PANDEMIA: REGIME JURÍDICO EXTRAORDINÁRIO?

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1. A excepcionalidade da pandemia e sua repercussão nos trâmites administrativos das licitações e contratos indispensáveis à proteção da vida e saúde

No primeiro semestre de 2020, diversos países não lograram escapar dos graves problemas causados pela pandemia decorrente do contágio pelo coronavírus, inclusive aqueles de primeiro mundo com realidades econômicas e administrativas teoricamente melhor estruturadas do que o Brasil. A doença respiratória nominada COVID-19 segue não respeitando fronteiras, nem omissões administrativas, e as orientações técnicas atuais indicam a necessidade de o Poder Público se manter preparado para fornecer as condições necessárias ao trabalho dos profissionais de saúde e à sobrevivência dos cidadãos contaminados, numa ampliação rápida do sistema de saúde que se torne capaz de lidar com demanda superior a qualquer outra já enfrentada, máxime em razão da não adoção de cautelas como a de isolamento social.

Para tomar as providências que a emergência de saúde pública internacional exigiu, foi preciso adquirir diversos bens e insumos, já tendo se estruturado, jurídica e administrativamente, em diversos entes federativos, os caminhos adequados para tanto: inicialmente a licitação dispensável como regra e, em casos excepcionais, a requisição administrativa para aquisições urgentes e emergenciais, com subsequentes medidas como realização de pregão eletrônico, inclusive com constituição de Registro de Preços, a viabilizar as contratações indispensáveis.

É certo, entretanto, que parte dos bens não é produzida no país, nem se encontra em território nacional. Assim sendo, é inviável que o Estado brasileiro se utilize de medida embasada no “poder extroverso”, que se assenta na soberania, como é o caso da requisição administrativa. Restou, pois, a qualquer dos entes federativos buscar que fosse ultimada contratação direta, mediante dispensa de licitação ou com adoção das modalidades licitatórias vigentes, em face de empresas sediadas em outros países, inclusive na China e nos Estados Unidos.

Esclareça-se, portanto, a realidade com que se deparou a Administração Pública desde março de 2020: tornou-se necessária aquisição rápida de bens e insumos sem os quais o número de mortes em razão do COVID-19, já inconcebível, seria superior e mais aterrador, muito além de situações qualificadas inicialmente como trágicas como as da Lombardia na Itália e da Espanha, infelizmente superadas e muito pelo Brasil. Registre-se que os produtores e alguns fornecedores de bens indispensáveis sequer estavam sediados em território nacional, o que evidenciou a imprescindibilidade da realização de licitações internacionais para a realização da compra, com a contratação direta afigurando-se a única alternativa disponível ao Poder Público.

Vale resumir: 1) estavam em jogo vidas humanas ainda em número não mensurável; 2) o cenário internacional apontava para uma situação de colapso do sistema de saúde e de tragédia caso não se estruturassem as unidades hospitalares e de atendimento; 3) não havia tempo disponível para realização das contratações nos moldes procedimentais da legislação até então em vigor; 3) não era opção válida, diante dos direitos fundamentais em jogo – saúde e vida dos cidadãos – simplesmente afirmar “não é possível adquirir com a excepcional celeridade necessária tais bens porque é preciso licitar sob as modalidades de concorrência ou de pregão, nos termos dos procedimentos das normas gerais federais em vigor”.

Trata-se de uma situação improvável e jamais cogitada até 2020 por nenhuma assessoria jurídica de órgão público, nem mesmo pelos administrativistas mais renomados do país: uma realidade em que, de fato, tem-se uma ameaça à sobrevivência de significativa parte da população (já passamos de cem mil brasileiros mortos), não produzida diretamente pela Administração Pública (e não desejada pela maioria dos governantes), absolutamente imprevisível inclusive quanto à magnitude dos resultados, exigindo uma atuação então imediata, sem que houvesse tempo para construção de complexas saídas jurídicas, sociais, administrativas ou empresariais. A demanda foi por ação imediata e sequer havia resposta disponível no ordenamento jurídico vigente, tal como interpretado, até aquele momento, pelas Cortes de Contas, pela advocacia pública, pelo Ministério Público e pelo Judiciário.

Como afirmaram as publicistas Vanice Lirio Valle e Flávia Santiago Lima, ao analisarem em 02 de abril de 2020 a realidade em questão, vivemos uma situação de incerteza em que é preciso que o Direito tenha deferência pelas ponderações científicas que indicam a necessidade de medidas concretas aptas a proteger os cidadãos. Se o Direito for desrespeitar o que requer a medicina e outras ciências que analisam o desafio que se coloca, “aí será o caos”, como bem observou a professora Vanice. A observância, de forma racional e prudente, das consequências que já se indicavam danosas a um sem número de pessoas, caso não se realizassem as providências necessárias para a prestação do serviço de saúde, evidenciava um imperativo não passível de ser ignorado pelo Estado.

Não se tratava de consequencialismo e de deferência irresponsáveis a beirar um utilitarismo, mas, ao contrário, estava claro o dever de não ignorar a necessidade de precaução e prevenção diante da certeza ou probabilidade de resultados trágicos, com respeito a quem, tecnicamente, indicava o necessário para se ultrapassar essa realidade. Como bem afirmou Vanice Valle, não é sequer a crise pandêmica que exige a deferência do jurista, é a melhor qualidade do outro ator (o cientista, o gestor público, o administrador, o profissional de saúde) para fazer análise do risco e dizer: precisamos desses bens. Não pode o Direito inviabilizar aquilo que é a finalidade da sua existência: servir à vida, com a maior segurança e prudência possíveis, mediante a estruturação patrimonial indispensável na espécie.

Como esclareceu a professora carioca, seria inviável trabalhar, nessas condições, com a “matriz da normalidade jurídica”. Considerando o que a professora Flávia Santiago Lima colocou como sendo “decisão em bloco temporal” e atentando para as especificidades da realidade, reconheceu-se que a ausência de um regime transitório significaria o Estado descumprir os direitos fundamentais. Não houve tempo para se fazer “projetos piloto” ou experimentar, ao longo de determinado tempo, outra solução, qualquer que fosse ela. Foi preciso editar Medidas Provisórias, em boa parte já convertidas em leis ou mesmo extrair do ordenamento originário uma solução que pudesse ser adotada nesse tempo emergencial (em que havia poucos dias para ampliação do sistema de saúde) e que viabilizasse as medidas necessárias, com a maior economia e segurança possíveis, ainda que muito reduzidas em relação àquilo que se busca em momentos de normalidade social e administrativa.

A lógica de uma pandemia desafia uma lógica jurídica que, sem admitir a destruição do ordenamento, viabilize as soluções indispensáveis, muito longe da legalidade estrita do século XIX e bem distante de uma manipulação perversa que enseje desvio de dinheiro público, o que infelizmente já se constatou. Apesar dos claros riscos, a manifestação segura “não pode porque não há regra específica permitindo e os Tribunais já decidiram em sentido contrário” não era juridicamente admissível quando já se estava diante do provável sacrifício de milhares vidas de idosos, de doentes com comorbidades e de um sem número de cidadãos saudáveis até o contágio pelo coronavírus, como também comprovamos nos últimos meses.

O compromisso de atender novas demandas de forma urgente requer que se tenha uma confiança mínima na Administração Pública sob cujos ombros se coloca um desafio descomunal, inesperado e irrenunciável. À obviedade, sob as lentes estritas do julgamento positivista ou de uma condenação posterior (daqui a vários anos ou em poucos meses), é fácil antever posições segundo as quais nunca terá sido feito o suficiente, e muito menos da forma segura e melhor. A despeito de tais riscos, o que cabe, em momentos como os iniciais de uma pandemia, é apenas vislumbrar a saída juridicamente possível mais factível e que proteja o núcleo dos direitos fundamentais protegidos constitucionalmente. Não adianta evitar que se contrate sob o regime ordinário da Lei 8.666, se o resultado termina sendo fatalmente a morte de outras milhares de pessoas, além das mais de cem mil já falecidas. Entre a economicidade e a regularidade fiscal de um lado, aliada a risco de inadimplemento, e a saúde e vida de milhares de cidadãos do outro, numa situação de pandemia, não há qualquer dúvida quanto ao dever que incumbe a qualquer agente público: proteger saúde e vida, com o menor sacrifício possível da economicidade e regularidade fiscal. A ineficiência dos velhos modelos jurídicos nesse contexto é clara. Em poucas situações o mundo se viu no “olho do furacão” em todas as searas de atuação do Estado, inclusive aquela regida pela Ciência do Direito. Coube-nos buscar os fundamentos constitucionais sólidos, numa interpretação respeitosa às especificidades da realidade, para identificar o “modus operandi” que observasse o mínimo do regime jurídico administrativo, com o cumprimento das finalidades públicas básicas.

Para tanto, foi preciso retomar a ideia de que vivenciamos o chamado “Direito Administrativo das crises” a exigir discussões sobre “teoria das circunstâncias excepcionais e outras, de modo a evitar piores vícios dos que os problemas enfrentados, bem como a intolerável inércia pública.

 

2. O Direito Administrativo das Crises. Teoria das Circunstâncias Excepcionais. “Direito Administrativo Excepcional”. “Direito Administrativo Extraordinário”.

No direito público, as ideias de juridicidade e de Estado Democrático de Direito prestam-se a excluir o arbítrio dos comportamentos estatais. Compreendido o ordenamento em sua integralidade, almeja-se, mediante atividade hermenêutica que reconstrói o sentido das normas diante de cada realidade, a ausência de lacunas, de modo a evitar o autoritarismo e garantir segurança jurídica, além da realização dos objetivos sociais.

Reconhece-se que as normas que integram o regime administrativo são concebidas, em regra, a partir de uma situação de normalidade pública e social. Destinam-se a essas realidades em que não há turbulências excessivas, nem mesmo situações de crise e muito menos tragédias pandêmicas. É certo, no entanto, que os países, ao longo da história, passam por emergências de natureza diversa, sejam de origem política, econômica ou até mesmo em razão de guerras. Nos últimos meses, de modo sequencial, países de todo o mundo tem enfrentado os problemas causados pelo contágio do coronavírus, levando ao colapso sistemas de saúde de países como Itália, Espanha e França, sendo certo que na Europa e também nos EUA, a COVID-19 colocou a cada Estado demandas impossíveis de serem satisfeitas pelas regras específicas editadas para o cotidiano de normalidade social. Discute-se, então, qual o Direito a ser aplicado em tais circunstâncias. Qual o conjunto de normas que se aplica às relações jurídicas na hipótese de uma crise tão extensa e que causa significativa anormalidade empírica em todo o mundo?

Ao se discutir essa questão em outros momentos históricos, afirmou-se, inicialmente, que a legalidade concebida para períodos normais não deve prevalecer em momentos graves de crise, principalmente se há risco quanto à manutenção da própria ordem jurídica e do equilíbrio social. Uma realidade excepcional, que implicasse graves riscos para a sociedade, não poderia, pois, submeter-se à normação instituída para o cotidiano habitual das relações jurídicas. Diante do que se convencionou chamar “Estado de Crise”, “Direito Administrativo Excepcional”, “Direito Administrativo Extraordinário” “Direito Administrativo da Crise”, surgiu a chamada “Teoria das Circunstâncias Excepcionais”.

No direito francês, há quem entenda a teoria das circunstâncias excepcionais como uma exceção ao princípio da legalidade. Outros falam, ainda, em correção do princípio da legalidade.[1] Não há dúvida quanto à sua origem a partir da jurisprudência do Conselho de Estado francês, durante a primeira guerra mundial, entre 1914 e 1918. O contencioso administrativo entendeu por bem liberar as autoridades públicas da obrigação de cumprir normas que habitualmente vinculariam o exercício das suas competências, em virtude das circunstâncias peculiares à guerra. Assim, reconheceu a agentes de polícia poderes cujo exercício não admitiria em tempos de paz. No arrêt Heyriès, invocou as circunstâncias excepcionais da guerra para autorizar o governo suspender, por decreto, determinações legais (lei de 22.04.1910), o que seria antijurídico em circunstâncias normais.[2] Durante a guerra de 1939, a jurisprudência do Conselho de Estado teve nova oportunidade para fazer incidir a teoria dos poderes de guerra, em especial para declarar legítimas medidas admi­nistrativas exorbitantes editadas por autoridades locais (ex: requisições, taxações, interdições, suspensões de funcionários sem observância da forma e dos pressupostos legais). Fora do período de guerra, também admitiu a existência de circunstâncias excepcionais capazes de liberar a Administração de executar sentenças, tendo em vista risco de desordens políticas e sociais graves. Foi o entendimento que prevaleceu quando do julgamento da recusa, pela Administração, de expulsar tribos indígenas instaladas na Tunísia, a despeito de haver decisão judicial nesse sentido. Afirmou-se que a execução da decisão judicial tinha como risco provocar uma revolta no sul tunisiano, circunstância excepcional autorizadora da negativa administrativa em promover a expulsão.[3]

Em situações anômalas, portanto, foi suspensa a obrigatoridade de cumprir regras legais que normalmente vinculavam os agentes públicos, ampliando-se suas competências administrativas. Entendeu-se que, diante de situações extraordinárias e urgentes, eram necessárias respostas extraordinárias do Poder Público, nem sempre conformes a “legalidade normal”, e não seria cabível falar em ilicitude na espécie.

A partir de tais ponderações, a doutrina francesa enumerou os requisitos sem os quais não é possível falar em teoria das circunstâncias excepcionais: a) é preciso que haja uma situação fática anormal, exorbitante da realidade administrativa cotidiana; em outras palavras, é necessário que se esteja diante de uma situação realmente excepcional; b) em face das circunstâncias excepcionais, é mister que a Administração não possa agir conforme as regras legais que normalmente incidiriam no caso; em outras palavras, é forçoso que esteja caracterizada a necessidade absoluta de subtrair o comportamento público da “legalidade comum”; c) é indispensável caracterizar que a incidência da “legalidade comum” à situação extraordinária coloca em risco um interesse público de fato relevante; ou seja, deve-se estar diante de um significativo risco social; d) por fim, a medida excepcional tomada pela Administração deve ser uma resposta adequada para a proteção do interesse público que justifica a subtração à regra legal comum; em outras palavras, exige-se vínculo de adequação entre a situação empírica anômala e a providência administrativa excepcional.

Presentes estas condições simultaneamente, entendeu-se lícito ao Conselho de Estado suspender a “legalidade normal” vinculante da Administração e dos terceiros, com a remoção, se necessário, de certas obrigações e obstáculos impostos pela lei. Nesse contexto, incabível que o juiz ou qualquer outro controlador considere irregular o ato administrativo contrário à regra legal comum, ausente a viabilidade de responsabilização pública.

Como consequências dessa teoria, foram indicados os seguintes efeitos possíveis: a) uma autoridade pode exercer competência que não lhe foi outorgada por nenhuma regra escrita e, ainda, desrespeitar regras de forma ou de fundo em vigor, sem ilegalidade; b) uma autoridade administrativa, mesmo sem autorização legal, pode transferir competência que lhe foi atribuída por lei, sem qualquer irregularidade; c) uma autoridade administrativa pode tomar as medidas que sejam necessárias para o enfrentamento das circunstâncias excepcionais como, p. ex., a suspensão do cumprimento de uma lei.[4] Segundo René Chapus, satisfeitas as exigências para a incidência da teoria das circunstâncias excepcionais, as autoridades administrativas encontrar-se-ão investidas do poder de tomar medidas impostas pelas circunstâncias, as quais poderão justificar inobservância não somente das regras de procedimento e forma, mas também da repartição de competência entre as autoridades administrativas, assim como ignorância das regras de fundo.[5]

À luz de tais consequências, a doutrina francesa adverte que não é o conjunto da legalidade que é automaticamente suspenso, mas apenas a competência que o Conselho de Estado declara ampliada. E isto apenas ocorre pelo fato de o legislador não ter previsto, de modo expresso, para o período de crise, a extensão dos poderes da Administração. Surge, então, a teoria das circunstâncias excepcionais para reparar a lacuna jurídica existente. A despeito da sua incidência, a atividade administrativa continua submetida ao controle judicial, sendo possível a interposição de recursos ao juiz administrativo que examinará se ocorreu, ou não, excesso aos limites da legalidade ampliada.[6]

Há quem entenda que a teoria das circunstâncias excepcionais revive, na verdade, uma concepção mais antiga e mais geral: a chamada teoria da necessidade.[7] O “estado de necessidade administrativo” serviria para fundamentar quaisquer medidas extraordinárias praticadas com o objetivo de romper situações de crise e proteger a segurança social. Doutrinadores esclarecem que sobretudo a literatura italiana identifica a “necessidade” como fonte autônoma de direito, que sequer necessita de consagração em normas formais da Constituição.[8] Também assim já se entendeu quanto a construções acadêmicas que se referem ao “Direito Administrativo da crise”, “Direito Administrativo extraordinário” ou “Direito administrativo especial”.

É manifesto o perigo inerente a teorias dessa natureza, sendo irrelevante a nomenclatura de que se revestem em cada país. Viabilizam que agentes administrativos suspendam exigências legais, sem fundamento normativo que lhes sirva de amparo. Autorizam ofensa a liberdades e garantias individuais, o que em período normal seria vício grave caracterizador de ilegalidade insanável e responsabilização imperiosa em diversas searas (penal, civil e administrativa). Vislumbra-se, em seus termos, espaço para medidas arbitrárias, típicas de Estados totalitários (do que desde o início já se acusou o Estado Chinês com as medidas de fiscalização adotadas para controle da pandemia), incompatíveis com o modelo de Estado Democrático de Direito perseguido em países como o Brasil.

Não se ignora a necessidade de, em situações de crise (guerra, pandemias desastres ambientais de grandes proporções e outras situações de calamidade pública calamidade pública), afastar normas que, embora sejam normalmente adequadas para regulação dos vínculos administrativos, comprometeriam o interesse público colocado em risco naquelas específicas circunstâncias extraordinárias.[9] Também se reconhece a importância de formatar vínculos não habituais que ensejem as providências necessárias diante da situação de emergência, com normatização administrativa adequada à realidade. Reconhecer isso não equivale, contudo, a autorizar que o exercício de competências públicas fique à margem da juridicidade. É preciso definir qual o modo constitucional de se fazer frente aos períodos de crise grave enfrentados pelos diversos Estados. A resposta certamente não implica recusar força normativa à Constituição, nem mesmo usurpar competência privativa do legislador. Afinal, a emergência grave, presente em dada realidade, não pode levar, por si só, à gênese de um novo Poder do Estado, com funções reconhecidas sem quaisquer limites prévios dispostos no ordenamento.

Recusa-se à teoria das circunstâncias excepcionais ou ao estado de necessidade administrativo ou ao direito administrativo da crise a função de válvula de escape por meio de que se reconheceria ao agente público competências sequer consideradas pelo direito vigente. Como aduz Adolfo Merkl, “Trata-se, no fundo, de algo inconcebível, porque uma violação do direito nunca será juridicamente possível, nem pode ser consagrada pela ciência jurídica (…).”[10]

O mínimo que se espera de um Estado Democrático de Direito é que no seu ordenamento estejam estabelecidas quais normas, mesmo de significado aberto, serão aplicáveis em tempo de crise. Como assevera Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o Estado de Direito procura fixar as normas destinadas a ensejar o restabelecimento da ordem, da normalidade presumida e projetada, quando isso não puder ser feito pelos meios ordinários. Afinal, como escreveu Maquiavel, “Uma república não será perfeita (…) se sua legislação não tiver previsto todos os acidentes que podem ocorrer com os respectivos remédios”.[11]

Sendo assim, em princípio espera-se que a ordem jurídica consagre os poderes extraordinários que serão reconhecidos aos agentes públicos, na exata medida em que se mostrar necessário para enfrentar momentos extraordinários de crise. Em relação aos atos administrativos contrários às regras legais comuns, a exclusão da sua ilicitude depende de previsão normativa nesse sentido, inserida em específica figura jurídica com base constitucional. A ausência de normas de menor densidade normativa, essenciais na operacionalização de um sistema jurídico aberto, necessário na construção do Estado de Direito em realidades como a da pandemia por coronavírus, requer observância dos princípios constitucionais e a elaboração de vínculos dentro dos limites das competências previstas no ordenamento, de modo a equilibrar o atendimento das demandas urgentes com um mínimo de juridicidade.

 

3. O extraordinário no próprio ordenamento jurídico

Em situações críticas como as que enfrentamos com provável perda de centenas ou milhares de vidas humanas, é preciso buscar no próprio ordenamento os instrumentos extraordinários adequados à proteção das necessidades sociais e à obtenção daquilo que seja necessário à proteção da saúde da população. Assim procedendo, não se estará tratando de um mero “estado de necessidade administrativo”, mas de um verdadeiro “direito de necessidade administrativo”, porquanto não apenas decorrente da realidade, mas também embasado na ordem jurídica de regência, embora extraordinariamente.

Com habitual lucidez, Canotilho aduz que esse direito de necessidade reconduz-se, fundamentalmente, ao seguinte: previsão e delimitação normativo-constitucional de instituições e medidas necessárias para a defesa da ordem constitucional em caso de situação de anormalidade que, não podendo ser eliminada ou combatida pelos meios normais previstos na Constituição, exigem recurso a meios excepcionais. “Trata-se, por conseguinte, de submeter as situações de crise e de emergência (guerra, tumultos, calamidades públicas) à própria Constituição, ‘constitucionalizando’ o recurso a meios excepcionais, necessários, adequados e proporcionais, para se obter o ‘restabelecimento da normalida­de constitucional’.” Explica o constitucionalista português que o que se busca é a consagração de um “direito de necessidade constitucional” e não de um simples “estado de necessidade desculpante”. Não se trata de atribuir à disciplina extraordinária uma “causa de justificação” eventualmente excludente de culpa por fatos ou medidas praticadas (o que pressupõe sua ilicitude constitucional). Trata-se de uma “causa justificativa” que exclui a ideia de ilicitude dos fatos e medidas (o que implica reconhecer o direito e o dever das autoridades competentes recorrerem aos meios excepcionais necessários a afastar a crise que ameaçam a ordem constitucional democrática).[12]

Isso significa afastar a possibilidade de se falar em um estado de necessidade “supra ou extra constitucional”, preservando íntegra a juridicidade vinculante de todos os comportamentos públicos. Cria-se um direito de necessidade administrativo, convertido em um direito de exceção capaz de substituir a legalidade normal, se presentes as condições pré-determinadas pelo ordenamento e com integral respeito a pressupostos constitucionais inafastáveis como os princípios vinculantes da Administração Pública.

São claras as dificuldades de se pormenorizar institutos que, por essência, destinam-se a tratar de momentos imprevistos e extraordinários da vida social. Malgrado tais dificuldades, é indispensável que referida disciplina normativa integre a ordem jurídica. Como leciona Canotilho: “O direito de necessidade constitucional não é um direito fora da Constituição, mas um direito normativo-constitucionalmente conformado. O regime das ‘situações de exceção’ não significa ‘suspensão da Constituição’ ou ‘exclusão da Constituição’ (exceção de Constituição), mas sim um ‘regime extraordinário’ incorporado na Constituição e válido para situações de anormalidade constitucional.”[13]

Superadas as demandas urgentes e extraordinárias do momento de crise decorrente da tragédia colocada à gestão do Estado e sendo possível o retorno ao cotidiano ordinário da Administração, incidirá a “legalidade normal”. Enquanto perdurar a emergência inerente ao momento de crise, situação extraordinária a ser enfrentada pelo Poder Público, cabe-lhe valer dos institutos e medidas excepcionais previstos no ordenamento em vigor, bem como construir dentro das exigências constitucionais e distribuição de competências do ordenamento vínculos e providências capazes de atender as peculiaridades de situações de crise. Em nenhuma das hipóteses é legítimo falar em exceção ao princípio da juridicidade. Em todas elas, tem-se um claro desafio para os envolvidos. Mais um. E numa pandemia, necessariamente não é o último.

Cabe sublinhar as lições de Daniel Hachen, no painel sobre Intervenção realizado no Congresso Brasileiro de Direito Administrativo em 2018, ao observar que é preciso não confundir “Estado de Exceção” com determinadas situações extraordinárias, cabíveis e compatíveis em um Estado de Direito. Seguindo as lúcidas observações do professor paranaense e aplicando-as à situação atual, é certo que não se está num Estado de “não-Direito”, mas num contexto em que se requer um “direito constitucional ou direito administrativo das crises”, disciplina que regula juridicamente o Estado em períodos de crises como a presente calamidade pública de saúde. Aqui, o objetivo é conciliar o regime democrático e jurídico com a situação de crise, “com a previsão do menor sacrifício dos direitos e garantias fundamentais”. Daí ser necessário criar instrumentos que respeitem esse limite, e que garantam o equilíbrio entre atingimento da finalidade pública e o mínimo de regularidade administrativa no comportamento do Estado. Não se está numa zona de indeterminação entre o jurídico e o político (como tratam Carl Schmitt e Giorgio Agamben), muito menos em oposição ao Estado de Direito. Ao contrário, busca-se dentro dos postulados basilares do ordenamento vigente as balizas principiológicas que conduzam à resposta juridicamente adequada na realidade em questão. Não há suspensão da ordem jurídica. Ao contrário, operacionaliza-se, dentro da ordem jurídica, uma disciplina adequada a solucionar os problemas da emergência pública, com regulação jurídica suficiente e capaz de justificar as providências excepcionais indispensáveis à proteção do núcleo dos direitos fundamentais em questão.

Por conseguinte, foi preciso buscar no próprio sistema jurídico os parâmetros que, numa situação excepcional e absolutamente inédita em todo mundo, incidem e normatizam a atividade administrativa do gestor encarregado das contratações necessárias ao enfrentamento da pandemia.

 

4. Considerações finais ou “cenas dos próximos capítulos”

Entendida a complexidade da realidade enfrentada no ano de 2020, inclusive pela Ciência Jurídica, é indispensável analisar diversos regramentos legais que, no âmbito do Direito Administrativo, trouxeram normas que a doutrina qualificou como “regime jurídico extraordinário da pandemia”. Além da análise de Medidas Provisórias, leis aprovadas em regime de urgência no Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, é preciso enfrentar a repercussão do poder regulamentar exercido pelos Chefes do Executivo mediante a edição de Decretos e as inúmeras normas editadas por órgãos e entidades administrativas no exercício do poder regulatório.

Diferentes temas como pagamento antecipado, suspensão de prazos prescricionais e decadenciais durante a pandemia, especificidades das contratações administrativas durante o período de calamidade serão tratados nos próximos artigos, com exame dos diplomas editados para enfrentamento das excepcionais demandas recentes.

[1] LAUBADÉRE, André et al. Droit administratif. 15ª ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1995, p. 91.

[2] VEDEL, Georges ; DELVOLVÉ, Pierre. Droit administratif: 12ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. t. 1, p. 504.

[3] LAUBADÉRE, André et al. Droit administratif. op. cit., p. 92.

[4] MOREAU, Jacques. Droit public: théorie générale de l’État et droit constitucionnel droit administratif. t. 1. 3ª ed. Paris: Economica, 1995, p. 294-296; VEDEL, Georges ; DEVOLVÉ, Pierre. Droit administratif: 12ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. t. 1, p. 505.

[5] CHAPUS, René. Droit administratif général. 10ª ed. Paris: Montchrestien, 1996, p. 994.

[6] LAUBADÉRE, André et al. Droit administratif. op.cit., p. 93/95. VEDEL, Georges ; DELVOLVÉ, Pierre. Droit administratif, op. cit., t. 1., p. 507.

[7] MOREAU, Jacques. Droit public: théorie générale de l’État et droit constitucionnel droit administratif. t. 1. op. cit., p. 294.

[8] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1996, p. 1147.

[9] Como bem assevera Garcia Pelayo, “o legislador que em tempos de distúrbios e transtornos aspira governar com as leis comuns é um imbecil, o que em tempos de distúrbios e transtornos aspira governar sem lei é um temerário.” (In: COMADIRA, Julio Rodolfo. Derecho administrativo: acto administrativo, procedimento administrativo, otros estudios. 2ª ed. Buenos Aires: Lexis Nexis, Abeledo-Perrot, 2003, p. 229.)

[10] MERKL, Adolfo. Teoría general del derecho administrativo. Granada: editorial Comares, 2004, p.214.

[11] In: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.110.

[12] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, op. cit., p.1145-1146.Também Adolfo Merkl diz que “A teoria dominante tem razão enquanto se nega a incluir na administração manifestações não condicionadas juridicamente e que, por esta razão, são impropriamente qualificadas de direito necessário.” (MERKL, Adolfo. Teoria general del derecho administrativo, op. cit., p.70)

[13] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional.  op. cit., p.1154;1146.

 

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