Dia Internacional da Mulher: ainda sobre ele (TECLASAP)

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Os  primeiros artigos “Tecla SAP” surgiram com o objetivo de traduzir o direito administrativo para uma linguagem compreensível por leigos. Depois vieram outros artigos voltados para crianças, a pedido e a partir de conversas com o universo infantil. O texto de hoje talvez não seja um artigo jurídico formal, mas merece o enquadramento “Tecla Sap” pela seguinte origem:

- Tia Quel, por que você não escreveu sobre o Dia da Mulher?
- Acho que estou “meio cansada”, quilida.
- Você já ficou cansada antes, quando Tio e Tia estavam no hospital, e ainda assim escreveu...
- Verdade. Mas era um cansaço diferente. Era por falta de sono e muita preocupação com a recuperação deles.
- Agora você está cansada é de apanhar, né?

Não respondi. Só dei um abraço. Desses com direito a suspiro no final.

Fiquei pensando como explicar que o cansaço que mulheres como eu sentimos é infinitamente menor do que o de outras[1]. Aquelas que são pobres, negras e sem amparo familiar e social, mas que matam um leão por dia com dignidade e coragem inexplicáveis. Aquelas que apanham de verdade, no sentido literal e físico da expressão, muitas vezes antes de serem assassinadas por seus companheiros. Um tipo de mulher que só de lembrar a força faz surgir um tanto de vergonha pela omissão em dizer do nosso lugar do mundo. Um espaço que também tem seus desafios, mais numerosos do que os enfrentados pelos homens que estão ao lado e mais confortável do que o experimentado por tantas outras, na batalha por seus direitos mínimos.

- Quando você era criança, era tratada diferente por ser menina?
- Em casa não. Acho que, como era única, fui criada para fazer tudo: o que se considerava "coisas de menino” (como carregar latão de leite na roça) e as “de menina” (como cozinhar e dar faxina). E na nossa família, estudar, formar e ser independente é coisa pra todo mundo mesmo. 
- É. Isso é verdade. Quando você viu que ser mulher era mais difícil?
- Tinha acontecido antes, mas entendi de verdade quando mãe foi eleita oradora da turma de faculdade. Eu já tinha uns 17 anos. Ela passou dias escrevendo um discurso lindo. No final, leu para pai e para mim. Ficamos emocionados e mal sugerimos umas duas ou três mudanças. Depois da formatura, metade das pessoas disse que tinha sido pai quem havia escrito o discurso. Porque ele era mesmo um gênio para falar. Mas a verdade é que não havia escrito uma só palavra. E levou os louros. Ali, vi que reconhecimento feminino é algo pelo que é preciso lutar. Como eu briguei com as pessoas que duvidaram de mãe... rs

Segui pensando como explicar que qualquer inclusão, seja de raça, gênero ou social, requer um longo caminho para que ocorra. Não consiste um processo linear e muito menos definitivo. Jamais será uma reta entre dois pontos, com chegada e partida definidas. Também não se trata de algo a se conquistar e que “pronto!, acabou-se, passemos ao próximo ponto”. No caso das mulheres, a multiplicidade e a pluralidade são inerentes ao contexto, as curvas tortuosas são inevitáveis, os retrocessos ameaças constantes, além das mudanças e redefinições desejáveis. Para os adultos, vale trazer uma parte de um maravilhoso texto da Carla Rodrigues :

“Somos, numa proposição de Max Weber tomada pelo antropólogo Clifford Geertz na definição de cultura, seres amarrados em teias de significado que nós mesmas tecemos, ou atados pela história que contamos sobre nós mesmas e sempre recontamos, porque é infinita a necessidade de separar o que lembrar e o que esquecer, e redesenhar as imagens que lampejam do passado, em constelações muito menos coerentes do que gostaríamos de acreditar. Se essas teias pudessem formar um cesto que contorna o vazio, configurar um receptáculo que dá lugar a todas as reivindicações e, mais, onde sempre pode caber a cada vez uma nova pauta política, passaríamos a propor transformações ao modo dos feminismos, que estão sempre sendo costurados, feitos, desfeitos e refeitos, a fim de tornar as nossas tramas outro modo de fazer revolução.”[2]

Essas teias que contornam o vazio, num comportamento revolucionário, precisam superar o desafio de vencer a invisibilidade e a desqualificação do próprio caminho. No mundo privado e no setor público, postos de comando são ocupados, em sua maioria, por homens, salários pagos pelas empresas aos funcionários superam os valores pagos às mulheres, além de serem comuns procedimentos comuns como assédio moral, “mansplaining”, “manterrupting”, assédio sexual e “bropriating”.

- Sabe quando o seu melhor amigo explica para você que “gol é quando a bola entra na rede” e que “estepe é o pneu sobressalente”?
- Sei! Como se eu fosse idiota...
- Pois é. Sabe quando seu irmão não deixa você terminar uma frase e já vai concluindo o que você queria dizer?
- Anh ham... (olhos revirados)
- Então... E sabe quando você teve a ideia sozinha e seu colega fala como se tivesse sido ele?
- Ó.d.i.oooooo!
- Lembra que eu disse que “é preciso se posicionar e se defender”?
- Mas eu fiz isso!
- E terá de fazer muitas e muitas vezes na vida. Não desista de se defender. Nunca, nunca mesmo, deixei que digam que você é louca, exagerada ou que “surtou”. Tem um nome quando querem fazer parecer que uma mulher é a doida que inventa o que não teria ocorrido (mas ocorreu e não tem loucura alguma ali). Chama “Gaslighting”, outro nome em inglês. Hoje já se fala em “gaslaitear”  algo muito comum em ambientes profissionais e mais grave em meios machistas como médicos cirurgiões, advogados e juízes, políticos, CEOs...
- Mas até você cai nessa?
- Ninguém é esperto o suficiente para escapar disso. É uma cultura forte e até mulheres confiantes são vítimas dela. E o pior é que a história contada, que é a que fica, não vem pela voz feminina, sempre no foco para ser apagada.
- Por isso é que você diz que a gente tem de falar, né?
- Isso. Mas com...
- Já sei. Já sei! Com educação, firmeza e respeito. Tem que saber ouvir também. Já-sei.
- Mais que isso, amor. Agora é preciso cuidado.

Me perguntei como explicar que vivemos um momento de “ódio fora do armário” e que, mesmo com educação e respeito, mesmo sabendo ouvir o outro, a reação pode ser agressiva, inesperada e perigosa. Como não abortar uma resistência de identidade e, ao mesmo tempo, ensinar a dizer, sem covardia e sem riscos desnecessários, aquilo em que acredita? Como viabilizar o diálogo num mundo em que sequer tolerância com o diferente é um horizonte possível?

Foi quando decidir escrever. Se há um sentido em superar o cansaço e se arriscar em tema tão difícil, é não desistir de dar o seu ponto nessa teia de diálogo, resistência, multiplicidade e (re)construção. Há uma responsabilidade sob os ombros de cada mulher e não para que “obtenha um novo direito”, mas para que “se insira no processo de construção” dessa nova realidade, em que a possibilidade de “escolher ser” seja, de fato, uma alternativa garantida a todas. Lembrei, então, um momento raro em que a Ciência do Direito, pela Corte Suprema, trouxe algumas ponderações que vale a pena reiterar.

Na decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 5.617-DF, após a premissa “A igualdade entre homens e mulheres exige não apenas que as mulheres tenham garantidas iguais oportunidades, mas também que sejam elas empoderadas por um ambiente que as permita alcançar a igualdade de resultados”, o Ministro Edson Fachin assentou:

“Nunca haverá paz no mundo enquanto as mulheres não ajudarem a criá-la”. Essas lúcidas palavras de Bertha Lutz, proferidas por ocasião da Conferência de São Francisco, em 1945, na fundação da Organização das Nações Unidas, reverberam até hoje, audível no silêncio das ausências femininas nos parlamentos mundo afora.

Bertha Lutz, bióloga brasileira, vocalizou o anseio das mulheres em ocupar a esfera pública e assumiu, após a morte do titular, o mandato de deputada na Câmara Federal em julho de 1936. Sua trajetória guarda verdadeira indissociabilidade com a inscrição da igualdade entre homens e mulheres no preâmbulo da Carta da ONU (artigo 8º da Carta da ONU).

Segundo dados da União Interparlamentar (IPU), no bojo do relatório ‘Mulheres no Parlamento 2015: Revisão Anual’, as mulheres representam 22,6% dos membros dos parlamentos mundo afora. E, ainda que se trate do maior percentual já alcançado, de 2015 caiu 1,5% (um e meio por cento) em relação ao observado em 2013.

Importa, portanto, percorrer o histórico de reivindicações de direitos políticos das mulheres e o papel da Suprema Corte brasileira no presente momento. Remonta ao Código Eleitoral de 1932 (Decreto n. 21.076/1932) a conquista do direito ao voto no Brasil, reivindicação de movimentos sufragistas, que rompeu com a exclusão não advinda de proibição expressa, mas de uma interpretação excludente do texto constitucional.

A agenda de reivindicações subsequentes tratou do acesso a cargos públicos e de representação política; na América Latina, na década de 1990, após serem firmadas diretrizes na Plataforma de Ação de Beijing (1995), difundiram-se leis de cotas de gênero na região.

A matéria a ser enfrentada no deslinde desta causa, qual seja, a destinação de Fundo Partidário para o financiamento de campanhas de candidatas, ao trazer à tona a coibição de uma externalidade negativa que produz barreiras para o ingresso feminino em mandatos eletivos, representa novo marco neste processo. Conclama o Supremo Tribunal Federal a robustecer a vedação à discriminação por gênero (art. 1º, IV, da CRFB) para realizar a promoção de uma sociedade plenamente justa, solidária e livre e a promessa constitucional da igualdade. Tal como a paz não haverá verdadeira democracia enquanto não se talharem as condições para tornar audíveis as vozes das mulheres na política.”

Também o Ministro Luís Roberto Barroso observou que “menos de 10% do Parlamento é composto por mulheres, no Brasil; 11,57% das mulheres ocupam a titularidade nas prefeituras; 28 dos 29 Ministros de Estado são homens; as principais agências reguladoras do País – ANAC, ANP, ANEEL, ANTAQ, ANVISA – têm 100% de diretores homens; já nos cargos efetivos, de investidura técnica, geralmente por concurso público, as mulheres ocupam um pouco mais de 50% das vagas no serviço público federal. Eu tiro esses dados de um trabalho importante publicado recentemente no Jota sobre disparidade de gênero, assinado por Ana Luíza Calil, Carina de Castro, Ketlyn de Souza e Tereza Melo. Mas a constatação interessante é que, nos cargos providos por mérito, por qualificação, as mulheres já conquistaram igualdade e até uma ligeira superioridade, mas, nos cargos que dependem de indicação política, ainda são minoria expressiva.”

A Ministra Rosa Weber, após evidenciar a legitimidade do instituto das ações afirmativas, pontuou:

“10. O direito ao voto e à participação democrática feminina na vida política do país é outro claro exemplo de desigualdade estrutural e institucional, que justifica a intervenção do Estado, mediante políticas afirmativas, como técnicas adequadas de adimplemento dos direitos fundamentais.

A participação e a representação das mulheres nos órgãos decisórios e espaços do executivo e do legislativo aumentaram nas últimas décadas, mas de forma lenta e desigual. Atesta esta afirmação, o percentual médio de assento de mulheres nos parlamentos nacionais. Em abordagem comparada é de apenas 23% esse percentual.

  1. Inúmeras são as variáveis que influenciam na formação desse quadro deficitário, como fatores sociais, econômicos, culturais, políticos, religiosos e institucionais. Por isso, aumentar a participação e a representação das mulheres na vida política requer esforços para lidar com essas restrições, que permeiam as esferas públicas e privadas, formais e informais.

Como vários são os fatores que obstaculizam a efetivação da igualdade e liberdade na participação democrática, igualmente várias são as possibilidade e arranjos institucionais para incrementar a representação das mulheres em posições de poder e tomada de decisão, de modo a implementar o acesso ao processo democrático. (…) A todo momento nos debates constituintes e legislativos, a mulher foi deliberadamente excluída da política e processos decisórios públicos, por fatores culturais e políticos. A decisão majoritária, constitucional e legislativa, ‘pacífica’ de negativa do voto à mulher perdurou na ordem normativa e institucional brasileira por mais de um século. A regulamentação constitucional do direito ao voto feminino ocorreu apenas com a constituição de 1934, a qual, no entanto, no art. 109, restringia o exercício desse direito às mulheres que exerciam função pública remunerada . (…)

  1. Se, por um lado, o direito ao voto materializou a igualdade, a liberdade ao acesso da escolha dos representantes políticos, o mesmo não pode ser afirmado quanto ao espectro das mulheres na qualidade e quantidade de sujeitos ativos no processo de representação política.”

Destaquem-se, ainda, os questionamentos da Ministra Cármen Lúcia:

“É preciso que se diga que nós mulheres, as que são professoras nessa área, até lemos, estudamos e ensinamos a Constituição no sentido de buscarmos uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Começamos lendo o art. 5º – ‘Todos são iguais perante a lei’ -, mas, ao final, nós temos é uma interrogação, diante do que vivemos. Todos são iguais perante a lei? As que sofrem o preconceito e a discriminação que nós sofremos? ‘Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações?’. É uma interrogação que nós nos colocamos, tal o preconceito, a violência praticada de forma direta ou indireta, física ou psicológica, de toda natureza e em todos os níveis sociais.

Disse aqui mesmo, em outra ocasião, e trouxe aos Ministros – e estamos num Tribunal Constitucional – um dado que foi publicado, em um jornal de abril do ano passado, em que, até mesmo, o número de falas de nós, juízas, em órgãos colegiados do Poder Judiciário no Ocidente, é 18% objeto de maior interrupção do que em relação aos homens. Só para se ter uma ideia da condição diferenciada em que nos colocam e contra o que temos de lutar permanentemente.

Portanto, em um dia como hoje, afirmo que, quando nos lembramos de Marielle – no meu caso, domingo ainda, foi-me remetido um vídeo dessa vereadora (a vereadora melhor votada no Brasil, nas eleições de 2016, quinta vereadora mais bem votada no Rio) -, não pergunto, à maneira de John Donne, por quem os sinos dobram. Eles dobram por mim, eles dobram em mim. Queria muito que os sinos tivessem que soar para comemorar alegrias, não dobrar por tristezas, como tenho tantas vezes que escutar com a minha alma. Mas tenho certeza que todas as indignidades, as injustiças, as iniquidades, os preconceitos fazem com que a gente tenha coragem para lutar mais para que outras Marielles lutadoras venham, para que a gente tenha outros momentos e para que isso não precise sequer ser aventado. Que a Constituição brasileira possa ser lida, por homens e mulheres, com a igual certeza da eficácia dos direitos ali garantidos. (…)

Então, todas essas tentativas de se conferir tratamento positivo, no sentido de afirmar direitos, devem ser considerados legítimos, embora o que queiramos é que se chegue o tempo em que não seja preciso se cogitar de ação afirmativa, porque aí é que a democracia estará amadurecida. Então estaremos numa situação muito melhor. Mas todas nós continuamos a sofrer preconceitos e de enorme gravidade. Que vão desde uma brincadeira ou deboche – que é uma forma, pela zombaria, de desqualificar as mulheres, de desmoralizar as mulheres, o que, na mesma situação, não acontece com os homens – até a forma de violência – como agora lembrada, em quase todos os votos aqui, neste caso do Rio ocorrido dessa madrugada -, forma crua, perversa, cruel, que faz com que a gente tenha que ter muita força para continuar a acreditar em um marco não civilizatório, mas em um marco de humanidade do período que nós estamos vivendo. (…) E isso tudo é de uma cultura que não vai mudar da noite para o dia. Isto é apenas um registro, Ministro Gilmar, porque, quando afirmo que a gente sofre preconceito, estou usando o verbo correto. É um sofrimento você ser tratada diferente não porque não possa fazer igual, por exemplo, no campo do direito, mas por ser mulher. Então, já se olha, com preconceito, uma discriminação que passa pelo olhar.”[3]

A transcrição das ponderações feitas no STF em dia 15 de março de 2018, no dia seguinte ao assassinato da vereadora Marielle Franco, é mais uma tentativa de evidenciar a importância de se falar sobre o Dia Internacional da Mulher. Buscar trazer para uma linguagem mais simples um pouco de uma discussão tão complexa é outro esforço no mesmo sentido. Aproximar os desafios do cotidiano das crianças, jovens e adultos é um jeito bom de darmos as mãos e seguirmos.

Desejo que não tiremos os olhos de quem, no início da vida, nos traz esperança e força para lutar. Que haja sempre rostos que se amparem vida afora como esses cinco (no alto do artigo) que se abraçam nos altos e baixos, alegrias e tristezas, com décadas de afeto construído. E que cada um de nós se disponha a participar desse movimento, com os próprios erros e acertos, retrocessos e evoluções, idas e vindas, todos constitutivos da imperfeição característica da humanidade, absorvida em feminino e significada por nossas escolhas.

 

[1] A professora Luciana Dadalto trouxe a ideia, com clareza habitual, em um post divulgado nas suas redes sociais (facebook e instagram) no último dia 08 de março. A reprodução do conteúdo, com a identificação da autoria, encontra-se nos perfis pessoais: Professora Raquel Carvalho (página do fb) e @professoraquelcarvalho (instagram).

[2] RODRIGUES, Carla. Breve história crítica dos feminismos no Brasil. Disponível em https://www.revistaserrote.com.br/2019/02/breve-historia-critica-dos-feminismos-no-brasil-por-carla-rodrigues/. Acesso em 09.03.2019.

[2] ADI nº 5.617-DF, rel. Min. Edson Fachin, Pleno do STF, DJe de 02.10.2018.

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