A Lei 13.655/2018 e o dever de motivação pela Administração Pública na LINDB

Tempo de leitura: 43 minutos

1. O princípio da motivação e seus pressupostos

Integra o regime jurídico administrativo o princípio da motivação que indica a necessidade de se explicitar o motivo e o fundamento jurídico dos comportamentos públicos. Com efeito, há motivação quando o agente público indica qual a situação fática que ensejou a realização de uma dada competência (pressuposto fático) e quais as normas que lhe serviram de fundamento (pressuposto jurídico).

É posição assente que a motivação do ato administrativo deve, ainda que sucinta, necessariamente atender os requisitos da congruência, exatidão, coerência, suficiência e clareza. Uma motivação obscura ou incongruente, com fatos e fundamentos não compreensíveis e/ou não proporcionais entre si, evidencia uma fundamentação viciada; o mesmo acontece com a fundamentação que surge com o emprego de conceitos vagos, sem base sólida fática ou jurídica. A esse propósito, confira-se decisão do STJ:

“Não atende a exigência de devida motivação imposta aos atos administrativos a indicação de conceitos jurídicos indeterminados, em relação aos quais a Administração limitou-se a conceituar o desempenho de servidor em estágio probatório como bom, regular ou ruim, sem, todavia, apresentar os elementos que conduziram a esse conceito.”[1]

De tal contexto, resulta que a motivação do ato deve narrar a situação fática que o viabiliza e demonstrar que o comportamento tem amparo na ordem jurídica, inclusive no tocante aos meios utilizados, lugar de atuação e tempo de vigência dos efeitos.

Quanto aos pressupostos temporais, é certo que, em princípio, a motivação deve anteceder ou ser simultânea à prática do ato administrativo. Uma motivação subsequente ao ato viabilizaria até mesmo construções falaciosas de circunstâncias fáticas e fundamentos jurídicos afirmados como base da ação administrativa, mas que na verdade não foram aqueles que sustentaram a decisão do Poder Público. Esse risco potencial estende-se até à ineficácia do controle realizado sobre este aspecto, com flagrante prejuízo da confiabilidade social a este propósito. Daí se infere que o caráter prévio ou concomitante é, inclusive, garantia da sua veracidade e sua legitimidade e, consequentemente, da própria adesão social ao conteúdo do ato. Admitir fundamentação posterior à conduta estatal implica o risco de que ela seja engendrada somente para disfarçar a inobservância da legítima ação administrativa, acobertando fraudes, práticas corruptas e abusivas.

No tocante à ausência de motivação, é certo que ela, além impedir até mesmo o controle do comportamento administrativo, compromete princípios constitucionais como o contraditório e a ampla defesa.[2]

2. Sobre a obrigatoriedade de motivar

Originariamente, era majoritária a posição no sentido de que não haveria a obrigatoriedade de enunciar os pressupostos de fato do ato administrativo, salvo na hipótese de ato vinculado ou em face de expressa exigência legal. O fato de a discricionariedade outorgar ao administrador uma margem de liberdade dentro da qual lhe é lícito escolher segundo sua conveniência e oportunidade evidenciaria a desnecessidade de que sejam explicitadas as razões empíricas e teóricas da opção realizada. Segundo Cretella Júnior, “Ao contrário da decisão judiciária, que exige fundamentação – é a regra –, o pronunciamento administrativo de modo geral dispensa justificativa, a não ser expressa norma legal o determine”. O autor defende a dispensa da motivação nos atos discricionários em que a lei faculta à autoridade administrativa a apreciação da oportunidade e da conveniência, bem como nos atos precedidos de parecer fundamentado de órgão consultivo.[3]

É certo, entretanto, que já no final da década de 70 inverteu a tendência de flexibilizar o dever de motivação em relação aos atos administrativos, surgindo esta exigência nos atos restritivos de direito, sobretudo os de natureza disciplinar. Ganha espaço a Teoria dos Motivos Determinantes, segundo a qual, em princípio, não há o dever de motivar os atos discricionários. No entanto, as razões de fato e de direito, se apresentadas, passam a condicionar a validade do pronunciamento administrativo, sujeitando-se ao controle judicial de legalidade.

Nesta fase, ainda não se postula a obrigatoriedade de motivar o ato discricionário. Ao contrário, reconhece-se ao administrador público a opção de não indicar as razões de fato e de direito que fundamentaram sua escolha. Contudo, se embora não adstrita ao dever de motivação, a autoridade motivar sua conduta, os pressu­postos fáticos e jurídicos explicitados integram a legalidade da sua atuação. Se inverídico o pressuposto fático (motivo) ou divorciado do ordenamento o fundamento jurídico (motivo legal), lícito é ao Judiciário, uma vez provocado, reconhecer a invalidade do ato em tese. Isto porque os motivos de fato e de direito indicados como fundamento da atuação estatal, sempre que inexistentes, inverídicos ou equivocadamente qualificados, submetem-se aos efeitos do controle decorrente do artigo 5°, XXXV, da Constituição.

É Odete Medauar quem elucida que “Segundo essa teoria, os motivos apresentados pelo agente como justificativas do ato associam-se à validade do ato e vinculam o próprio agente. Isso significa, na prática, que a inexistência dos fatos, o enquadramento errado dos fatos aos preceitos legais, a inexistência da hipótese legal embasadora, por exemplo, afe­tam a validade do ato, ainda que não haja obrigatoriedade de motivar.”[4]

Um olhar crítico sobre a referida teoria permite identificar que se trata de incentivo ao silêncio da autoridade competente para sua prática. Afinal, se a autoridade não indicar as condições fáticas e jurídicas das quais se utilizou, impedido estará o controle jurisdicional; ao contrário, se motivar sua decisão, estará jungida aos elementos indicados, que se submetem à apreciação judicial.

Também por essa razão ganhou espaço, recentemente, posição mais atenta aos princípios constitucionais como os da moralidade (artigo 37, caput, da CF) e do acesso ao Judiciário (artigo 5°, XXXV, da CF) que são concretizáveis apenas em face de motivação expressa dos comportamentos administrativos vinculados ou discricionários. Não se pode admitir que qualquer conduta da Administração, independentemente da sua natureza vinculada ou discricionária, possa tornar-se realidade sem a indicação do seu suporte fático e jurídico, principalmente em se tratando de um Estado que se pretende Democrático de Direito.

Foi o professor mineiro Florivaldo Dutra de Araújo pioneiro em defender a  regra geral da obrigatoriedade de motivação: “A dispensa de motivação nos atos vinculados não deve ser cogitada, por duas razões principais: a necessidade de se conhecer a interpretação dada pelo administrador à lei, e a de tornar possível a verificação da correta incidência do ato na situação fática que o tenha motivado.

(… ) Quanto à motivação para os atos discricionários, sua dispensa é de tal inconveniência, que quase não há quem não ponha exceções a tal afirmação, reportando-se a algumas daquelas hipóteses em que a fundamentação se impõe pela natureza do ato.”[5]

De fato, é exatamente nos atos discricionários, em que há maior espaço de ação para o administrador, que se mostram indispensáveis melhores instrumentos de controle, destacando-se a fundamentação como um dos mais eficientes mecanismos de aferir a legalidade administrativa. Quanto maior a discricionariedade outorgada ao administrador, maior a necessidade de motivação da atuação estatal.

Atente-se que a Lei Federal nº 9.784 inseriu no ordenamento a regra do artigo 50, a qual impõe o dever de motivar aos atos que: I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV – dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V – decidam recursos administrativos; VI – decorram de reexame de ofício; VII – deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII – importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo. Em face do referido dispositivo, José dos Santos Carvalho Filho entendeu que a relação do artigo 50 da Lei 9.784 é taxativa (numerus clausus), “o que significa dizer que os atos não constantes da enumeração da lei dispensam a referência expressa da justificativa”, sob pena de se causar grave dano à celeridade que se deseja implantar na Administração. A obrigatoriedade de motivação inexiste como regra, uma vez que a Lei Magna não incluiu qualquer princípio de que decorresse tal dever. A expressão “decisões administrativas”, do art. 93, X, da CF, seria restrita às decisões exaradas em processos administrativos, sendo possível considerar a motivação obrigatória somente se houver norma legal expressa neste sentido.[6]

Com reiteradas vênias à posição do doutrinador carioca, entendo que, em face da Constituição de 1988, não remanesce a possibilidade de se falar em ato administrativo desprovido de fundamentação; na medida em que o contraditório e a ampla defesa encontram-se erigidos como garantias no artigo 5°, LV, da CR, inadmissível que a atuação administrativa surja desacompanhada das razões fáticas e jurídicas que a justificaram, sob pena de, ausente a motivação, afigurar-se impossível o exercício demo­crático das citadas garantias constitucionais. A motivação surge, ainda, como meio necessário à caracterização do devido processo legal, insculpido no artigo 5°, LIV, da Constituição. Um ato que não ostente as razões pelas quais foi praticado não atende a norma fundamental que consagrou o due process of law (não se limita às garantias formais, mas dele decorrem atualmente garantias substanciais, dentre as quais se destaca a motivação).  Embora a celeridade decorra do princípio da eficiência proclamado no artigo 37 da Lei Magna, resulta clara do texto constitucional a intenção de prestigiar o controle como premissa fundante do Estado Democrático de Direito. Como é fácil perceber, o controle somente é possível na hipótese de o administrador evidenciar, mediante indicações claras, congruentes, exatas e suficientes, ter adotado o comportamento adequado em face das normas de regência.

Com base em todos esses argumentos, tem-se que o fato de o artigo 50 da Lei Federal n° 9.784/99 enumerar atos administrativos que devem ser necessariamente motivados em nada afeta a obrigatoriedade de motivação, que decorre dos princípios expressos e implícitos da Constituição. Independentemente de um ato estar elencado no rol do artigo 50 da Lei n° 9.784, o mesmo deve ter indicados os fatos e fundamentos jurídicos que serviram de base à sua prática.

O STF já fixou ser necessária fundamentação específica até mesmo em relação a atos políticos como a quebra de sigilo por CPIs.[7] O STJ, por sua vez, entendeu que, mesmo diante da margem de liberdade de escolha da conveniência e oportunidade concedida à Administração, é necessária adequada motivação, explícita, clara e congruente, do ato discricionário que nega, limita ou afeta direitos ou interesses dos administrados. Insiste que não se supre este requisito pela simples in­vocação da cláusula do interesse público ou qualquer indicação de natureza genérica que não observa o requisito da motivação suficiente e adequada.[8]

Sobre o dever de motivação, confira-se o item 7 “O necessário e esquecido instrumento – o dever de motivação” do artigo “O imbroglio na nomeação de Ministros de Estado”[9]

2.1. Especificidades sobre o dever de motivar

A doutrina vem proclamando a viabilidade de um ato administrativo fundar-se em ponderações fáticas e jurídicas de outro, como pareceres, informações técnicas ou mesmo decisões anteriores, o que se denomina “Motivação aliunde”:

“A motivação aliunde é permitida facultativa e subsidiariamente. Consiste na adesão ou concordância ao fundamento de pareceres, decisões, informações ou propostas, adotada no ato administrativo por referência expressa e considerada como seu integrante (art. 50, § 1º, segunda parte). Ela é prestigiada pela jurisprudência. A motivação explícita e suficiente é adimplido pela residência da justificativa decisória exteriorizada no ato anterior e a promoção da remissão expressa na decisão numa operação de contextualidade artificial.”[10]

A respeito da regularidade da “motivação aliunde”, o STF já elucidou que, se se identifica motivação suficiente no ato administrativo, mesmo com remissão aos fundamentos de um parecer elaborado por órgão colegiado técnico ou autoridade de menor hierarquia, inadmissível falar-se em vício, posto que eficiente a fundamentação indicada, viabilizando o controle posterior.[11] Também o STJ já assentou que, se a autoridade acolhe o relatório de uma comissão, devidamente fundamentado, encontra-se atendida a exigência de motivação. No entanto, adverte para a necessidade de aduzir fundamentação própria, se há discordância em relação às razões apresentadas anteriormente.[12]

Em determinadas situações excepcionais, a doutrina vem flexibilizando a exigência de motivação expressa e prévia: “Todavia, a motivação pode ser dispensada. Razoável é requerer expressa previsão normativa da exceção. Podem ocorrer situações de desnecessidade, impossibilidade, impraticabilidade, inconveniência. Atos verbais ou gestuais, atos sem conteúdo decisório (despacho de mero expediente) ou com motivo presumido são significativos exemplos, assim como a atribuição de valor jurídico ao silêncio. Como exceções, deve ser interpretadas restritivamente.”[13]

No entanto, é preciso cautela para não se estender a liberação quanto ao dever de motivar além dos limites razoáveis, em face das próprias determinações constitucionais. Diverge-se, v.g., da posição sustentada pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara quanto aos limites da obrigatoriedade de motivação nos atos normativos:

“Há de se reconhecer que, diante desse perfil, o dever de motivação dos atos normativos da Administração não é de cunho geral. Ou seja, nem todos os atos normativos da Administração precisam de uma motivação prévia, detalhada e de conteúdo. Tal exigência só se perfaz quando há, diretamente, perspectiva de confronto com a esfera de direitos de administrados.

Excluem-se, desse rol, portanto, os atos regulamentares de caráter interno, como são, por exemplo, os de organização administrativa e os que aprovam normas de licitação. Outra categoria em que, por ausência de terceiros titulares de direitos atingidos, não há obrigação de apresentar motivação de conteúdo, envolvem os atos que instituem um marco regulatório original nos quais ainda não sejam encontrados interessados. A regulação original de um serviço público e a disciplina regulamentar sobre o uso de um bem público até então inacessível ao uso privativo de particulares constituem alguns exemplos de situações desse gênero.”[14]

Venia permissa, entende-se necessária motivação para atos normativos que atingem esfera jurídica do administrado e, igualmente, para atos normativos estruturais da atividade administrativa, mesmo sem qualquer potencial constritivo direto em relação a universos jurídicos alheios ao Poder Público.[15]

3. A Lei Federal nº 13.655/2018 e as novas exigências para a motivação dos comportamentos administrativos

A Lei Federal nº 13.655/2018 trouxe novos dispositivos à agora “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” e deixou assim redigido seu artigo 20:

“Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

Decorre do transcrito dispositivo o dever do gestor público e do controlador analisarem consequencialisticamente o que resulta da sua atuação, impondo-se o mesmo ônus para ambos: quem age e quem controla o comportamento anterior. Tem-se claro o objetivo da norma no sentido de impedir o uso de princípios (valores abstratos) sem análise das consequências jurídicas da competência pública, seja de execução, seja de controle, exercida na espécie. A indicação de que é necessário cogitar alternativas de comportamentos estatais, ao invalidar um ato administrativo anterior e/ou determinar uma providência específica, tem por finalidade impedir que o controlador ou superior hierárquico limite-se a afastar um dado vício, sem cogitar do que remanesce cabível na espécie, como alternativa de ação pública. A ideia é a de que, sendo obrigado a ponderar as hipóteses possíveis, diante da realidade administrativa, para as especificar em cumprimento ao parágrafo único do artigo 20 da LINDB, termine a autoridade ou órgão controlador por refletir se a extinção ou medida tomada é, de fato, a que melhor protege o interesse público.

No que tange à determinação do citado dispositivo, aponta-se a dificuldade dos órgãos controladores na análise das consequências das decisões administrativas, tendo em vista a falta de infraestrutura e de elementos indispensáveis à decisão de natureza administrativa. Se de um lado há a necessidade de respeitar a capacidade institucional do gestor público que elaborou, planejou e executa a política pública, praticando atos unilaterais e bilaterais (sim, é preciso evitar excesso nos controles da Administração Pública), por outro lado, não se pode ignorar o risco de blindar as escolhas administrativas da possibilidade de um controle que dê concretude efetiva às normas principiológicas e às regras legais (pelo fato do órgão sequer ter condições humanas, estruturais, orçamentárias e técnicas para cumprir o dever de exame do artigo 20 da LINDB, refazendo na via controladora o caminho da atividade governamental e administrativo); o resultado possível pode implicar que erros da Administração sejam eternizados pela impossibilidade de cumprir o parágrafo único do artigo 20 da LINDB.

De fato, não é absurdo imaginar, já a uma primeira leitura, que se tornou possível a paralisação das competências de controle diante do não cumprimento da exigência do artigo 20. Afinal, se o controlador não tiver elementos para cogitar das alternativas administrativas de gestão, com especificação das consequências práticas da sua competência, a ele é vedado agir. E, se não agir, em algumas circunstâncias teremos ações ilegais da Administração Pública permanecendo no sistema, sem que esteja autorizada a ação repressiva dos órgãos de controle competentes.

A esse propósito, cumpre advertir que, se abusos ocorreram e ocorrem em realidades diversas de controle (reconhecimento inevitável até para evitar a continuidade do vício), a solução não é paralisar, petrificar, nem impedir o controle da Administração Pública, sob pena de abusos no exercício do poder aumentarem significativamente. Daí a necessidade de cautela na atividade hermenêutica do artigo 20 da LINDB, diploma que orienta a interpretação de todo o ordenamento subsequente.

Não se vislumbra que a consequência decorrente do referido dispositivo é simplesmente impedir a atividade de controle (ou mesmo administrativa) quando, de plano, não se mostrar viável indicar as consequências práticas e alternativas de gestão posteriores à atividade estatal. Ao contrário, é preciso reconhecer, como instrumento de concretude da regra legal, poder de requisição junto à entidade ou órgão da Administração Pública que detenha as informações necessárias, a fim de que possa o controlador (ou o administrador) dar cumprimento ao encargo que lhe é imposto, como condicionante do exercício das suas atribuições. Assim sendo, em vez de o artigo 20 da LINDB paralisar as indispensáveis ações administrativas e de controle, inclusive de natureza judicial, tem-se que o mesmo serve de fundamento ao poder-dever instrutório, de modo a colacionar os elementos técnicos, fáticos e jurídicos indispensáveis para que as atribuições se exerçam com plena juridicidade

É mister destacar, ainda, a regra do artigo 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

“Art. 21.  A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

Parágrafo único.  A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.”

Trata-se, basicamente, de consagração expressão de alguns elementos que já integram o regime jurídico administrativo, em especial: a adoção de parâmetros principiológicos decorrentes da eficiência administrativa, bem como o conceito da convalidação dos comportamentos públicos quando haja vícios sanáveis, além da proporcionalidade (subespécie necessidade) que é obrigatória quando se onera alguém com um comportamento estatal (dever de onerar da forma mais suave possível).

Contudo, é indispensável cautela necessária em relação a alguns conceitos, bem como atenção a riscos inerentes à hermenêutica pretendida para o citado texto normativo. Em primeiro plano, “interesse geral” é conceito sem definição sequer doutrinária, já que o direito administrativo trabalha, em regra, com ideia de “interesse público”, sendo este ainda objeto de significativas controvérsias entre juristas e Tribunais. Ademais, há um risco que não pode ser ignorado, a saber, os possíveis entendimentos oriundos desse dispositivo que defendam a existência de um “dever de convalidação como regra”, não se vislumbrando segurança jurídica nem mesmo quanto à expressão “quando for o caso”.

Não é absurda a possibilidade de se eternizar discussão “invalida ou se mantém pela convalidação?”, tendo em vista o uso de expressões vagas no preceito legal, ao que se acresce a margem de avaliação subjetiva de quais situações não autorizariam ônus ou perdas desproporcionais aos sujeitos atingidos. São vagas as expressões “perdas/ônus anormais ou excessivos”, o que pode ensejar práticas casuísticas, com grande insegurança jurídica.

Sublinhe-se que o quadro pode se agravar, se se cogitar de possíveis pressões políticas de gestores, sobre órgãos de controle os quais, ao final, farão interpretação das novas determinações legais. Assim sendo, no lugar de uma saudável exigência de fundamentação concreta e consequencialista dos atos de invalidação e regularização subsequente, é possível o emprego do artigo 21 como um escudo à efetividade da competência anulatória, mediante o simples argumento “os ônus aos sujeitos atingidos são excessivos ou anormais e, por isso, não é cabível falar em invalidação”.

A fim de evitar tais riscos, é preciso também aqui evitar que as condicionantes do dispositivo ensejem interpretação que levem ao não exercício das competências, em especial as de controle. Em algumas circunstâncias, para que as atribuições constitucionais e legais impostas ao Judiciário e a outros órgãos públicos ocorram, será preciso recorrer ao instituto da responsabilidade objetiva do Estado, a fim de equacionar determinados ônus considerados “excessivos” ou “desproporcionais” com a efetividade do ordenamento, incluídas as competências administrativas, de controle, bem como o “caput” e o parágrafo único do artigo 21 da LINDB.

É importante salientar que falar e normatizar o dever de motivação, ainda mais diante de vícios que possam levar a invalidar ou convalidar comportamentos públicos, é essencial e enseja evolução das práticas administrativas e de controle. No entanto, falar e normatizar a motivação de forma dúbia, admitindo como resultado do seu modo de exercício a insuficiência ou até mesmo a ausência do controle de juridicidade, e com o consequente não atendimento do ordenamento, pode significar preservar ilicitudes administrativas, o que é claramente indesejado. Com efeito, equívocos nesse espaço podem resultar em uso de um espaço da Ciência Jurídica com claro potencial positivo para permitir resultados que podem ser significativamente danosos à realidade administrativa e social; em alguns casos piores do que os vícios originários.

Entrevê-se um perigo que se entende necessário não ignorar, qual seja, a proliferação de discussões contínuas sobre tentativa de repressão de ilicitudes com base em regramentos da motivação (princípio nobre) que, alçada a níveis inexequíveis e não sustentáveis, poderá resultar em prejuízos significativos à própria Administração e à sociedade. Nesse contexto, insiste-se ser incabível negar os riscos inerentes à normatização do dever de motivar nos termos em que fixado na LINDB. Embora seja claro que “controle não é fim”, que “é preciso ter comprometimento com os resultados de qualquer comportamento público” e que “abusos dos órgãos controladores são realidade comum”, não se pode tornar impossível a motivação das competências controladoras, inclusive na esfera judicial, nem impedir que seja exercido controle de modo efetivo em um país com grandes índices de corrupção e desvios como o Brasil. Transformar a necessária regularidade quanto à motivação em dificuldade de órgãos como os da advocacia pública, corregedorias, Cortes de Contas, Judiciário, auditorias, controladorias e tantos outros exercerem suas atribuições é contraproducente e pode fazer surgir problemas tão ou mais graves do que os atualmente já enfrentados no exercício das competências estatais.

Em linguagem coloquial, cabe dizer: é preciso cuidado para o remédio aplicado para salvar não termine por matar o doente. Sim, o nosso sistema administrativo e de controle anda padecendo de patologias graves, dentre as quais vislumbramos excessos, arrogâncias dos seus agentes, incapacidade de reconhecer os próprios erros, disputas institucionais por poder e vários outros problemas que comprometem uma vida saudável em sociedade. No entanto, é preciso maturidade para não acreditar que qualquer remédio é capaz de combater esses males. O Brasil, de fato, não é para amadores. A captura de esferas de poder, em momentos de fragilidade máxima, é elemento histórico que não podemos ignorar. E se não tomarmos cuidado, os instrumentos invocados para “cura” dos problemas podem trazer patologias piores ao já frágil sistema estatal, com maiores danos impostos aos cidadãos, já reféns de incompetência e práticas corruptas. No tratamento das doenças, especificamente no que tange às novas normas da LINDB, é indispensável que o resultado das interpretações jamais seja a blindagem dos erros e desvios, nem signifique a paralisação de competências de controle e administrativas indispensáveis na realidade brasileira. Para tanto, cabe aos juristas construir, passo a passo, mecanismos que viabilizem o atendimento das finalidades decorrentes das regras introduzidas pela Lei Federal nº 13.655/2018, sem fazer ruir as demais regras constitucionais e legais, valendo-se de institutos vários do direito público, os quais devem se articular, de modo coordenado, de modo a se alcançar algum significado razoável, bem como efetividade sistêmica do ordenamento.

Referida cautela também se impõe na interpretação do artigo 22 da LINBD que, na análise fática, impõe ao órgão de controle considerar, meritoriamente:

“Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.

§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.”

Nenhum vício existe em impor que a hermenêutica posterior se dê com atenção à realidade presente momento em que as competências administrativas exerceram-se, nem mesmo nas regras que adotam o parâmetro da proporcionalidade quanto ao poder sancionatório do Estado.

Especificamente quanto ao “caput” do artigo 22, o objetivo é impedir que se qualifique como “ilícito” de qualquer natureza (improbidade, disciplinar ou outra esfera) algo que, no momento da atividade administrativa, não admitia decisão diversa, tendo em vista as dificuldades enfrentadas pelo gestor. De fato, não é raro que atos de controle realizados anos depois do comportamento público considerem alternativas que, no momento da ação do Estado, não existiam, nem eram cogitáveis. Trata-se do famoso “profeta do acontecido” que julga impiedosamente no futuro atividades que, quando realizadas, sujeitavam-se limites reais que obstaculizavam outras hipóteses de ação. A LINDB prescreve que a realidade a se considerar quando da definição da regularidade ou ilicitude do comportamento do Estado é a do momento em que se atuou e não a do futuro, à época do controle posterior.

Outrossim, o reconhecimento implícito do princípio da proporcionalidade já atrai a exigência de que quaisquer atos punitivos do Estado sejam adequados, necessários e proporcionais em sentido estrito. Isso significa que a sanção fixada na esfera administrativa ou de controle deve ser o meio próprio a se alcançar a finalidade naquele caso, não sendo lícito qualquer excesso, porquanto deve ser a menos restritiva possível.[16] É preciso cogitar dos benefícios alcançados com a punição e as restrições dela decorrentes, a fim de mensurá-la de forma razoável, o que implica individualização da pena, com dosimetria correta que considere agravantes, atenuantes, bem como os antecedentes do agente. À obviedade, esses aspectos positivam requisitos específicos de motivação os quais já decorriam do princípio implícito da proporcionalidade. Agora, tais pressupostos estão expressos no artigo 22 da LINDB e orientam a interpretação dos diplomas relativos ao exercício do poder disciplinar, do poder de polícia, incluídos aqueles que regem as competências das entidades que atuam na fiscalização e atividades punitivas, como é o caso das agências reguladoras, autarquias como Banco Central, CVM e IBAMA, além dos órgãos públicos. Cada um desses órgãos e entidades, ao impor uma sanção, terá o dever de explicitar, a título de motivação, a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos impostos à Administração Pública, as circunstâncias agravantes, atenuantes e os antecedentes do agente, considerando na dosimetria as sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

Mais uma vez adverte-se que a cautela requerida é afastar a incidência de tais parâmetros como um biombo capaz de blindar a atividade administrativa de qualquer controle repressivo “a posteriori”, tornando as escolhas anteriores, não importa o quão contaminadas sejam, em decisões de efeitos perenes, incapazes de atrair qualquer rechaçamento jurídico eficaz. Exigir motivação que explicite o cumprimento da proporcionalidade é evolução do sistema normativo, merecendo aplausos a regra do artigo 22 da LINDB quanto a esse aspecto. No entanto, decretar nulidade de ato de controle que não cumpriu adequadamente tal mister e, assim, fazer retornar ao sistema jurídico eventuais ilegalidades anteriores, afastando punições necessárias à preservação da juridicidade, pode se mostrar alternativa pior à proteção do interesse público primário (ou seja, aos cidadãos membros da sociedade) do que o erro no dever de motivar. Insiste-se quanto à necessidade de se ponderar, em casos difíceis dessa natureza, qual a interpretação preservará o sistema jurídico com menor restrição ao núcleo dos interesses e direitos presentes, sem olvidar da perspectiva coletiva a orientar a decisão no caso.

4. A não motivação e as suas consequências

Ao tratar das consequências de a Administração Pública não se desincumbir do seu dever de motivar, tem-se uma primeira corrente que defende haver vício de conteúdo na ação pública. A inobservância de um princípio implícito no texto constitucional, deduzido de vários outros como ampla defesa, eficiência e contraditório, levaria a identificação de um vício insanável do comportamento estatal.

Nesse sentido, decisões judiciais já assentaram que a falta de motivação caracteriza, por si só, arbítrio e ofensa ao ordenamento capaz de atrair imediata repulsa pelo Judiciário; a simples ausência de fundamentação, que já implica em falta de publicidade no tocante às razões de fato e de direito embasadoras do comportamento administrativo, nega vigência a garantias constitucionais basilares, comprometendo a necessária transparência administrativa (ofensa da autoridade ao direito subjetivo público de todo cidadão ver revelados os pressupostos de fato ou de direito que permitiram ou exigiram o comportamento administrativo).[17]

Embora seja cabível considerar vício de conteúdo insanável do ato administrativo a falta da motivação anterior ou concomitante ao ato que atenda os requisitos da clareza e congruência, em determinadas circunstâncias excepcionais há quem admita a motivação subsequente ou a sua complementação técnica. Invocando as lições de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, o professor Celso Antônio distingue a solução cabível nos atos vinculados daquela cabível quando o vício de motiva­ção ocorre nos atos discricionários. Para ele, nos atos vinculados o importante é que tenha ocorrido o motivo que, mesmo não indicado anterior ou simultaneamente com o ato, se especificado posteriormente com demonstração de que o mesmo pré-existia, afasta-se o vício. Já nos atos discricionários, a omissão em motivar de forma clara o ato, em momento anterior ou concomitante com sua prática, só se sanaria em hipóteses excepcionais nas quais se demonstrasse a preexistência da situação fática suficiente para justificar o comportamento público, o qual resultou exclusivamente daquele fato. Nas palavras do administrativista paulista:

“(…) em se tratando de atos vinculados (nos quais, portanto, já está predefinida na lei, perante situação objetivamente identificável, a única providência qualificada como hábil e necessária para atendimento do interesse público), o que mais importa é haver ocorrido o motivo perante o qual o comportamento era obrigatório, passando para segundo plano a questão da motivação. Assim, se o ato não houver sido motivado, mas for possível demonstrar ulteriormente, de maneira indisputavelmente objetiva e para além de qualquer dúvida ou entredúvida, que o motivo exigente do ato preexistia, dever-se-á considerar sanado o vício do ato.

Entretanto, se se tratar de ato praticado no exercício de competência discricionária, salvo alguma hipótese excepcional, há de se entender que o ato não motivado está irremissivelmente maculado de vício e deve ser fulminado por inválido, já que a Administração poderia, ao depois, ante o risco de invalidação dele, inventar algum motivo, ‘fabricar’ razões lógicas para justificá-lo e alegar que as tomou em consideração quando da prática do ato. Contudo, nos casos em que a lei não exija motivação, não se pode, consoante dito, descartar alguma hipótese excepcional em que seja possível à Administração demonstrar e de maneira absolutamente inquestionável que (a) o motivo extemporaneamente alegado preexistia; (b) que era idôneo para justificar o ato e (c) que tal motivo foi a razão determinante da prática do ato. Se estes três fatores concorrerem há de se entender, igualmente, que o ato se convalida com a motivação ulterior.”[18]

De fato, embora haja firme posição doutrinária e jurisprudência no sentido de que não se pode ter condescendência com vícios na motivação do ato administrativo, igualmente não é lícito ignorar que, em determinadas situações, invalidá-lo exclusivamente com fulcro na falta de motivação clara e lúcida, prévia ou simultânea ao ato, não atende sequer o interesse público primário, pois possível aferir a juridicidade e a essencialidade da conduta pública para satisfação das necessidades coletivas. Nestes casos, cumpre ponderar as normas principiológicas em tensão, fazendo prevalecer aquela que efetivamente conduza à prevalência do interesse social.

Ao encarar a referida tarefa hermenêutica em face dos princípios e regras vigentes, o doutrinador Juarez Freitas assevera que atos administrativos destituídos de motivação afiguram-se anuláveis, e o agente se vincula aos fundamentos externados. Isso porque o bom administrador público expõe as razões de conveniência ou de oportunidade, numa fundamentação suficiente e expressa, sendo certo que o dever de motivação não se deixa aprisionar em manifestações lacônicas e mutiladoras. Assim sendo, o controle das motivações passa a ocorrer no patamar mais alto, atinente à vinculação ao sistema (rede de princípios, regras e valores), seja ao tratar da indeterminação dos conceitos normativos (inclusive nos atos vinculados), seja na escolha das consequências (nos atos discricionários), apenas em abstrato igualmente válidas.[19]

Nessa perspectiva, o professor Juarez Freitas reconhece a motivação visa, antes de tudo, coibir os vícios da discricionariedade por excesso ou omissão, além de integrar a própria higidez do ato administrativo, havendo sinais auspiciosos de que a era da motivação começa a se consolidar. Em face das resistências culturais cinzentas, defende urge, mais do que nunca, consolidar o dever da motivação: “Em primeiro lugar, só uma motivação consistente oferece razões aceitáveis, isto é, universalizáveis e satisfatórias, para além do formalismo. (…) Portanto, motivar é oferecer razões imparciais, universalizáveis e aceitáveis, em vez de sucumbir ao culto das emoções autocentradas.” Em segundo lugar, a motivação impõe-se para eficácia do princípio da impessoalidade. O dever de motivar propicia a inversão do predomínio das vontades particulares e a afirmação de uma era na qual o complexo interesse público experimente chances reais, não retóricas, de primazia na eleição das premissas de gestão estatal. “Em terceiro lugar, a motivação tende a impedir que prejuízos e danos juridicamente injustos afetem direitos de terceiros. (…) Em quarto lugar, o dever de motivação ampara as expectativas legítimas e se mostra útil à criação de ambiente seguro e confiável para as relações administrativas de longo prazo.” Planejamento combina com racionalidade dialógica, não com pressões do imediato; motivação tende assegurar continuidade e estabilidade das políticas públicas. Motivação adequada estabelece postura pluralista, dialética e não-adversarial, em lugar da imposição odiosa e arbitrária, indiferente ao cidadão. (…) Por tudo, a não-fundamentação, apesar da presunção (cada vez mais) relativa de legitimidade dos atos administrativos, traduz-se como erro suficiente a ensejar a anulação.”[20]

Diante dessas razões, aduz Juarez Freitas que seria absurdo tratar o erro manifesto da falta de motivação como simples erro material. “Tal erro não pode se converter em ferramenta que, sempre à mão, o agente político transforma em álibi para suas repentinas e desencontradas mudanças de rumo. Não é por outra razão que a doutrina alerta para a circunstância elementar de que ‘é preciso distinguir retificação e modificação’. Em suma, trata-se de erro grave a falta de motivação. E, na condição de erro grave, merece ser tratada, se se quiser vivenciar a era da motivação dos atos administrativos discricionários e vinculados.” Daí concluir que “Requer-se, mais que nunca, o exercício fundamentado das competências administrativas, sem a inércia que esvazia o papel irrenunciável da esfera pública. É dizer, a exigência alastrada da motivação surge como poderoso antídoto contra a arbitrariedade, entenda como exercício autofágico e coisificante do poder, sem fundamentação coerente e reflexiva.”[21]

Diante desse contexto, reitera-se a necessidade de, em face das regras introduzidas pela Lei Federal nº 13.655/2018 na LINDB, se atualizar a interpretação cabível quanto aos vícios de motivação dos atos administrativos e de controle. Consoante já se explicitou, não se vislumbra como adequado, nem protetivo do interesse público primário, defender que o descumprimento das regras pertinentes à motivação leva automaticamente ao reconhecimento de vício e, assim, à nulidade direta de qualquer comportamento público, sendo a única hipótese alternativa capaz de fazer preservar a ação estatal a motivação superveniente que atenda aos requisitos enumerados pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello. A realidade a que se destinam as exigências dos artigos 20 a 22 da LINDB tem complexidade maior do que o mero reconhecimento de “vício de conteúdo” com invalidação automática subsequente, tal como até o presente momento se ponderou majoritariamente no Direito Administrativo Brasileiro.

É preciso interpretar o sistema para verificar, em cada caso, como assegurar o cumprimento das novas exigências expressas quanto ao dever de motivar, sem fazer ruir o sistema estatal de prática administrativa e ação de controle, indispensáveis à adequada proteção do interesse público primário. Em alguns casos, pode se mostrar adequado a invalidação de um determinado que tenha descumprido a determinação dos artigos 20 a 22 da LINDB. Em outros, contudo, pode ser necessário fazer incidir institutos outros (como, p. ex., o da responsabilidade objetiva) e, assim, não recusar vigência à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, mas também fazer ruir um sistema jurídico que precisa de um mínimo de regularidade nas ações administrativas, de ação repressiva eficiente diante de ilegalidades e de preservar os meios de controle que cumprem função pedagógica e expulsiva de vícios do ordenamento.

Se a tarefa que o intérprete do Direito Administrativo enfrentava quanto ao dever de motivar já se mostrava desafiadora, com a superveniência da Lei Federal nº 13.655/2018 será indispensável ponderar as diversas normas, as finalidades públicas e as competências estatais para definir, caso a caso, a solução adequada à real evolução do sistema jurídico brasileiro. E isso, à obviedade, motivadamente, de modo a afastar casuísmos que proliferem insegurança jurídica. Ao contrário, explicitar os fundamentos ponderados em cada situação será a forma de assegurar legitimidade ao processo de definição da norma que regerá a espécie. Motivação, essa eterna companheira.

 

[1] ROMS n° 19.210-RS, rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma do STJ, DJU de 10.04.2006, p. 235

[2] Nessa porfia, o STJ já se pronunciou: Ag. Reg. no ROMS n° 15.350-DF, rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6ª Turma do STJ, DJU de 08.09.2003, p. 367

[3] CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 276

Ainda se identificam decisões minoritárias em pleno século XXI defendendo referido posicionamento: ROMS n° 12.312-RJ, rel. Min. Vicente Leal, 6ª Turma do STJ, DJU de 09.12.2002, p. 390

[4] MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 168

Confira-se, também, as seguintes decisões do STJ: ROMS n° 10.165-DF, rel. Min. Vicente Leal, 6ª Turma do STJ, LexSTJ, v. 152, p. 38. No mesmo sentido: REsp n° 416.678-RS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma do STJ, DJU de 07.03.2005, p. 318

[5] ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Motivação e controle do ato administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. p. 114-115

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 101; 227-228

[7] MS n° 25.668-DF, rel. Min. Celso de Mello, Pleno do STF, julgamento em 23.3.2006, Informativo 420 do STF

[8] MS n° 9.944-DF, rel. Min. Teori Albino Zavascki, 1ª Seção do STJ, julgamento em 25.05.2005, Informativo 248 do STJ

[9] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. O imbróglio na nomeação de ministros de Estado. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/raquel-melo-urbano-de-carvalho/o-imbroglio-na-nomeacao-de-ministros-de-estado- e em http://raquelcarvalho.com.br/2018/06/26/o-imbroglio-na-nomeacao-de-ministros-de-estado/. Acesso em 12.08.2018.

[10] Wallace Paiva Martins Júnior in Tratado de Direito Administrativo. v. I. coord. Maria Sylvia Zanella di Pietro. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 470

[11] MS n° 25.518-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno do STF, DJU de 10.08.2006, p. 20

[12] MS n° 10.470-DF, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, 3ª Seção do STJ, DJU de 18.06.2007, p. 242

[13] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva in Tratado de Direito Administrativo. v. I. coord. Maria Sylvia Zanella di Pietro. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 466

[14] SUNDFELD, Carlos Ari. CÂMARA, Jacintho Arruda. O dever de motivação na edição de atos normativos pela Administração Pública. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte: Fórum. Ano 11. n. 45, p.60, jul./set. 2011

[15] Sobre motivação de atos regulatórios, confira-se: ISSA, Rafael Hamze. Reflexões a respeito da motivação na atividade normativa regulatória. Boletim de Direito Administrativo, ano 31, n. 7, p.795-804, jul. 2015

[16] Sobre a proporcionalidade e as subespécies adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, confira-se o item 6.1. “A proporcionalidade como técnica de ponderação diante do conflito entre garantias constitucionais” do artigo “Em questão a revista íntima dos visitantes dos presídios: a garantia estatal de dignidade como imperativo estatal” (CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. “Em questão a revista íntima dos visitantes dos presídios: a garantia estatal de dignidade como imperativo estatal”. Disponível em http://raquelcarvalho.com.br/2018/07/03/em-questao-a-revista-intima-dos-visitantes-de-presidios-a-garantia-de-dignidade-como-imperativo-estatal/,  Acesso em 12.08.2018).

[17] RMS n° 15.459-MG, rel. Min. Paulo Medina, 6ª Turma do STJ, DJU de 16.05.2005, p. 417

[18] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 375, itálico no original

[19] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 49-57

[20] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública, op. cit., p. 57-62

[21] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública, op. cit., p. 62-63

Confira-se, a propósito da ausência ou vício de motivação, decisão dos Tribunais Superiores: a) STF – MS nº 25.747-SC, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno do STF, julgamento em 17.5.2012, Informativo 666 do STF; b) STJ – RMS nº 49.896-RS, rel. Min. Og Fernandes, 2ª Turma do STJ, julgamento em 20.04.2017, DJe 02.05.2017, Informativo 603 do STJ; RMS nº 40.427-DF, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª Turma do STJ, julgamento em 03.09.2013, Informativo 529 do STJ.

 

2 Comentários


  1. A impressão que temos é que um artigo desse naipe esgotou de vez o assunto.
    Uma obra de arte do Direito !
    Será que a professora Raquel poderia me
    indicar um Advogado especialista em Direito
    Administrativo de alto padrão em Belo Horizonte ? E minha pendência envolve
    exatamente o assunto MOTIVAÇÃO E DECISÃO FUNDAMENTADA. Muito Grato.

    Responder

    1. Belo Horizonte tem excelentes escritórios especializados em Direito Administrativo como o Carvalho, Pereira e Fortini (das sócias Maria Fernanda Pires e Cristiana Fortini) e o escritório Unes & Silveira (dos sócios Flávio Unes e Marilda Silveira). Pessoalmente, somente atuo em consultoria, desde que não haja qualquer repercussão junto ao Estado de Minas Gerais, em razão do cargo (Procuradora do Estado).

      Responder

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *