dos fatos processuais, inclusive imutáveis à luz da proteção da coisa julgada.

Mas não basta. Isto é enxugar gelo. É preciso que os governos, com o auxílio da advocacia pública, assumam o ônus de estruturar respostas mais eficientes à realidade administrativa, inclusive para REDUZIR O NÚMERO DE AÇÕES JUDICIAIS EM TRÂMITE. Para isso, é preciso força descomunal de convencimento de que “não compensa a ilegalidade que adia o cumprimento de um dever do Estado”, não só do ponto de vista da juridicidade e da dignidade dos cidadãos, mas sob o aspecto financeiro e estrutural do Estado. Deixar de falar sobre “formas alternativas de solução de conflito” e deixar de fazer discursos teóricos sobre supostos resultados abstratos maravilhosos, mas na práticas irreais, consiste tarefa imediata. É preciso fazer. Simples assim. Estudar, estruturar, arregaçar as mangas e fazer. Cabe-nos realizar procedimentos que restaurem a legalidade nas diversas searas do Estado, tornem despicienda a intervenção massiva do Judiciário e, assim, que se reduzam as ordens judiciais a serem cumpridas após anos de trâmite processual.

Quanto às sentenças e acórdãos que, diante de um controle judicial realmente necessário, ordenem um determinado comportamento, surge uma demanda para a advocacia pública: é preciso sair dos gabinetes e da mesas de trabalho. É necessário que os advogados públicos se disponham à articulação com as diversas estruturas administrativas. Isso significa disponibilidade, também, para formar servidores no tocante ao conhecimento jurídico (que convence ao cumprimento das ordens judiciais) e para o aprendizado sobre a realidade estrutural da Administração Pública, de modo que se faça a interlocução entre o magistrado e quem, na ponta do Estado, como servidor público, cumpre o que se precisa realizar. Cabe à gestão da advocacia pública, profissionalizar o cumprimento das ordens judiciais: especialização de competências, procedimentos céleres de comunicação, sistemas que permitam comunicações entre quem tem dúvida na execução e quem tem o conhecimento para orientar tecnicamente, além de um mínimo de suporte para o vultoso trabalho (estagiários, servidores treinados, protocolos de ação e de incentivo ao cumprimento de metas razoáveis).

As soluções jurídicas fáceis, em regra tomadas pelos envolvidos, não produzem os resultados esperados. Trazem um conforto superficial e que não se sustenta. Assim acontece com a tranquilidade de que “estou fazendo algo” ao se fixar em Juízo uma multa astronômica pelo não cumprimento rápido de uma dada obrigação. O mesmo ocorre quando o advogado público limita-se a enviar a cópia da sentença com um Ofício de “cumpra-se” que será lido por um servidor sem qualquer formação jurídica e sem capacidade técnica para entender boa parte do juridiquês da decisão judicial. Não é outra coisa que acontece quando um advogado privado limita-se a insistir, reiteradas vezes, em pedidos de fixação de elevadas “astreintes”. São confortos frágeis e, permitam-me dizer, covardes. Na verdade, cúmplices de uma deterioração que se agrava.

Estamos diante de um momento grave das ineficiências sistêmicas do Estado com custos altos para os cidadãos e para a própria Administração Pública. Cabe-nos uma interpretação finalística focada na regularidade do comportamento público e no aperfeiçoamento das soluções finais. Não é a primeira vez que o convite se apresenta: é necessário estudar a Ciência do Direito. É preciso interlocução entre o direito processual e administrativo. É imprescindível abandonar o autismo que fecha a cúpula das instâncias de poder às demandas de uma realidade dramática. O nosso dever é agir em direção à melhoria das respostas institucionais.

[1] AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 85

[2] ASSIS, Araken. Manual da Execução. 20ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2018, p. 267-268

[3] MARINONI, Luiz Guilherme ; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 429.

 

O item 2 do presente trabalho foi escrito com o auxílio das referências doutrinárias e jurisprudenciais encaminhadas pelo Procurador do Estado de Minas Gerais Maurício Barbosa Gontijo em razão de estudos conjuntos realizados no Núcleo de Cumprimento de Requisições Judiciais da Procuradoria Administrativa da AGEMG.

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