Indulto segundo a maioria do STF: visão crítica

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1. Considerações preliminares

Não, esse artigo não é sobre ideologias políticas ocupando espaços nos diversos Poderes do Estado, inclusive o Judiciário, nem mesmo sobre a legitimidade, ou não, de julgamentos também de caráter político pelo Supremo Tribunal Federal, em face da própria natureza da Corte Suprema. No lugar de amplas considerações possíveis no campo da ciência política e do direito constitucional diante do julgamento ocorrido em 29 de novembro de 2018, o “corte epistemológico” adotado será específico da matéria de preferência: Direito Administrativo. Em bom português, independente de que partido seja beneficiado com uma ou outra medida, esse não é o foco; independente de admiração ou não pelo Judiciário, em especial quanto às posições do órgão de cúpula, a preocupação é: ao falar sobre a constitucionalidade do indulto de 2017, o que estamos firmando como base jurídica para a atuação do Estado, de agora em diante, no que tange aos atos políticos e administrativos. O que nos disse o Supremo Tribunal Federal, às vésperas de um novo período de gestão no âmbito federal e estadual?

2. O indulto de 2017 e o julgamento da ADI nº 5.874 no STF

Na última quarta-feira, acompanhei boa parte do início do julgamento da ADI nº 5.874 pelo Plenário do STF a propósito do indulto do Ministro Michel Temer, em fins de 2017, suspenso originariamente pela Ministra Cármen Lúcia e, a seguir, já em 2018, deferido parcialmente pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Notícias sobre o fim julgamento da quinta-feira obtive pelos telejornais e redes sociais. Um tanto incerta quanto às notícias veiculadas, tive a cautela de me certificar da correção das análises pela percuciente análise da professora Vanice Lírio que, em seu canal, é sempre fonte segura para juristas e leigos desafiados a compreender a complexa realidade do Direito Constitucional. De fato, o que havia lido e me parecera um tanto improvável em sua confusa teia cronológica, decisória e suspensiva do julgamento correspondia ao acontecido.

Diante das especificidades, permito-me, antes de mais nada, utilizar a descrição do próprio STF quanto às discussões levadas a efeito em 28 e 29 de novembro:

Plenário suspende julgamento sobre indulto natalino concedido pelo presidente Temer

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira (28) a análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5874, na qual a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, questiona o decreto de indulto editado pelo presidente da República, Michel Temer, em dezembro de 2017. Dispositivos questionados do Decreto 9.246/2017 estão suspensos desde o fim do ano passado, por liminar deferida pela então presidente do STF, ministra Cármen Lúcia. Posteriormente, o relator, ministro Barroso, permitiu a aplicação parcial do decreto nas hipóteses em que não se verifica desvirtuamento na concessão do benefício e mediante os critérios fixados em sua decisão. Na sessão de hoje, foram proferidos os votos do relator, no sentido da parcial procedência da ação, e do ministro Alexandre de Moraes, que abriu divergência. O julgamento terá sequência na sessão desta quinta-feira (29).

Em seu voto, o relator exclui do âmbito de incidência do indulto natalino os crimes de peculato, concussão, corrupção passiva, corrupção ativa, tráfico de influência, os praticados contra o sistema financeiro nacional, os previstos na Lei de Licitações, os crimes de lavagem de dinheiro, os previstos na Lei de Organizações Criminosas e a associação criminosa, nos termos originalmente propostos pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, e que não foram acolhidos pelo presidente da República ao editar o Decreto 9.246/2017. O ministro também conclui, segundo seu voto, que o indulto depende do cumprimento mínimo de um terço da pena e só se aplica aos casos em que a condenação não for superior a oito anos, nos termos do padrão de indulto que foi praticado na maior parte dos 30 anos de vigência da Constituição Federal.

O ministro Barroso votou, ainda, no sentido de declarar a inconstitucionalidade do dispositivo que estende o perdão à pena de multa, por clara ausência de finalidade constitucional, salvo em casos em que ficar demonstrada a extrema insuficiência de recursos do condenado. O ministro considerou inconstitucional a concessão de indulto a quem não foi condenado à pena de prisão (ou porque a pena foi convertida em restritiva de direitos ou porque houve a suspensão condicional do processo). Em seu voto, ele declara inconstitucional a concessão de indulto em caso de estar pendente recurso da acusação, circunstância em que ainda não houve a fixação da pena final.

Para o relator, o poder discricionário do presidente da República para editar indultos não é absoluto e deve respeitar parâmetros legais e constitucionais, observando-se os princípios da moralidade e proporcionalidade e afastando-se do desvio de finalidade, não podendo servir como incentivo à impunidade. O ministro lembrou que, nos indultos concedidos por presidentes anteriores, sempre se exigiu o cumprimento de um terço da pena para acesso ao benefício e sempre houve um teto máximo de pena para que o condenado fosse indultado, em geral de quatro a 12 anos. No decreto de Temer, foi exigido apenas um quinto de cumprimento da sanção e não há um teto para a condenação.

O ministro Luís Roberto Barroso ressaltou que o decreto ignorou parecer chancelado pela consultoria jurídica do Ministério da Justiça que vedava a concessão de indulto e comutação de pena para os crimes de corrupção e correlatos, bem como perdão da pena de multa, já que a sanção pecuniária costuma ser um componente essencial nas condenações por desvios de recursos. Afirmou que, ao ignorar tal parecer, o decreto beneficiou corruptos recém-condenados, liberando-os do pagamento de multa, padecendo de graves problemas de legitimidade.

“No momento em que as instituições e a sociedade brasileira travam uma batalha ingente contra a corrupção e crimes correlatos, esse decreto presidencial esvazia o esforço da sociedade e das instituições, no qual delegados, procuradores e juízes corajosos enfrentam diferentes modalidades de crime organizado, inclusive a de colarinho branco. O decreto cria um facilitário sem precedentes para os condenados a esses crimes, com direito a indulto, ao cumprimento de apenas um quinto da pena, sem limite máximo de condenação. E não são menores os problemas associados à legitimidade finalística do ato, como salta aos olhos no que diz respeito ao alívio totalmente desproporcional aos condenados por corrupção. Portanto, não estão sendo realizados os fins constitucionais de Justiça ou de segurança jurídica”, disse Barroso.

Ainda segundo ele, beneficiar corruptos, corruptores e peculatários que tenham cumprido apenas 20% da pena revela clara afronta ao mandamento constitucional e ao senso ético comum que deve prevalecer nas sociedades civilizadas nas quais impere o Estado de Direito. Barroso também afirmou que é preciso colocar um fim na “crença equivocada” de que a corrupção não é um crime grave por não envolver ameaça à vítima. “A corrupção é um crime violento, praticado por gente perigosa. É um equívoco supor que não seja assim. Corrupção mata: mata na fila do SUS, na falta de leitos, na falta de medicamentos, nas estradas que não têm manutenção adequada. A corrupção mata vidas que não são educadas adequadamente em razão da ausência de escolas, em razão de deficiências de estruturas e equipamentos. O fato de o corrupto não olhar a vítima nos olhos não o torna menos perigoso”, afirmou.

Divergência

O ministro Alexandre de Moraes abriu a divergência e votou no sentido da improcedência total da ADI. Em seu voto (íntegra aqui), o ministro fez questão de esclarecer, inicialmente, que o STF não está julgando o instituto do indulto coletivo, que, segundo ele, é uma realidade constitucional brasileira, e que por isso não pode ser afastado do cenário jurídico nacional. O que se está julgando é apenas se o decreto de indulto editado em 2017 observa os preceitos constitucionais.

Nesse ponto, o ministro salientou que a concessão de indulto, prevista no artigo 84 (inciso XII) da Constituição Federal, é um ato privativo do presidente da República e que não fere o princípio da separação de poderes. Pelo texto constitucional, lembrou o ministro, os Três Poderes são independentes e harmônicos entre si, existindo um sistema de freios e contrapesos, por meio do qual um poder de Estado controla e é controlado pelos outros poderes. Cada Poder tem sua função preponderante, mas há outras competências que estabelecem complexo mecanismo de freios e contrapesos, salientou.

Já é tradição no Brasil a edição de decretos genéricos de indulto, salientou o ministro. E, segundo ele, não é primeira vez que se permite o indulto mesmo antes do trânsito em julgado da condenação, como previsto no Decreto de 2017. O ministro citou, além de casos nos Estados Unidos e no Brasil, o caso do Decreto de Indulto de 1945, assinado pelo presidente José Linhares, que também previa essa possibilidade. Da mesma forma, o perdão abrangendo penas de multa também não é novidade, já tendo sido definido em decretos presidenciais no país.

Limites

O ministro Alexandre de Moraes explicou que existem limites à discricionariedade do chefe do Poder Executivo. O presidente não pode assinar ato de clemência em favor de extraditando, por exemplo, uma vez que o objeto do instituto alcança apenas delitos cometidos que estão sob a competência jurisdicional do Estado brasileiro. Da mesma forma, explicou, não se pode conceder indulto no caso de crimes hediondos, como tortura, terrorismo e tráfico de entorpecentes.

Segundo o ministro, se o presidente da República editou o decreto dentro das hipóteses legais e legítimas, mesmo que não se concorde com ele, não se pode adentrar ao mérito dessa concessão. O ato está vinculado aos ditames constitucionais, mas não pode o subjetivismo do chefe do Poder Executivo ser trocado pelo subjetivismo do Poder Judiciário, ressaltou.

Não compete ao STF, nem ao Poder Judiciário, reescrever o decreto de indulto ou fixar os requisitos que devem ser observados. Se o presidente da República tiver extrapolado no exercício de sua competência, explicou o ministro, o STF pode declarar inconstitucional. Mas se o chefe do Executivo atendeu às exigências constitucionais, mesmo que o Judiciário não concorde com as escolhas, não pode substituir as opções feitas por outras. Se o Supremo fixar requisitos para esse decreto, estará criando requisitos para todos os decretos subsequentes, estará legislando, e de forma permanente, concluiu o ministro.

O ministro disse, por fim, que não houve comprovação de desvio de finalidade no decreto, para favorecer determinadas pessoas. Se houvesse comprovação de desvio, salientou, existiria a possibilidade de análise por parte do Judiciário. Mas, em sua manifestação, a própria Procuradoria-Geral da República afastou a existência desse desvio.

Ainda se encontra no site do STF:

Pedido de vista suspende julgamento de ADI contra decreto presidencial sobre indulto natalino

Pedido de vista do ministro Luiz Fux suspendeu, nesta quinta-feira (29), o julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5874, na qual a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, questiona o Decreto 9.246/2017, editado pelo presidente da República, Michel Temer, que concede indulto natalino e comutação de penas a condenados. Alguns dispositivos do decreto estão suspensos desde o fim do ano passado por liminar deferida pela então presidente do STF, ministra Cármen Lúcia. Posteriormente, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, permitiu a aplicação parcial do decreto nas hipóteses em que não verificou desvirtuamento na concessão do benefício e mediante os critérios fixados em sua decisão.

Na sessão de ontem, foram proferidos os votos do relator, no sentido da parcial procedência da ação, e do ministro Alexandre de Moraes, que abriu a divergência e votou pela improcedência da ADI. Na sessão desta quinta-feira (29), o ministro Edson Fachin acompanhou o relator. Já a ministra Rosa Weber e os ministros Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Celso de Mello seguiram a divergência.

Também foi suspensa, por pedido de vista do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, a análise de questão de ordem apresentada pelo ministro Gilmar Mendes para que o Plenário se manifestasse a respeito da possibilidade de cassar a liminar concedida nos autos. Para Mendes, alcançada até o momento a quantidade de votos necessária para julgar improcedente a ação (seis votos), seria possível de imediato cassar a liminar. Quanto a este ponto, os ministros Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia votaram pela manutenção da liminar até o final do julgamento da ação. A favor da revogação da cautelar votaram os ministros Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e o decano da Corte, ministro Celso de Mello.

Ministro Edson Fachin

Primeiro a votar na sessão de hoje, o ministro Edson Fachin acompanhou o voto do relator no sentido da impossibilidade da concessão de indulto a condenados por crimes de peculato, concussão, corrupção passiva, corrupção ativa, tráfico de influência, os praticados contra o Sistema Financeiro Nacional, os previstos na Lei de Licitações, os crimes de lavagem de dinheiro, os previstos na lei de organizações criminosas e associação criminosa. Para Fachin, é possível abrandar as penalidades impostas às pessoas condenadas por esses crimes, mas o presidente da República deve se pautar por critérios rígidos e procedimentalmente complexos, de forma que sejam considerados compatíveis com o Estado Democrático de Direito, o que, segundo seu entendimento, não ocorreu no caso. O ministro também enfatizou a impossibilidade de o indulto alcançar condenações ainda não definitivas e as sanções pecuniárias (multas) impostas.

Ministra Rosa Weber

A ministra Rosa Weber acompanhou a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes e julgou constitucional o indulto concedido pelo presidente Temer. Afirmou que, embora tenha restrições pessoais à política formulada, em especial quanto ao seu alcance ao crime de corrupção, não vê como se chegar a um juízo de invalidade do Decreto 9.246/2017. “O que se está aqui a discutir é a própria validade constitucional do instituto do indulto, gostemos dele ou não. Trata-se de mecanismo de controle do próprio sistema de freios e contrapesos consagrado na Constituição Federal”, afirmou. Para a ministra, o presidente da República tem ampla liberdade decisória para extinguir a punibilidade de condenados ou diminuir-lhes os efeitos, devendo observar apenas os limites materiais impostos pela Constituição, ou seja, não pode ser concedido o perdão a condenados por crimes de tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. Caso exceda seu poder ao editar o decreto de indulto, poderá sofrer impeachment, segundo o voto da ministra Rosa Weber.

Ministro Ricardo Lewandowski

Ao também acompanhar a divergência, o ministro Ricardo Lewandowski salientou que a Constituição Federal diz expressamente, no artigo 84 (inciso XII), que compete privativamente ao presidente da República conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei. Essa oitiva prevista no dispositivo, segundo o ministro, não é vinculante, e o ato de concessão é totalmente discricionário do chefe do Poder Executivo. Por esse motivo é imune de controle jurisdicional, ao menos que haja no ato clara ofensa a regras constitucionais, o que, segundo ele, não ocorre no caso.

Ele afirmou ainda que o decreto presidencial de 2017 apresenta requisitos abstratos, não podendo afirmar que teve intenção de beneficiar determinadas pessoas ou classes, o que afasta a alegação de desvio de finalidade.

Ministro Marco Aurélio

O ministro Marco Aurélio se posicionou pela improcedência da ação e salientou que a concessão do indulto natalino é ato de política carcerária privativo e discricionário do presidente da República. Ele explicou que graça, anistia e indulto estão no âmbito do perdão e que a única restrição imposta pela Constituição Federal à sua concessão é relativa aos crimes de tortura, tráfico de drogas, terrorismo e aos classificados como hediondos.

O ministro entende que, por se tratar de ato discricionário, não é possível ao Judiciário editar as regras do decreto em substituição ao presidente da República. Ele observou que, por este motivo, caso o decreto deixe de ser editado em algum ano, o Judiciário não poderia, se ajuizada uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão, editar normas nesse sentido.

Ministro Gilmar Mendes

No mesmo sentido votou o ministro Gilmar Mendes. Em seu entendimento, o decreto é constitucional, pois não extrapola os limites estabelecidos pela Constituição Federal. O ministro afirmou que a concessão de indulto natalino é um instrumento de política criminal e carcerária adotada pelo Executivo, sobre o qual não compete ao Judiciário efetuar controle de constitucionalidade.

O ministro também não vê obstáculo à concessão do benefício quanto à multa pecuniária. Segundo ele, não há perda de receita da União, pois é possível executar valores desviados do erário por meio de cobrança em outras esferas judiciais.

Ministro Celso de Mello

Ao acompanhar a corrente divergente, o ministro Celso de Mello ressaltou que a prerrogativa constitucional de indultar se revela ato de poder discricionário privativo do presidente da República, e que não implica usurpação de um poder concedido ao Congresso Nacional. “O presidente valeu-se estritamente de uma competência que a própria Constituição lhe deu. Registrou-se, sim, ofensa à separação dos Poderes no momento em que essa Corte, substituindo por seus próprios critérios, reescreveu o decreto. O STF não dispõe de competência para formular requisitos objetivos ou estabelecer exclusões em relação ao objeto do indulto presidencial”, afirmou.

O decano destacou que, ao contrário do que defende a Procuradoria-Geral da República, o decreto de 2017 não é o mais generoso já editado. Da análise de decretos presidenciais editados desde 1999, observou, editaram-se indultos mais benéficos do que o de 2017. O ministro lembrou ainda que a prática do indulto presidencial traduz medida de atenuação das distorções gravíssimas do sistema penitenciário brasileiro, reconhecidas pelo Supremo no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347.

Diante do relato, alguns pontos precisam ser sublinhados: quando já havia se formado maioria em torno da divergência que proclamou a discricionariedade ampla do indulto como integrante do sistema de freios e contrapesos, com manifestação expressa sobre a impossibilidade de controle jurisdicional pelo STF no caso, o Ministro Luiz Fux pediu vista dos autos. Assim, o julgamento no sentido da constitucionalidade do ato político suspendeu-se, o que impediria que fosse afastado, naquele momento, o deferimento parcial da liminar do Ministro Luís Roberto Barroso por decisão de mérito da ADI. A fim de evitar esse resultado, o Ministro Gilmar Mendes pediu que, a despeito do requerimento de vista do Ministro Fux, o Plenário revogasse a liminar exarada pelo Ministro Barroso, o que terminou não acontecendo em razão do pedido de vista do Ministro Dias Toffoli especificamente quanto à liminar. O Presidente do STF embasou o pedido de vista na ausência de um dos Ministros naquele momento, na viabilidade abstrata dos resultados quanto ao referendo da liminar e “em nome da institucionalidade”.

Por hora, seis ministros já afirmaram, no mérito, que o Presidente da República tem ampla discricionariedade quanto ao deferimento de indulto, apenas com limites expressos em regras específicas da própria Constituição e dos diplomas infra-constitucionais, ausente a possibilidade de controle jurisdicional quanto a outras normas, inclusive princípios expressos como a moralidade e implícitos como a proporcionalidade. Em sentido contrário, votaram somente o Relator, Ministro Luís Roberto Barroso, e o Ministro Luís Fux. Ainda faltam votar, quanto ao mérito, os Ministros Luis Fux, Carmen Lúcia e Dias Toffoli.

No tocante ao referendo da liminar, somente cinco Ministros pronunciaram-se no sentido da sua revogação. A Ministra Rosa Weber, que no mérito afastara o controle jurisdicional do indulto, afirmou que, antes de concluído o julgamento, seguiria a colegialidade até então prevalecente e, portanto, não afastaria a cautelar nos termos em que deferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Assim, em sentido contrário à revogação da liminar da ADI, pronunciaram-se quatro Ministros. Foi nesse contexto (cinco votos favoráveis à revogação da liminar e quatro votos favoráveis à manutenção da liminar) que pediu vista o Ministro Presidente Dias Toffoli, o que impediu que fosse finalizado o julgamento também quanto ao requerimento pertinente ao afastamento da cautelar deferida parcialmente pelo Ministro Relator.

Logo, permanece em vigor a cautelar que exclui parcialmente os efeitos do indulto, não o estendendo aos condenados por corrupção e crimes do colarinho branco, nos moldes da cautelar deferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Isso, no entanto, somente até a conclusão do julgamento, se não forem alterados os entendimentos dos Ministros que já se pronunciaram, no mérito, no sentido da constitucionalidade do indulto de 2017. Mantidos os entendimentos dos seis ministros no sentido da validade do indulto deferido pelo Ministro Michel Temer no ano anterior, quando concluído o julgamento pelo Pleno do STF, não mais prevalecerá a liminar que adotou posição já meritoriamente vencida no Plenário. Embora não se saiba quando o julgamento será retomado, algumas considerações relevantes devem ser feitas.

3. Do perigo de reconhecer liberdade discricionariedade ampla ao ato político de indulto

Quanto ao mérito da decisão exarada pelo STF na ADI nº 5.874, inúmeras são as considerações doutrinárias possíveis, desde aspectos consequencialistas (quem será liberado depois de condenado por quais crimes) até teorias sobre política carcerária, sob a perspectiva do equilíbrio e harmonia entre os poderes. Este artigo, contudo, tratará especificamente sobre o tema da discricionariedade política reconhecida pela maioria dos Ministros ao indulto e o limite posto ao controle judicial na espécie. Isso porque é cabível preocupação doutrinária quanto à instabilidade jurisprudencial, inclusive na Corte Suprema, ao definir parâmetros decisórios nesse aspecto e, principalmente, quanto às perspectivas que se abrem para os futuros atos de governo, inclusive políticas públicas relevantes.

3.1. A necessidade de motivação dos atos políticos

Em mais de uma oportunidade já se afirmou a importância de se estabelecer limites claros, inclusive de natureza principiológica, para a atuação das autoridades públicas, mesmo porque, falar teoricamente de sistema jurídico, sem assegurar os instrumentos que garantam seu cumprimento, “é o caminho perfeito para manipulação aleatória, captura indevida privada ou governamental e verdadeiro entretenimento alienante da sociedade.” Afinal, a “a mera imposição formal e abstrata de normas cujo conteúdo potencialmente é capaz de promover uma atividade administrativa adequada, por si só, não é suficiente para assegurar que se alcance o resultado desejado.”)

Especificamente quanto à motivação, já se a explicitou como obrigatória , sendo a Teoria dos Motivos Determinantes, utilizada na década de 70, superada até mesmo por se tratar de incentivo ao silêncio da autoridade competente para sua prática. Afinal, nos termos dessa teoria, se a autoridade não indicar as condições fáticas e jurídicas das quais se utilizou, impedido estará o controle jurisdicional; ao contrário, se motivar sua decisão, estará jungida aos elementos indicados, que se submetem à apreciação judicial.

Também por essa razão ganhou espaço posição mais atenta aos princípios constitucionais como os da moralidade (artigo 37, caput, da CF) e do acesso ao Judiciário (artigo 5°, XXXV, da CF), que são concretizáveis apenas em face de motivação expressa dos comportamentos administrativos vinculados ou discricionários. Não se pode admitir que qualquer conduta da Administração, independentemente da sua natureza vinculada ou discricionária (política ou técnica), possa tornar-se realidade sem a indicação do seu suporte fático e jurídico, principalmente em se tratando de um Estado que se pretende Democrático de Direito.

Foi o professor mineiro Florivaldo Dutra de Araújo pioneiro em defender a  regra geral da obrigatoriedade de motivação: “A dispensa de motivação nos atos vinculados não deve ser cogitada, por duas razões principais: a necessidade de se conhecer a interpretação dada pelo administrador à lei, e a de tornar possível a verificação da correta incidência do ato na situação fática que o tenha motivado.

(… ) Quanto à motivação para os atos discricionários, sua dispensa é de tal inconveniência, que quase não há quem não ponha exceções a tal afirmação, reportando-se a algumas daquelas hipóteses em que a fundamentação se impõe pela natureza do ato.”[1]

De fato, é exatamente nos atos discricionários e, dentre estes, os praticados com discricionariedade política em que há maior espaço de ação para o administrador, que se mostram indispensáveis melhores instrumentos de controle, destacando-se a fundamentação como um dos mais eficientes mecanismos de aferir a legalidade administrativa. Quanto maior a discricionariedade outorgada ao governante e administrador, maior a necessidade de motivação da atuação estatal.

Ademais, na medida em que o contraditório e a ampla defesa encontram-se erigidos como garantias no artigo 5°, LV, da CR, inadmissível que a atuação administrativa surja desacompanhada das razões fáticas e jurídicas que a justificaram, sob pena de, ausente a motivação, afigurar-se impossível o exercício demo­crático das citadas garantias constitucionais. A motivação surge, ainda, como meio necessário à caracterização do devido processo legal, insculpido no artigo 5°, LIV, da Constituição. Um ato que não ostente as razões pelas quais foi praticado não atende a norma fundamental que consagrou o due process of law (não se limita às garantias formais, mas dele decorrem atualmente garantias substanciais, dentre as quais se destaca a motivação).  Embora a celeridade decorra do princípio da eficiência proclamado no artigo 37 da Lei Magna, resulta clara do texto constitucional a intenção de prestigiar o controle como premissa fundante do Estado Democrático de Direito. Como é fácil perceber, o controle somente é possível na hipótese de a autoridade evidenciar, mediante indicações claras, congruentes, exatas e suficientes, ter adotado o comportamento adequado em face das normas de regência.

O próprio STF já fixou ser necessária fundamentação específica até mesmo em relação a atos políticos como a quebra de sigilo por CPIs.[2] O STJ, por sua vez, entendeu que, mesmo diante da margem de liberdade de escolha da conveniência e oportunidade concedida à Administração, é necessária adequada motivação, explícita, clara e congruente, do ato discricionário que nega, limita ou afeta direitos ou interesses dos administrados. Insiste que não se supre este requisito pela simples in­vocação da cláusula do interesse público ou qualquer indicação de natureza genérica que não observa o requisito da motivação suficiente e adequada.[3] Reiteram-se tais considerações, em razão da sua importância na hipótese ora em discussão.

3.2. A discricionariedade política da função de governo e o controle judicial cabível

Também já se explicitou que, em se tratando de função de governo, as obrigações exercidas pelo agente, o tempo de exercício das suas funções e demais aspectos do regime jurídico têm assento constitucional. O Chefe do Executivo, representante da soberania popular por meio das eleições, e seus delegatários, devem realizar escolhas políticas que devem se adequar ao texto da CR, com sujeição ao controle político-social subsequente. Não há dúvida esfera de liberdade para fazer escolhas de natureza política é ampla, visto que cabe à pessoa física investida na função de governo em determinada área formatar a vontade do Estado mediante decisões fundamentais que cumpram a Constituição, representando e protegendo os interesses primários da sociedade. Nesse sentido, amplitude de discricionariedade política não se confunde com ausência limites, principalmente em se tratando da observância de normas da Constituição da República, sejam elas regras específicas, sejam elas princípios como a moralidade, eficiência, proporcionalidade e razoabilidade.

Igualmente já foram ponderados aspectos básicos sobre o controle judicial de atos políticos. Restou explicitado ter havido um tempo em que se falava em “função de governo” exercida por “agente político” com o objetivo de afastar o controle do Poder Judiciário. Isso porque a função de governo era definida como uma função pré-jurídica, ou seja, anterior à positivação do Direito. Sendo assim, não haveria que se falar em controle pelo Judiciário de limites jurídicos; a função de governo viria “antes” do Direito e estaria, portanto, livre das suas exigências, condicionamentos e formas de controle. Tal impedimento quanto ao controle judicial, que poderia atingir a própria designação do agente político encarregado da função de governo, excluindo, já no processo de investidura, qualquer atuação jurisdicional, também atingiria atos como indulto, praticados pelo governante máximo da República.

Entendia-se, assim, que os atos políticos, de condução dos negócios públicos e de diversas naturezas, estavam fora dos limites do controle judicial. O fato de o seu fundamento encontrar-se na Constituição, reconhecendo às autoridades o exame político das conveniências públicas, terminava excluindo os atos de governo da apreciação do Judiciário no lugar de os submeter ao controle pelos magistrados.

A evolução na compreensão das funções do Estado levou ao reconhecimento de que todas elas, inclusive a função de governo, submetem-se à Constituição, devendo-se observar a exigência de juridicidade, a qual exige o atendimento do ordenamento como um todo, aí incluídas regras específicas e normas principiológicas. Se o fundamento de validade dos atos de governo praticados por agentes políticos é o texto constitucional, ao Judiciário cabe assegurar o atendimento dos ditames da Constituição, no caso de qualquer violação.

Quanto à noção de juridicidade, é certo que o Estado, quando atua por quaisquer dos seus Poderes, deve conformidade não mais apenas à lei, mas ao Direito, compreendido este como um conjunto de normas dentre as quais se incluem os princípios expressos e implícitos da Constituição, princípios gerais de Direito, tratados ratificados pelo Congresso Nacional, bem como as regras veiculadas por leis, regulamentos editados por decretos dos Chefes do Executivo e por atos regulatórios da Administração (portarias, instruções, circulares, resoluções, avisos etc). Exclui-se a ideia reducionista de uma aplicação mecânica e técnica somente de leis em sentido formal ou só de regras específicas da Constituição e dos diplomas infra-constitucionais. Reconhece-se a importância do arcabouço normativo de toda a CR, inclusive dos princípios nela implícitos e expressos. Nessa perspectiva, a independência da cúpula de Executivo, no exercício da função de governo, não afasta submissão à Constituição. Portanto, as normas da CR vinculam a prática de atos que vão desde a investidura de Ministros de Estado em seus cargos à formulação e execução de políticas públicas subsequente, passando, à obviedade, por atos políticos como o indulto.

Consequentemente, a plasticidade política admitida aos atos de governo e o próprio reconhecimento desta categoria autônoma de agentes políticos deixou de atender o objetivo de tornar insindicáveis as decisões relativas à sua investidura e atuação cotidiana. Ser agente político e governar deixou de ser imunização quanto ao controle efetivo de juridicidade, sendo inadmissível falar em insindicabilidade dos atos de governo. Isso porque a inadequação ao texto constitucional não pode resvalar apenas no controle político-eleitoral, a ser exercido na hipótese de disputa de mandato seguinte. Impõe-se o controle jurisdicional cabível, a saber, do respeito aos limites constitucionais vinculantes do comportamento público, bem como o cumprimento de outras exigências do regime jurídico vigente. Tal conclusão decorre não só do artigo 5º, XXXV da CR, mas do próprio status adquirido pelas demais normas do texto constitucional, com força coercitiva positiva e negativa, diretamente na realidade pública.

O fato de a independência dos poderes estar consagrada no artigo 2° da Constituição não implica obstar o cumprimento da função primordial do Judiciário, nem exclui o dever dos órgãos dos demais Poderes cumprirem as normas constitucionais, quando do exercício de qualquer das funções do Estado. Afinal, a discricionariedade política que se reconhece ao agente político que exerce função de governo não se confunde com arbitrariedade governamental. Na medida em que critérios constitucionais vinculam a atividade de governo, o próprio princípio da juridicidade — condutor dos limites do controle judicial — deixa evidente a legitimidade da intervenção judicial, se presente omissão ou ação contrária ao ordenamento.

Em outras palavras: se há submissão constitucional, não há como afastar o controle pelo Judiciário previsto no artigo 5º, XXXV da CR. A circunstância de a nomeação de um agente político ou o deferimento de indulto ser função de governo não exclui exigências principiológicas como moralidade, impessoalidade e eficiência (artigo 37, “caput” da CR), como proporcionalidade e razoabilidade (princípios implícitos aos quais o STF reconhece status constitucional) nem impede o controle pelo Judiciário quanto à obediência da CR, principalmente em se tratando da Corte Suprema.

Como não se ignora a dificuldade de estabelecer os limites da discricionariedade política e do controle judicial cabível, advertiu-se que reconhecer a legitimidade da tutela jurisdicional das normas da Constituição sobre atos de governo é coisa diversa de extinguir a discricionariedade política reservada ao Governo. Embora seja cabível o controle judicial de constitucionalidade das ações de governo, não se admite que o Judiciário invada o cerne político das escolhas governamentais, aspecto reservado à autoridade estatal competente.

Admite-se, pois, o controle pelo Judiciário da moralidade, eficiência e proporcionalidade de um ato político como o ato de indulto ou a nomeação de um Ministro de Estado, por se tratar de aspecto vinculado da função de governo, com claro fundamento constitucional. A “filtragem constitucional” em face de princípios constitucionais não se exclui pelo simples fato de se tratar de função de governo, sendo claro o objetivo de impedir soluções ilegítimas à luz da CR. Após a incidência dos limites constitucionais, é comum que ainda remanesça discricionariedade à autoridade governante para fazer suas escolhas políticas. Assim, o mérito político, o núcleo da liberdade de governo, permanece na cúpula do Executivo e nas mãos dos agentes políticos como o Presidente da República, sendo impensável pretender transferir todas as escolhas ao Poder Judiciário.

O cuidado que se impõe, portanto, é o de afirmar a possibilidade do controle dos limites constitucionais que regem o ato político e, simultaneamente, respeitar os limites da discricionariedade política reservada àqueles que exercem a função de governo. Reitera-se que o Judiciário não pode tomar para si toda a atividade governamental, desde a nomeação de um Ministro de Estado, a formatação de uma política pública até a sua implementação, bem como a prática de atos de indulto, incluindo-se atos de natureza internacional e até mesmo relação entre órgãos de diversos Poderes. Fazer cair a regra da imunidade de controle dos atos políticos não é o mesmo de transferir para o Judiciário a integralidade da competência para a sua prática. Ou ainda: reconhecer a legitimidade da tutela jurisdicional das normas da Constituição sobre um ato de governo como o indulto é coisa diversa de extinguir a discricionariedade política reservada ao Governo e de recusar os próprios limites da competência constitucional.

O grande desafio é definir, em cada caso concreto, o que é mero controle de juridicidade relativo à observância de princípios constitucionais e o que ultrapassa esse limite, passando a significar substituição da escolha legítima da autoridade de governo por critério subjetivo dos magistrados, com base em seus próprios valores. A pergunta é: está-se diante de um adequado controle de legalidade (sob o prisma contemporâneo da juridicidade) ou o magistrado foi além do que permite o artigo 5º, XXXV da CR, suprimindo a discricionariedade política do Executivo e assumindo ele próprio o espaço do mérito governamental?

A resposta à indagação somente é possível em cada realidade e exige a exata compreensão das exigências principiológicas como a moralidade administrativa (artigo 37, “caput” da CR).

No caso do indulto, portanto, é preciso definir se há normas na CR capaz de justificar o controle judicial repressivo do deferimento nos termos em que realizado pelo Presidente Temer em 2017. Em outras palavras: Há na Constituição regras e/ou princípios que limitem o ato governamental do Presidente da República e que evidenciem ter Michel Temer extrapolado o âmbito da discricionariedade política outorgada pela CR, de modo a justificar que o STF decida contrariamente ao indulto?

Denota-se do voto do Ministro Relator, Luís Roberto Barroso, entendimento positivo, ou seja, no sentido de que a moralidade administrativa e a proporcionalidade teriam sido descumpridas com a elasticidade do indulto deferido pelo Presidente da República, reduzindo significativamente o mínimo de cumprimento da pena de forma a outorgar o benefício, bem como a ausência de restrição quanto a crimes do “colarinho branco”.

Não se vislumbra que os votos majoritários em sentido contrário tenham feito avaliação quando à intensidade do juízo de discricionariedade política, nem mesmo quanto à repercussão específica das normas de moralidade e proporcionalidade no caso. A posição divergente majoritariamente afirmou que a discricionariedade é ampla, somente fazendo incidir limites veiculados em regras expressas do próprio texto constitucional e dos diplomas infra-constitucionais. Resulta das manifestações que não se levou a efeito juízos específicos sobre quaisquer dos princípios invocados pelo Relator. Enquanto o Ministro Luís Roberto Barroso falou de uma coisa (limites do controle jurisdicional de atos políticos, inclusive em face de princípios constitucionais como proporcionalidade e moralidade), os demais fundamentaram seu entendimento em outra coisa (a ampla liberdade política do Presidente ao praticar o indulto). Nesse sentido, a maioria sequer chegou a tentar definir parâmetros de intensidade de controle possível quando se trata de princípios limitadores de atos políticos. Muito antes disso, afirmou-se que o Presidente tem liberdade discricionária e o Judiciário não tem nada que se pronunciar sobre a matéria. A mim parece, com tal posição, que retornamos para muito antes da década de 70, ignorando-se decisões do próprio STF nos últimos anos.

3.3. Algumas cautelas e considerações críticas sobre o controle jurisdicional de atos políticos como o indulto

É certo que decisões judiciais, ainda mais as exaradas pelo STF, não podem ultrapassar os parâmetros que cingem o seu espaço de atuação. Se ficar aquém do controle da juridicidade, compromete a submissão do Estado à legalidade tal como hoje entendida (bloco de juridicidade), ir além dos limites possíveis, coloca em risco o equilíbrio e a harmonia entre os poderes. Não se omitir e não exceder: este o desafio a ser enfrentado pelo Judiciário contemporaneamente. Atente-se para o remédio concebido para curar (o eficiente controle judicial da legalidade pública), quando administrado, não venha a matar o doente (por insuficiência da dose ou por excesso da mesma).

A doutrina tem pontuado o contexto de enorme incerteza normativa[4]: em alguns casos os tribunais mostram-se cautelosos em substituir por sua própria interpretação o conteúdo dos direitos definidos pelo processo político ou objeto de exercício de atividade governamental. Em outras circunstâncias, há acusações de covardia. Assim, de um lado, tem-se críticas de usurpação e, de outro, acusações de abdicação.

Autores que se aprofundaram no estudo da matéria vêm advertindo que não se terá uma única solução única e inexorável, capaz de solucionar o desafio. A intensidade do controle a ser aplicado a uma decisão concreta envolve uma série de considerações subjetivas e, mesmo, políticas, tanto dos tribunais em si como dos demais atores envolvidos na decisão. Na prática, a correção ou conveniência de uma específica alternativa dependerá das circunstâncias mais variadas. E mesmo quando os tribunais de fato aderem e obedecem os modelos deferenciais de controle judicial, limitando-se a submeter as decisões administrativas a um controle de razoabilidade, p. ex., a doutrina adverte que o exame da razoabilidade está longe de constituir um juízo objetivo; é frequentemente influenciado pela ideologia do magistrado ou por seus juízos pessoais sobre a correção da decisão administrativa.  Reconhece, ainda, a adaptação da intensidade do controle judicial da administração pública admite diferentes graus. Mesmo que se entendesse que, num caso específico, fosse devida a deferência judicial, não se considera isso o fim da questão. Há jurisdições que cogitam até mesmo de consagrar um espectro de infinitas intensidades possíveis, sem que estejam veiculadas em modelos fixos e precisos. “Em definitivo: não há uma forma ideal de adaptar o controle às circunstâncias do caso concreto, nem há um grau específico e ideal em que esta adaptação deva ser considerada. O como e o quanto da adaptação dependem de escolhas políticas.”[5]

Exsurge clara a complexidade da tarefa a ser exercida pelo Judiciário que, com a devida vênia, não se viu enfrentada em toda densidade pelo entendimento majoritário sustentado pelo Supremo Tribunal Federal. No lugar de enfrentar a necessidade de argumentação para evidenciar os limites do cumprimento, ou não, de exigências como moralidade e proporcionalidade pelo ato de indulto, diante do desafio de não usurpar a competência do Presidente da República, nem de o considerar livre de quaisquer limites principiológicos, a opção principal foi por invocar o sistema de pesos e contrapesos, bem como a discricionariedade política em abstrato, seguindo-se algumas considerações práticas sobre a situação do sistema carcerário brasileiro.

Frisa-se que quanto maior a complexidade da questão, maior a responsabilidade do governante encarregado da escolha pública relativa à medida a ser adotada e do magistrado convocado a exercer o controle Judicial. A nenhum deles é deferida a alternativa do excesso, nem mesmo da ausência ou insuficiência.

Recentemente, inúmeros estudos têm se realizado concluindo com o diagnóstico do “ativismo judicial”, ou seja, afirma-se o deslocamento progressivo para o Judiciário de decisões que, inicialmente não seriam da sua alçada. A mudança do papel do Judiciário, com uma posição proativa, revela-se por decisões do STF ao autorizar o direito de greve no serviço público; declarar a constitucionalidade da lei que dava passe livre para deficientes no transporte coletivo; fixar originariamente vedação do nepotismo dos três poderes; promover a demarcação contínua da área de 1,7 milhão de hectares da reserva indígena Raposa Serra do Sol; declarar a constitucionalidade da Lei de Ficha Limpa e da política de cotas étnico-raciais e sociais, dentre outros julgados. Nesse contexto, chega-se a falar em modalidades de ativismo judicial: a) a judicialização da política que consiste em sentenças judiciais que substituem os atores políticos (Legislativo e Executivo) nas tomadas de decisão que seriam, a priori, naturais e exclusivas desses atores; e b) a criação judicial do direito que ocorre quando o Judiciário, ao interpretar a norma, amplia seu sentido para abarcar situações que aparentemente não foram previstas pelo Parlamento.[6]

Ao tratar do fenômeno da judicialização dos atos políticos ou de politização do Judiciário, mestres de Direito Administrativo como a professora Maria Sylvia indicam a constitucionalização (Constituição rica em valores e em princípios)  e a centralidade da pessoa humana (dignidade humana no art. 1º da CR) como fundamento da mutação identificada: “Em decorrência disso, a interferência do Judiciário nas políticas públicas vai ganhando adeptos, sob o argumento de que, ao fazê-lo, não está invadindo matéria de outros Poderes do Estado, nem a discricionariedade que lhes é própria, porque está fazendo o papel de intérprete da Constituição. O Judiciário está garantindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais ou o mínimo existencial indispensável à dignidade da pessoa humana. Em resumo, o Judiciário não estaria analisando aspectos de discricionariedade, mas fazendo cumprir a Constituição.”[7]

De fato, o Judiciário tem em diversas situações ampliado o espaço de exercício da sua função de controle, afirmando ofensa a princípios constitucionais em relação a searas tradicionalmente discricionárias como, p. ex, a elaboração de políticas públicas, dentre outros assuntos. Além do STF, também o STJ tem adotado o referido posicionamento, chegando a se pronunciar sobre o funcionamento de órgão público (restabelecimento do plantão de 24 horas em Delegacia Especializada de Atendimento à Infância e à Juventude), afirmando-se não constitui abuso de poder determinação judicial a esse propósito, visto que “tampouco extrapola o controle do mérito administrativo pelo Poder Judiciário”: “Sabe-se, porém, que essa discricionariedade não é absoluta e que seus abusos podem e devem ser submetidos à apreciação do Poder Judiciário, a quem cabe o controle de sua legalidade, bem como dos motivos e da finalidade dos atos praticados sob o seu manto. (…) Veja-se, portanto, que o descumprimento da referida obrigatoriedade não representa uma escolha aceitável do Estado sob os aspectos moral e ético, mas de induvidosa preterição de uma prioridade imposta pela Constituição Federal de 1988, e de uma conduta contrária à lei, nacional e internacional, constituindo hipótese legalmente aceita de intervenção do Poder Judiciário nos atos da Administração Pública praticados com suporte no poder discricionário.”[8]

Em outras situações, tem se afirmado a possibilidade de fixação de astreintes em sede de controle judicial, com base no “poder geral de efetivação”, concedido ao juiz para dotar de efetividade as suas decisões: “Diante disso, a jurisprudência desta Corte, em reiterados precedentes, admite a imposição de multa cominatória (astreintes), ex officio ou a requerimento da parte, a fim de compelir o devedor a adimplir a obrigação de fazer, não importando que esse devedor seja a Fazenda Pública”.[9]

No STF, a discussão já se travou em mais de uma oportunidade. Em se tratando da opção política do governo ao fixar idade mínima para ingresso na educação infantil e no ensino fundamental, o Ministro Luís Roberto Barroso se referiu ao critério da capacidade institucional e observou que a governamental referia-se a questões técnico especializadas e, nestes casos, se a decisão do órgão competente for razoável e devidamente justificada, o Poder Judiciário deve ter, em relação a ela, uma atitude de deferência e de autocontenção: “Ou seja, como regra geral, o Judiciário deve respeitar as escolhas políticas tomadas pelo Legislativo e as decisões técnicas tomadas pelos órgãos especializados competentes, não cabendo a elas se sobrepor, salvo no caso de usurpação de competência, inobservância de devido processo legal ou manifesta falta de razoabilidade da decisão.”[10] Anteriormente, sobre essa matéria, teve-se o voto do Ministro Alexandre Moraes proclamado em sentido diverso, afirmando ser possível o controle com base na razoabilidade e a afirmando ausente na espécie: “Destacou a irrazoabilidade do estabelecimento de data de corte como critério limitativo de matrícula, o qual é consequência de mero pragmatismo e arbitrariedade governamentais, ferindo o princípio da igualdade e o pleno desenvolvimento da criança.”[11] No caso da constitucionalidade da idade mínima para acesso ao ensino fundamental, portanto, ocorreu discussão expressa a propósito da viabilidade de se controlar a razoabilidade e proporcionalidade do aspecto da política pública formulada (ato de governo), com conclusões diversas a propósito da presença ou ausência da razoabilidade no juízo feito pela autoridade pública competente. O mesmo ocorreu em outros conflitos de interesses submetidos à decisão do Pleno do STF.[12]

Com a devida vênia, não se vislumbrou o mesmo procedimento em relação ao indulto. Salvo engano, a maioria do Pleno do STF entendeu o indulto como um ato político com superior discricionariedade a outros de mesma natureza política, o que lhe justificaria uma liberdade maior do que a elaboração, p. ex., das políticas públicas vinculantes das diversas searas do país. Mais uma vez pedindo vênia reiterada, não se compreende porque o perdão de pena de natureza criminal pode justificar uma discricionariedade política superior do que a formulação das bases de atuação do Estado em favor de toda a sociedade em se tratando de segurança pública, saúde, educação, proteção ambiental e outras matérias.

Ao contrário, também em relação ao indulto cumpre cair o “mito da imunidade” em que, como bem ensinava o saudoso Diogo Figueiredo Moreira Neto, se encastela a resistência ao controle judicial, sob o pretexto supérstite da independência do Chefe Executivo no exercício dessa função, não obstante mista, como sob o pretexto ultrapassado da suficiência de outros controles como o político e social. Ambas as justificações já não mais procedem, tanto pela releitura contemporânea da separação dos poderes (hoje mais separação constitucional de funções) quanto pela emergência do conceito material e valioso de democracia, bem lecionava o mestre carioca.

Atualmente, portanto, há necessidade de observância das normas constitucionais, inclusive constitucionais, que delimitem a prática de atos como o indulto. Há um núcleo mínimo que garante exequibilidade às normas da CR, inclusive as de caráter programático, os princípios implícitos e explícitos. Insistindo à exaustão: os limites constitucionais condicionam atos de governo, desde as normas constitucionais implícitas, os princípios expressos e as regras fixadas na CR. Daí ser possível concluir:

a) é cabível o controle da juridicidade do indulto, ato político, pelo Poder Judiciário;

b) o controle judicial deve aferir se o ato de o Chefe de governo atendeu as normas constitucionais que regem o exercício de todas as suas competências, inclusive princípios implícitos e explícitos da CR quanto a atos políticos, não sendo “ampla” a liberdade exercida nessa seara ao ponto de só se limitar por regras específicas, expressas no texto da CR e em outros diplomas;

c) o Poder Judiciário não pode invadir o cerne da discricionariedade política reservado ao Governo competente para exercer dada atribuição e também não lhe cabe ser omisso ao fazer prevalecer exigências como moralidade e proporcionalidade no tocante a cada ato, ainda que praticado pela autoridade máxima do Executivo.

d) é preciso atentar para as especificidades da hipótese em julgamento, a fim de aferir o cumprimento, ou não, das exigências principiológicas constitucionais e regras jurídicas do ordenamento de regência.

4. A questão do desvio de poder em atos políticos

Já se elucidou que ocorre desvio de poder quando a intenção subjetiva do agente divorcia-se da finalidade prevista no ordenamento como legítima, visando proteger um interesse particular ou outro interesse público não amparado juridicamente. Neste caso, a autoridade exerce uma competência que tem, ou seja, faz algo que pode realizar, mas o faz para atender um objetivo diferente do que o ordenamento admite. Há, portanto, “desvio na finalidade” que se busca alcançar naquele caso. O desvio de poder é hipótese de imoralidade administrativa, pois a autoridade que se afasta da finalidade legal age com indiscutível má-fé.

Também nos casos em que há discricionariedade política, como no exercício da função de governo, utilizar de uma competência constitucional (Presidente da República nomear Ministros de Estado ou deferir indulto) para atingir outro objetivo é incorrer no vício do desvio de finalidade. O fato de a autoridade fazer algo que pode – nomear auxiliar direto ou perdoar condenações penais – não legitima que o faça em flagrante contexto de falsidade institucional, excluindo indevidamente a punição fixada pelo Judiciário que repercute no direito de ir e vir. A imoralidade pode resultar da fixação de um mínimo de pena cumprida incapaz de concretizar a finalidade punitiva na espécie, incluir no benefício crimes cuja prática consubstanciou desonestidade e imoralidade rechaçada pela sociedade, de graves consequências jurídico-políticas, representando manipulação do sistema para afastar o seu adequado funcionamento. E não se pode admitir que o fim real do ato de indulto ou de nomeação seja diverso da finalidade legal imposta pelo sistema: a escolha adequada de quem pode se beneficiar do perdão humanitário pelo Chefe do Executivo, observados os parâmetros constitucionais.

A grande dificuldade em situações dessa natureza é apurar o desvio entre a finalidade prevista no ordenamento para o exercício daquela competência e a intenção do agente quando da prática do ato de governo. Como provar que o Presidente da República, que pode deferir indulto, o fez não para cumprir as finalidades do instituto mas, na verdade, buscou livrar do funcionamento repressivo do sistema penal que objetivamente não faz jus ao benefício? A investigação de aspectos anímicos, ou seja, internos do agente é tarefa desafiadora das melhores técnicas de instrução probatória e de coleta de elementos indicadores de desvio.

O doutrinador Cretella Júnior debruçou-se sobre a dificuldade probatória do desvio de poder e enumerou um conjunto de condutas ou deslizes mais comuns que são indícios da presença deste vício: a) contradição do ato com a conduta posterior do administrador; b) contradição do ato com conduta anterior; c) motivação contraditória (deixa o intérprete perplexo a respeito da verdadeira razão inspiradora do administrador); d) motivação insuficiente ou exagerada (a superabundância de motivação, com apre­sentação de uma série infindável de fatos e de considerações prolixas e não concludentes, enseja a suspeita de que a decisão decorre de uma opção, cujos verdadeiros motivos é preferível que se conservem ocultos); e) alteração dos fatos; f) ilogicidade manifesta (Zanobini expressa a expressão ilogicidade para designar a falta de nexo lógico entre os vários motivos ou entre a motviação e o dispositivo do ato); g) injustiça patente; h) disparidade de tratamento; i) derrogação de norma interna (segundo Aldo Bozzia derrogação injustificada, em um caso particular, de disposições internas de caráter geral, editadas pela Administração é também sintoma de desvio de poder, p. ex.: violação de circulares); j) precipitação com que o ato foi editado (precipitação com que a autoridade, nomeada ou eleita, assina a decisão, antes mesmo da posse, ordenando que seja executada no dia seguinte ao em que entrou em exercício); l) desigualdade de tratamento dispensada aos interessados; m) caráter sistemático de certas proibições; n) caráter geral atribuído a medida que deveria permanecer particular; o) inexistência, de fato, dos motivos apresentados pelo administrador para justificar a decisão tomada; p) circunstâncias locais que antecederam a edição do ato; q) travisamento, segundo a doutrina italiana: escreve Cino Vitta que se entende por travisamento a averiguação ou a avaliação dos fatos, em geral, de modo artificial, com a finalidade de submetê-los à aplicação de preceito de lei, sob o qual, de outro modo, não teriam sido enquadrados; para Zanobini, ocorre o desvio de poder por alteração – igual a travisamento – todas as vezes que o ato é editado sobre pressuposto da existência ou da inexistência dos fatos, que dos atos resultam, de modo certo, inexistente ou subsistente; r) feixe convergente de indícios.[13]

Se houver prova clara de desvio de poder subjetivo ou se coletados elementos suficientes da diversidade entre a finalidade pública do comportamento adotado e o objetivo que se buscou alcançar, é indispensável reconhecer a imoralidade da conduta governamental e sua inconstitucionalidade. Impõe-se, neste caso, o controle judicial repressivo, de modo a restaurar a juridicidade do sistema jurídico.

No caso do indulto ora em discussão, tem-se alguns indícios de vício subjetivo de desvio de poder, a saber, contradição do ato político de 2017 com condutas anteriores, insuficiência de motivação, desigualdade de tratamento em favor dos beneficiados em 2017 comparativamente com os indultados anteriormente e até mesmo o travisamento. Com a devida vênia das negativas assentadas no voto condutor da divergência, vislumbram-se suficientes razões para se falar em desvio de poder subjetivo, tratando-se de mera aplicação do direito aos elementos fáticos evidenciados nos autos.

Mesmo que assim não o fosse, seria imprescindível considerar a repercussão da boa-fé objetiva na teoria do desvio de poder, o que torna possível que comportamentos concretos evidenciem o não atendimento do fim legal, sem qualquer aprofundamento do escopo interno do agente. Ou seja, independentemente de se ter prova da intenção pessoal de quem praticou o ato, é viável demonstrar que a finalidade foi desvirtuada, pelo descompasso dos dados objetivos da conduta – por meio de que o ato se deu – com a finalidade da lei, o que se tem fartamente demonstrado na hipótese.

Nessa mesma linha de raciocínio, a professora Dinorá Adelaide Musetti Grotti observa que há desvio de poder não apenas quando o agente atua com intenção viciada, mas também quando busca uma finalidade admitida no ordenamento, mas a via não é própria para alcançar a finalidade específica do sistema normativo (desvio de procedimento: utilização de procedimento inadequado para atingir a finalidade legal – mais sério se há discricionariedade). Admite o desvio de poder de boa-fé ou de má-fé. Embora comum que exista vício de intenção, reconhece não ser necessário buscar a intenção do agente; basta verificar o descompasso entre a finalidade do ato concreto e a finalidade da norma abstrata (vício objetivo): “O vício do desvio de poder, embora seja decorrência, muitas vezes, de um vício no móvel do agente administrativo, nem sempre o é. Por isso parece mais acertado afirmar que o vício, na realidade, é objetivo. Importa, enfim, é o fato objetivo, de ter sido a finalidade legal desrespeitada, e não o móvel do agente (vício subjetivo).

Com a concepção mais moderna, segundo a qual o desvio de finalidade é vício de estrita legalidade, a intenção do agente perde relevância para a configuração do vício (não para sua averiguação). (…)

Via de consequência, se o vício possui natureza objetiva, não há que se buscar a intenção do agente para se verificar a constatação e posterior reprimenda do desvio de poder, basta apenas verificar objetivamente o descompasso existente entre a finalidade atingida pelo ato concreto e a finalidade da norma em abstrato.”[14]

Não é em outro sentido a lição do mestre Celso Antônio:

“O que o Direito sanciona no desvio de poder, consoante entendemos, é sempre o objetivo descompasso entre a finalidade a que o ato serviu e a finalidade legal que por meio dele poderia ser servida. É, pois, um desacordo entre a norma abstrata (lei) e a norma individual (ato). Como a norma abstrata é a fonte de validade da norma individual, se esta (ato) não expressa, in concreto, a finalidade daquela (lei), terá desbordado de sua fonte de validade. Daí o ser inválida.

Então, mesmo nos casos em que o agente atuou sem a reta intenção de atender à lei seu comportamento é fulminável não porque teve o intuito de desatender à lei, mas porque desatendeu. Donde não é a má-fé, nos casos em que haja existido (desvio de poder alheio a qualquer interesse público), nem o intuito de alcançar um fim lícito, por meio impróprio, quando haja sido este o caso (desvio do fim específico), aquilo que macula o ato, e sim a circunstância de este não realizar a finalidade para a qual a lei o preordenara. É que no direito público a satisfação do escopo sobreleva a boa ou má intenção do sujeito que pratica o ato. Se o atendeu com bons ou maus propósitos, nada importa. Se o desatendeu com intentos lisos ou incorretos, praticou, igualmente, uma ilegalidade, e o ato não pode prosperar.”[15]

Assim sendo, se se afasta da finalidade concebida para o ato de perdão total ou parcial da pena, vinculado à dignidade da pessoa humana, fins humanitários e cumprimento das regras rígidas de condutas do sistema prisional, independente de qualquer outro aspecto já se tem evidenciado o desvio de poder. Isso principalmente atentando para o fato de que o indulto é uma medida extraordinária que, como tal, não pode ser banalizado, ainda mais quando a restrição penal à liberdade ocorreu após prejuízos causados a bens mais relevantes para a sociedade, como é exatamente o caso de práticas de corrupção ensejadoras dos chamados “crimes de colarinho branco”. Não se ignore que, nesses casos, o indulto gera uma grande sensação de impunidade na sociedade, vítima secular da ausência de condenação de governantes e gestores corruptos, em favor dos quais, após rara atuação repressiva do Estado, haveria agora a extinção da pena em período extremamente curto de tempo (suficiente 1/5 de cumprimento da pena), o que sequer oportuniza reflexão sobre a gravidade dos crimes cometidos, nem enseja compreensão sobre a necessidade de mudança de comportamento perante os cidadãos brasileiros.  Utilizada indevidamente a competência para o indulto, nos termos em que explicitado, tem-se o desvio de poder que, conforme orientação dos Tribunais superiores, compromete a licitude do ato, por se tratar de vício insanável.[16]

Até mesmo o desvio de Poder Legislativo é reconhecido em face do princípio da razoabilidade das leis que leva ao problema da lei arbitrária, que permite excéss de pouvoir por parte da autoridade legislativa, conforme elucida a doutrina nacional. Seabra Fagundes teve a oportunidade de defender a ideia de que “a extensão da teoria do desvio de poder originário é essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição regida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento Constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira”. O STF, por sua vez, na ADI 958, alargou a configuração constitucional que alberga o princípio da proporcionalidade como um dos elementos robustos que mantém intactos os direitos fundamentais, extraído do princípio da reserva legal ou do princípio do Estado de Direito (art. 1º da CF), e o Ministro Moreira Alves fundamentou sua ótica no sentido do que o princípio tem assento constitucional na cláusula do devido processo legal, como sua garantia material. Desde então, a jurisprudência do STF até a atualidade tem fiscalizado a atuação do Legislativo e do Executivo, para que esses poderes não cometam atos revestidos de excessos, com flagrante desvio de poder: “Ninguém, aí inclua-se os Poderes legalmente constituídos – possui a faculdade de rasgar a Constituição, para instituir uma sociedade onde os excessos ou abusos seriam uma constante. O princípio é o de que todos, em especial o Estado, devem comungar da hóstia constitucional, pautando seus atos dentro do encarte legal, sem sentimentos ou posicionamentos ilegais.

Portanto é que se clama sempre por um Judiciário independente, onde o Magistrado somente se curva à sua própria consciência jurídica e moral.”[17]

Ora, se até mesmo o desvio de poder legislativo vem sendo reconhecido na jurisprudência pátria, nenhuma razão se entende juridicamente válida para excluir a possibilidade de falar em desvio de poder em ato político, sendo dever do Judiciário reconhecer a presença do ânimo subjetivo ou dos elementos objetivos que o caracterizam.

Não se ignora tratar-se de uma tarefa complexa que requer compreender o regime jurídico a ser observado quando do indulto e do seu controle judicial, sem mergulhar no subjetivismo aleatório, nem mesmo no arbítrio casuístico. O desafio que se coloca é reprimir o descompasso entre ato político e o sistema jurídico, sem fazer confusão entre os papéis dos Poderes, observando-se a divisão de competências nos termos da Constituição. Se defender um Judiciário que se pretende governante não é válido, até mesmo pela humanidade dos seus membros, sujeitos a erros e falhas tanto quando os demais agentes públicos, é igualmente inadmissível e lesivo à sociedade uma Corte Suprema estática diante de elementos evidenciadores de ilicitude de um relevante ato político, em matéria de política criminal que repercute em toda a sociedade brasileira. Desafia-se o Supremo Tribunal Federal a buscar o equilíbrio, considerando as dificuldades da hipótese em discussão, sendo esse um dos principais desafios do controle judicial no século XXI.

5. Conclusões

Não muito distante das conclusões já aviadas em situações semelhantes, explicita-se que indulto é ato político praticado no exercício da função de governo, com submissão às exigências constitucionais (como, p. ex., o princípio da moralidade e proporcionalidade) e ao controle de juridicidade dos comportamentos do Estado. O fato de ser cabível o controle pelo Judiciário da moralidade e da proporcionalidade, por se tratar de aspectos vinculados das funções do Estado, inclusive as de natureza governamental, não extingue a discricionariedade política reservada ao Chefe do Executivo, nem permite invasão o mérito político, sendo necessário no caso concreto aferir se se está diante de um adequado controle de juridicidade, incluída a observância dos princípios constitucionais, sem supressão da discricionariedade do Executivo, mas com limitação da escolha da autoridade de governo aos critérios normativos do ordenamento (normas principiológicas e regras específicas).

É controle de legalidade, na perspectiva contemporânea da juridicidade, reconhecer, abstratamente, que não atende a moralidade praticar ato de indulto com desvio de poder subjetivo ou objetivo, atentando para as finalidades do instituto e para os resultados alcançados pelo mesmo na espécie. Estando evidente divórcio entre o deferimento de indulto e o padrão ético de comportamento que os cidadãos esperam em razão do exercício da função pública pela autoridade máxima do Executivo, impõe-se reconhecer a imoralidade e/ou desproporcionalidade e, no exercício do controle, reprimir a inconstitucionalidade e restaurar a juridicidade.

Há desvio de poder quando o ato se afasta da finalidade legal e concretiza resultados ou interesses distintos daqueles que o ordenamento busca, o que evidencia ofensa à moralidade administrativa, além de manifesta desproporcionalidade entre o meio e o objetivo permitido pelo sistema jurídico. A dificuldade em provar o desvio de poder, relacionado a aspecto anímico do sujeito, pode ser reduzida com o entendimento de que todas as condutas do Estado, inclusive as praticadas no exercício de discricionariedade política e administrativa, devem ser motivadas; a indicação do suporte fático e jurídico de um ato político viabiliza o exame da existência e veracidade dos motivos, bem como do adequado enquadramento dos fundamentos jurídicos eleitos, sendo certo que discricionariedade política não se confunde com arbitrariedade governamental.

Não se admite esvaziamento do controle judicial pelo STF com comprometimento, dentre outros, dos princípios moralidade, proporcionalidade, inafastabilidade da jurisdição, transparência, impessoalidade, eficiência e republicano. O controle de juridicidade do indulto deferido pelo Chefe do Executivo em situação de ofensa a princípios constitucionais não suprime a discricionariedade política e representa a garantia de efetividade constitucional do sistema vigente.

É preciso cautela redobrada quando o resultado de um entendimento significa abdicar o dever de controlar a observância de normas constitucionais relevantes como é o caso da moralidade e da proporcionalidade, às vésperas do início de um novo período de mandato nos âmbitos federal e estadual, a desafiar especial firmeza por parte do Poder Judiciário. Mais do que o que representa especificamente quanto ao indulto do ano de 2017, preocupa principalmente o afastamento de entendimentos anteriores quanto à função do STF na atividade de controle judicial, com maioria formada em favor de uma discricionariedade ampla do Chefe do Executivo a evidenciar uma postura arriscadamente “Pôncio Pilatos” da Corte Suprema. Que não se estenda a todos os demais atos políticos fundamentais do Estado brasileiro, especialmente aqueles relativos à formulação e à implementação de políticas públicas.

 

 

[1] ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Motivação e controle do ato administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. p. 114-115

[2] MS n° 25.668-DF, rel. Min. Celso de Mello, Pleno do STF, julgamento em 23.3.2006, Informativo 420 do STF

[3] MS n° 9.944-DF, rel. Min. Teori Albino Zavascki, 1ª Seção do STJ, julgamento em 25.05.2005, Informativo 248 do STJ

[4] BADIN, Arthur Sanchez: Controle judicial das políticas públicas. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 56

[5] JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros: SBDP, 2016, p. 656; 661e 663

[6] FERNANDES, Rafael Laffitte ; NELSON, Rocco Antonio Rangel Rosso. Da capacidade de inovação normativa jurídica do Poder Judiciário – analisando o dogma do ‘legislador negativo’. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 15, n. 59, p. 103-123, out./dez de 2017

[7] DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. O que sobrou da discricionariedade administrativa? Reflexões sobre o controle da Administração e a judicialização das políticas públicas. In Controles da Administração Pública e judicialização de políticas públicas. Coordenação Thiago Marrara e Jorge Agudo González. São Paulo: Almedina, 2016, p. 186

[8] REsp nº 1.612.931-MS, rel. Min. Napoleão Nunes Maia, 1ª Turma do STJ, julgamento em 20.06.2017, Informativo 611 do STJ

[9] REsp nº 1.474.665-RS, rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Seção do STJ, julgamento em 26.04.2017, Informativo 606 do STJ

[10] ADPF nº 292-DF, rel. Min Luiz Fux, e ADC nº 17-DF, rel. Min. Edson Fachin, Pleno do STJ, julgamento em 25.05.2018, Informativo 903 do STF

[11] ADC nº 17-DF, rel. Min. Edson Fachin, Pleno do STJ, julgamento em 27.09.2017, Informativo 897 do STF

[12] ACO nº 444-SC, rel. Min. Roberto Barroso, Pleno do STJ, julgamento em 27 e 28.06.2018 Informativo 908 do STF; RE nº 635.648-CE, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 14.6.2017, Informativo 869 do STF

[13] CRETELLA JÚNIOR, José. A prova no “desvio de poder”. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, Renovar, v. 230, p. 198

[14] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O desvio de poder em atos administrativos in Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella di Pietro. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo ; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de ; NOHARA, Irene Patrícia ; MARRARA, Thiago. Organizadores. São Paulo: Atlas, 2013, p. 810

[15] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Grandes Temas de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 132

[16] ROMS n° 17.081-PE, rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma do STJ, DJU de 09.03.2007, p. 29; REsp n° 616.771-CE, rel. Min. Felix Fischer, 5a Turma do STJ, DJU de 01.07.2005, p. 599

[17] MATTOS, Mauro Roberto Gomes, Revista de Direito Administrativo, v. 234, p. 255-259

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