Constituição: Carta pelos seus Trinta Anos

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Bem pensei que nada teria a dizer no seu aniversário de 30 anos. A morte ronda e o seu odor entorpece, deixando-nos assustados e um tanto imóveis. Diante das alternativas, a garganta fecha. O brio impede o rosto molhado. Mas, num instante, recuso o enterro antes do funeral, bem antes do fim. E olho para todas as promessas, para o pedaço vivido, para os erros e acertos, e esboço um sorriso. Então, coragem ressurgida, abro a tela e dedico:

Você nasceu de um momento de refundação. Uma tentativa de abandonar a força do arbítrio institucionalizada e, principalmente, de superar vícios antigos e arraigados que, longe de serem afastados, estiveram presentes desde sua concepção, no seu nascimento, e durante toda a sua vida. Não se é resultado impunemente de uma combinação do centro que, longe de impedir retrocessos, buscou evitar avanços. Forças que seguiram todo o tempo tutelando seus passos, desenhando-lhe novos contornos e, recentemente, planejando, em público, a sua morte.

Confesso que, apesar de tanto barulho em tom de obviedade final, não entendo porquê. Malgrado tantos problemas, em cada parte sua vejo o comprometimento com a evolução. Uma potência indiscutível que, na verdade, sempre careceu foi de instituições capazes de a tornar real. Preenchidas por interesses tão diversos, loteados sem qualquer vínculo social, as diversas instituições frustraram boa parte do que poderíamos ter de real aperfeiçoamento geral. E antes que bons resultados conseguissem chegar a todos, cá estamos a ignorar o que de positivo tem.

Parabéns por tentar impedir que o quadro de pessoal do Estado virasse um aparelhamento sem limites de governos transitórios. Exigir concurso público, como regra, para as atribuições técnicas estatais pode não ser lá perfeito, mas é um mecanismo de tentar um mínimo de imparcialidade, moralidade e avaliação de conhecimento necessário ao exercício das funções públicas. Sabemos que um sem número de vezes desvirtuaram os cargos comissionados (artigo 37, V), as contratações temporárias (artigo 37, IX) e até mesmo contratos administrativos firmados mediante modalidades licitatórias ou contratações diretas (artigo 37, XXI) para não cumprir a obrigatoriedade do inciso II do seu artigo 37. Isso sem mencionar os pseudos contratos de estágio e “trabalho voluntário”, os provimentos derivados com outros nomes, além do uso indevido do cooperativismo e de mecanismos como “bolsa trabalho”. Não liga não. Há muita gente perseguindo obsessivamente o cumprimento da exigência de concurso público, com convicção que, “se não é o melhor meio de seleção, outro superior ainda não temos”.

Desde o início você tentou limitar o recebimento, por agentes públicos, de valores pelo trabalho prestado. Foram quase 30 (trinta) anos de tentativas até que, ao menos formalmente e no Tribunal Supremo do país, tivéssemos uma regra que funcionasse como teto remuneratório. Não vamos desanimar diante das tais “parcelas indenizatórias”, a maioria sem qualquer natureza ressarcitória, mas muito bem tolerada pelos diversos órgãos, inclusive os de controle externos das ilicitudes estatais. Agora a briga se desloca do que “se diz que você disse” para o que “acontece na realidade diante do que você disse”. Quem sabe em mais 30 anos chegaremos lá (na concretização da determinação originária do artigo 37, XI da CR) em relação às carreiras que sobrarem ao Estado?

E especificamente quanto “às carreiras que sobrarem ao Estado” quero parabenizar sua resiliência. A opção por um regime só, que se entendeu quase unanimemente estatutário, não deve ter sido fácil. Passamos pela supressão da Emenda Constitucional 19/98, com inconstitucionalidade formal reconhecida apenas 10 anos depois, e até hoje escutamos sólidas críticas fundadas na importância do regime contratual dentro da Administração Pública, com repercussão no regime previdenciário. Pois cá estou eu a defender o regime estatutário como a garantia indispensável à sociedade que precisa servidores com proteções mínimas como a estabilidade, a servir de anteparo para pressões indevidas e massacres institucionais de órgãos corroídos pelo poder. Muito longe de “proteger vagabundo”, vejo no regime estatutário instrumentos jurídicos suficientes para combater a inércia funcional criminosa e, melhor, garantia em favor daqueles que trabalham e incomodam, não compactuam com acordos espúrios e, em regra, são esmigalhados por quem, ocupando o poder, têm a voz do relato oficial. Sem ocupar os intestinos do Estado e ser dali expulso, é bem improvável que se alcance a importância de um modelo estatutário, por mais que as garantias legais sejam débeis diante de um Congresso frágil e dividido entre bala, bíblias desvirtuadas e outros estranhos interesses.

Esses mesmos interesses que ocupam o Legislativo, afastando-o das missões por você fixadas, capturam espaços nos diversos órgãos dos demais Poderes, em alguns mais, em outros menos, mas sempre obcecados pelo discurso formal de “estou cumprindo a Constituição” enquanto lhe rasgam em pequenos pedaços, desprezados no lixo, para horror de muitos de nós. Assim acontece com as estruturas de planejamento, prestação e controle dos serviços públicos, tantas vezes saqueadas por empresas privadas (interessadas nos bilhões orçamentários destinados a essa tarefa) e por agentes públicos corruptos (que com elas partilham os valores desviados). Nessa teia de seu descumprimento, órgãos de polícia administrativa e de controle externos são igualmente capturados, às vezes por ineficiência, outras por excessos, numa disputa de poder muito longe do equilíbrio e harmonia por você determinados. Será preciso sempre se dar ao trabalho de desconstruir o articulado discurso que funciona biombo de “roupagem constitucional”, numa cansativa argumentação que exponha os absurdos da pós-verdade. Sim, ela chegou até nós. E chegou por dados manipulados (como sempre), ampliados por um ambiente tecnológico (que sequer existia quando você nasceu) e aceitos tantas vezes como realidade. E isso acontece sob a inacreditável justificativa de “respeito ao diferente” quando, de fato, se trata de invenções flagrantemente mentirosas, usadas para entreter ou calar muitos dos que querem ver as suas regras concretizadas.

Sei que é preciso cuidado até mesmo quando combatemos tais mentiras. Afinal, é necessário que cada um se dê ao trabalho do processo dialético, ainda mais num momento em que a liberdade de pensamento vem sendo discutida como direito fundamental, a despeito da clareza de sua pétrea cláusula a esse respeito. Desconfio que aceitar questionamentos de algo tão sagrado se dá principalmente pelo fato de aqueles que hoje estamos entre 20 e 50 anos não termos vivido a ditadura, nem a discutido, muito menos a superado no melhor sentido do termo. Não sentimos na pele o pavor da tortura, nem da falta de liberdade para pensar e falar; não fomos impedidos de trabalhar com espírito crítico, sob ameaças físicas e emocionais; não fomos comunicados do quanto isso equivale a uma longa e sofrida morte; não partilhamos das dores de quem viveu tanto horror. Ao contrário, ingênuos e imaturos pelo desconhecimento, fomos ampliando nossos espaços de reflexão quanto às engrenagens do sistema, vendo revelado o seu sujo nojento e nos horrorizando diante da máfia corrupta, antiga e generalizada, que se evidenciou. Sem atribuir relevância à liberdade que permitiu ver, esfregados em cada rosto brasileiro, os vícios do poder muitos agora imploram pela força bruta institucionalizada que nos reconduza à cegueira e ao silêncio. E, pior, num processo inconsciente de “mate meu direito de enxergar, pensar, ser livre e me assegure a tranquilidade burra da cegueira, mesmo que pela violência gratuita homicida de muitos e até própria; me engane, diga que sou livre sem ser e mais: diga que a força brutal apenas nos protege a todos; me impeça de questionar ou evoluir ou divergir ou mudar; me dê a paz irreal que sonho ganhar de presente de um Messias reencarnado”. Como se fosse possível “desver”… Como se a violência fosse a solução para uma realidade tão complexa como a nossa. Como se um Messias autoritário fosse capaz de nos tirar o ônus de chafurdar na lama desse país, sem um imenso e articulado esforço coletivo para dela nos livrarmos. Como se a ditadura tivesse funcionado em algum lugar do mundo com melhoria das condições de existência dos cidadãos. Logo, é indispensável ficarmos atentos para valorizar o trabalho do diálogo, do falar, do ouvir, do desconstruir, do refazer, do recomeçar e não desistir. Foi lindo ter isso em você com o nome de ampla defesa e contraditório, fundados no devido processo legal, e muitos seguiremos fiéis a essas abençoadas premissas. É projeto ainda exequível ver isso perseguido em ações públicas e privadas, na concretização do seu texto superior.

Alguns pontos por você consagrados foram objeto de clara evolução na realidade cotidiana, como é o caso da proteção ao consumidor. Outros, ignorados no mundo real, desafiam uma conduta mais séria do Estado, do mercado e dos cidadãos, como a proteção ao meio ambiente. Teve matéria que o Congresso até hoje não regulou, como o direito de greve, e que o Supremo Tribunal Federal assumiu para si o ônus de normatizar. Outras, depois de décadas, foram tratadas em diplomas legais, como o Estatuto das Empresas Estatais (Lei Federal nº 13.303/2016). Não se ignorem aquelas que não foram normatizadas como o desenvolvimento de programas de qualidade, treinamento e desenvolvimento com racionalização no serviço público (artigo 39, § 7º) e assim seguem, inócuas em nosso cotidiano. Há serviços em que sua ousadia prescritiva aliada à ineficiência de planejamento e de execução comprometeram o potencial de eficácia absoluta, como é o caso do direito à saúde. Convenhamos que prometer tudo (integralidade) a todos (universalidade), sem limitar na prática aos parâmetros viáveis de um sistema de saúde é coisa fantasiosa por demais, jamais pretendida por nenhum país do mundo… Também existem setores carentes de investimentos, de adequada estruturação regulatória, de melhoria nos índices de desempenho e outros sobre os quais sequer se discute com a amplitude social necessária; assim acontece com a cultura e com a proteção indígena, matérias alheias aos interesse à maioria da sociedade ainda vítima de falta de aspectos basilares como segurança pública (artigo 144) e educação (artigo 205). Na inclusão de deficientes e dos negros caminhamos com normatizações consagradoras de instrumentos que realização a igualdade em sua melhor compreensão, sendo exemplo disso a Lei Federal nº 12.990/2014. Quanto à transparência no Estado (artigo 37, “caput” e artigo 5º, XXXIII), cabe concretizar a Lei Federal nº 12.527/2011 que tardiamente buscou assegurar a publicidade na Administração Pública, sem que, até o presente momento, de fato tenha logrado êxito. Em se tratando das contratações administrativas (artigo 37, XXI), estamos em franco processo de discussão de um novo diploma, com projeto em trâmite no Congresso Nacional, na esperança de costurar a colcha de retalhos dos diplomas editados nos últimos 25 anos com a jurisprudência das Cortes de Contas e dos Tribunais, atendendo-se as expectativas de celeridade, probidade e de eficiência da Administração Pública e da sociedade. O trabalho nos mais diversos setores, percebe-se, é hercúleo, mas nem por isso é possível a ele renunciar.

Àqueles que acham que é preciso matá-la para, com uma outra, começarmos “do zero”, permito-me dizer que o raciocínio parece com o dos pais que jamais se deram ao trabalho de educar o filho e, vendo-o chegar na adolescência e se tornar um ser humano desprezível, mata o rebento para engravidar de outro, com melhores chances de “dar certo” daqui a um tempo. A metáfora é chocante, mas a sua pertinência é integral. Nós, que não nos demos verdadeiramente ao trabalho de concretizar as suas regras nos últimos 30 anos, que lhe recusamos condições de realização dos seus melhores potenciais por décadas, ousamos falar em homicídio, sem enfrentar os principais problemas da sua ineficiência. Não é muito difícil imaginar um resultado, no mínimo, tão ruim quanto o atual, embora provavelmente bem pior, numa perspectiva realista diante do atual Parlamento.

Desejo, assim, que se compreenda que você, Constituição, tal como qualquer ser humano, nunca está pronta e a cada dia se torna o que é. O fato de existir pela linguagem exige um processo de ressignificação contínua diante da realidade, com alguns limites mais claros a esse processo em face dos seus próprios termos e outros a desafiar a desconstrução (e reconstrução) cotidiana. Não se trata de um trabalho a encerrar, mas um caminho a percorrer, a cada etapa e sempre. Se enfim nos comprometermos como essa tarefa, com um mínimo de boa-fé e disposição para eficiência, há esperança. Falo de esperança e não só de vontade. Vontade é um desejo cuja satisfação depende de cada um.  É o que faz alguém trabalhar 20 (vinte) anos acreditando no Estado, mesmo sem incentivo coeso, ainda que com afastamento do seu cotidiano em diversos momentos. Mas ninguém consegue realizar Constituição ou projeto de aperfeiçoamento do Estado sozinho. Não importa o quanto tenha vontade. Para um projeto de efetiva e democrática concreção constitucional, dependemos, também, de muitos outros. E a esperança é exatamente o desejo cuja satisfação depende do outro. Ou seja, cada um de nós é a esperança do outro (e de um monte mais de gente) se quisermos comemorar mais um ano da sua existência.

Desejo-lhe, mais do que nunca, vida longa. E que essas lágrimas emocionadas que agora, enfim, encharcam o rosto se proliferem em esperança de um próximo aniversário mais feliz. Parabéns pelos seus 30 (trinta) primeiros anos.

 

 

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