Requisição administrativa: aspectos básicos do regime jurídico

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1. Conceito

Requisição administrativa é um ato administrativo unilateral e auto-executório que consiste na utilização de bens ou de serviços particulares pela Administração, para atender necessidades coletivas em tempo de guerra ou em caso de perigo público iminente, mediante pagamento de indenização a posteriori. Não possui a natureza de direito real, posto que dela resulta direito pessoal vinculante do Poder Público e do titular do bem ou do serviço requisitado.

Enquadra-se como requisição administrativa a competência prevista no inciso XXV do artigo 5° da Constituição, in verbis: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Define-se como perigo público iminente aquele risco que, se propagadas as suas consequências, é improvável que a sociedade seja preservada dos resultados danosos, sejam decorrentes de eventos da natureza, sejam resultantes de comportamentos de pessoas naturais ou jurídicas. Se iminente a ocorrência de um risco que ameaça a coletividade, é legítimo adotar a requisição dos bens ou serviços necessários à proteção do interesse público primário, nos termos da legislação pertinente.

O artigo 22, III, da Constituição da República outorga à União competência privativa para legislar sobre requisição civil e militar, donde se conclui que a legislação sobre o instituto deve ser necessariamente federal. É José dos Santos Carvalho Filho quem indica o Decreto-Lei n° 4.812, de 08.10.42, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 5.451, de 30.04.43, como o diploma federal que disciplina o poder de requisição civil e militar. A este diploma acresce a Lei Delegada n° 4, de 26.09.62 (regulamentada pelo Decreto Federal n° 51.644-A, de 26.11.62) e Decreto-Lei n° 2, de 14.1.66, voltados para a intervenção no domínio econômico e para os bens e serviços necessários ao abastecimento da população.[1]

Denota-se do referido contexto normativo que, além da requisição militar que objetiva resguardar a segurança interna, inclusive em situações de guerra, tem-se admitidas nas leis federais as requisições civis, cujo objetivo é evitar a ocorrência de danos à vida, à saúde e aos bens da coletividade. É o que ocorre, p. ex., com a requisição de leitos e serviços hospitalares autorizada no artigo 15, XIII, da Lei Federal n° 8.080/90, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias”. Neste caso, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização.

Também o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei Federal n° 7.565, de 19.12.86) prevê no artigo 53 que “A obrigação de prestar socorro, sempre que possível, recai sobre aeronave em vôo ou pronta para partir”, estabelecendo no artigo 54 que “Na falta de outros recursos, o órgão do Ministério da Aeronáutica, encarregado de coordenar operações de busca e salvamento, poderá, a seu critério, atribuir a qualquer aeronave, em vôo ou pronta para decolar, missão específica nessas operações”.

Em dispositivos federais desta natureza o que se tem é a previsão de requisições de bens e serviços em situações emergenciais, na iminência de perigo público ou em situação de guerra, nos estritos termos em que admite o artigo 22, III, da Constituição da República.

 

2. Objeto

Podem ser objeto de requisição administrativa bens imóveis, bens móveis ou serviços particulares. Com efeito, é lícito ao Poder Público, quando autorizado por lei que atenda as normas constitucionais de regência, requisitar prédios, determinados equipamentos ou mesmo a prestação de serviços para atender uma situação de perigo público iminente.[2]

A requisição de imóveis implica, em regra, somente o seu uso temporário pelo Poder Público, sendo excepcional a possibilidade de destruição ou alteração do bem requisitado, com o atendimento da proporcionalidade. Dentre os bens móveis, é cabível que a requisição recaia até mesmo sobre bem móvel consumível.

No caso de ser requisitado bem móvel consumível[3], a possibilidade de a intervenção do Estado caracterizar-se como desapropriação exclui-se, uma vez que o objetivo da requisição não é a aquisição da propriedade mediante indenização prévia, mas sim o atendimento de uma necessidade urgente e transitória do Poder Público, com indenização posterior. A diversidade entre a figura da requisição e a da desapropriação é bem clara, pois, além de fundamentos diversos, a primeira decorre de um ato unilateral e autoexecu-tório, sendo a segunda dependente de um acordo ou de decisão judicial. A doutrina assim enumera os principais caracteres distintivos:

a) Requisição:

– refere-se a bens ou serviços.

– preordena-se ao uso da propriedade.

– decorre de necessidades transitórias.

– é autoexecutória.

– supõe, em geral, necessidade pública premente, compulsiva.

– pode ser indenizada a posteriori e nem é obrigatória.

b) Desapropriação:

– refere-se a bens.

– objetiva a aquisição da propriedade pelo Poder Público.

– é suscitada por necessidades permanentes da coletividade.

– depende, para se efetivar, de acordo, ou na falta deste, de procedimento judicial.

– supõe necessidade corrente, usual.

– é sempre indenizável e exige indenização prévia (salvo na hipótese dos artigos 182, § 4°, III, e 184).

Assim sendo, pode-se afirmar que, quando recai sobre bens móveis consumíveis, a requisição pode até levar ao desaparecimento da coisa, mas não se transmuta em desapropriação. Consoante ensina Marçal Justen Filho, “a ocupação do bem acarretará seu desa­parecimento, de modo que é possível estimar, desde logo, a impossibilidade de sua restituição. Por isso, a destinação da requisição é resolver-se no pagamento da indenização correspondente”. Adverte o doutrinador, com percuciência, ser necessário a própria Administração iniciar procedimento para liquidar o valor devido a título de ressarcimento, sob pena de responsabilização administrativa do agente responsável.[4]

Relevante discussão a propósito do objeto da requisição administrativa ganhou força após o Decreto Federal n° 5.392, de 10.03.05, ter declarado calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro, requisitando dois hospitais municipais, inclusive bens, serviços e servidores, além de quatro hospitais federais municipalizados.

O fato de a intervenção ter atingido patrimônio, pessoal e serviço médico de duas unidades hospitalares do Município do Rio de Janeiro ensejou a discussão sobre a viabilidade de requisição administrativa ser levada a efeito por um ente político sobre bens e serviços públicos de outra pessoa federativa. Isto porque a doutrina tradicional vinha definindo a requisição administrativa como modalidade de intervenção parcial incidente sobre bens particulares, tendo em vista, inclusive, as normas inseridas nas Constituições anteriores, à semelhança da regra do artigo 5°, XXV, da Constituição de 1988. O Decreto Federal n° 5.392/05 atingiu, entretanto, bens e serviços da esfera municipal.

Defendendo a possibilidade de intervenção sobre bens públicos, invocou-se o argumento de que, se bens privados podem servir a Administração no atendimento de situação emergencial, com maior razão a incidência da requisição sobre bens públicos. Uma interpretação finalística e teleológica tornaria cabível a requisição dos hospitais municipais, tendo em vista a ameaça à saúde da população local, o que atende a finalidade da norma constitucional. Sob este prisma, a requisição administrativa também pode ter por objeto bens públicos.

Em sentido diverso, afirma-se que a autonomia reconhecida às pessoas federativas, pelos artigos 1°, 18, 25 e 30 da Constituição, impede que uma delas assuma, mediante simples requisição administrativa, o patrimônio, quadro de pessoal e serviços de outro ente político. Destarte, caso a União entendesse indispensável a assunção das unidades hospita­lares integrantes do SUS, deveria adotar os mecanismos constitucionais que legitimam tal comportamento como, v.g., a Intervenção ou o Estado de Defesa, sob pena de comprome­timento do modelo federativo vigente. Ambos os institutos — Intervenção ou Estado de Defesa — exigem pressupostos e trâmite específicos, cujo rigor é compatível com a gravidade das medidas. Não cumpridas as exigências do ordenamento, tem-se a ilicitude da medida adotada, que passa a merecer repulsa radical do ordenamento jurídico.[5]

Ao decidir o Mandado de Segurança n° 25.295-DF, em que a matéria foi discutida, inclusive à luz do artigo 15, XIII, da Lei Federal n° 8.080/90, o Ministro Relator Joaquim Barbosa ressaltou “a possibilidade de a requisição incidir sobre bens públicos, sem a necessidade da decretação do estado de defesa, por ser ela instituto que visa fornecer alternativas à administração para solução de problemas em casos de eminente perigo público”. Em sentido contrário, o Ministro Carlos Britto afastou “a viabilidade de requisição de bens públicos na forma preconizada pelo inciso XIII do art. 15 da Lei 8.080/90, haja vista tal dispositivo estar relacionado ao art. 5°, XXV, da CF, que prevê que a requisição de uso temporário apenas incide sobre bens particulares”. Já o Ministro Cezar Peluso “Acrescentou que a requisição como tal pressupõe que o bem requisitado tenha destinação natural diversa daquela prevista na Constituição, qual seja, atender a iminente perigo público, o que não teria sido observado no caso, e, ainda, o fato de a própria lei invocada como suporte da requisição impedir que se extravasasse o âmbito administrativo de cada unidade federada”. A questão não restou solucionada pelo Pleno do STF, uma vez que, no caso específico do Decreto Federal n° 5.392, de 10.03.05, formou-se a maioria em torno da nulidade do ato por falta de fundamentação. Foi a não motivação que ensejou o restabelecimento da administração e gestão dos hospitais pelo Município do Rio de Janeiro.[6]

 

3. Instituição

Para que a requisição possa ocorrer, cumpre que se esteja diante de um dos pressupostos que a autoriza: ou situação de guerra ou de perigo público iminente. A excepcionalidade da primeira hipótese deixa evidente que aferir se há, ou não, perigo público iminente é questionamento fundamental em se tratando de requisição administrativa. Embora se trate de conceito jurídico indeterminado, tem-se de noção que se objetiva diante de dada realidade administrativa, a ser avaliada pela autoridade competente. Este contexto demonstra ser possível o controle dos contornos da discricionariedade e os aspectos vinculados do ato em questão.

A requisição administrativa é instituída por ato administrativo unilateral e auto-executório. Assim sendo, basta a manifestação de vontade do Estado para a sua existência jurídica (unilateralidade). Outrossim, o ato possui força de coerção material e direta junto aos bens e aos serviços requisitados, independentemente da aquiescência dos terceiros atingidos ou da necessidade de o Poder Público recorrer previamente ao Judiciário (autoexecutoriedade). Isto não impede, à obviedade, que terceiros que tenham sofrido restrições indevidas em razão da requisição administrativa pleiteiem revisão judicial, com fundamento no artigo 5°, XXXV, da CR.

 

4. Indenização

A própria natureza emergencial dos pressupostos que autorizam a requisição administrativa legitimam que a indenização, pelo Estado, dos prejuízos sofridos pelos titulares dos bens ou serviços, se dê posteriormente à intervenção. Reiterando a premissa segundo a qual indenização é tornar indene de prejuízos, é fundamental que haja prova dos danos sofridos. Demonstrados os prejuízos, não há como o Poder Público furtar-se do dever de ressarcir a posteriori.

A propósito da fixação do quantum indenizatório, cumpre restringir o caráter auto-executório da requisição administrativa ao momento da sua instituição. É certo que a urgên­cia presente no perigo público iminente ou na guerra justifica que o Estado atinja diretamente esferas jurídicas alheias, sem a necessidade da sua concordância preliminar. Entretanto, isto não significa que é lícito ao Estado, em momento posterior, quando já realizada a requi­sição, fixar unilateralmente o montante devido a título de ressarcimento, sem oportunizar a manifestação e a produção de provas que o terceiro interessado entender cabíveis.

Se a Administração Pública está obrigada a atender as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, não pode recusar a instauração de procedimento dialético para aferir o quantum indenizatório devido em virtude da requisição. Até mesmo para que se tenha maior segurança, com redução de possíveis nulidades e eventuais repressões judiciais subsequentes, é instrumento da juridicidade viabilizar que o terceiro produza provas relativas ao montante a que faz jus a título de ressarcimento. Os elementos proba­tórios colacionados serão avaliados pelo Poder Público e os argumentos apresentados pelo terceiro serão considerados na decisão administrativa final que, devidamente motivada, estabelecerá a importância ressarcitória devida pelo Estado.

 

5. Extinção

Também a requisição administrativa é uma modalidade de intervenção que se caracteriza pela transitoriedade. O seu caráter não-definitivo implica que, findo o pressuposto emergencial que a autoriza, o bem ou o serviço retorne à esfera do seu titular. Afinal, após ultrapassada a situação de perigo público iminente ou de guerra, seria desarrazoada a continuidade do uso da coisa ou serviço requisitado pelo Poder Público.

 

[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 640.

[2] Também no direito comparado admite-se a requisição administrativa de coisas móveis, uso de imóveis e semoventes, bem como de prestação de serviços públicos, consoante ensina Patricia R. Martinez. (In: FARRANDO, Ismael e MARTINEZ, Patrícia R. (Org.) Manual de derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1996. p. 540)

[3] Bens consumíveis são os bens móveis cujo uso implica destruição imediata da própria substância (p.ex., alimentos e medicamentos).

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 418.

[5] No caso específico do Decreto Federal n° 5.392/05, cumpre advertir que a Constituição da República, em seu artigo 34, não admite a intervenção da União diretamente em Município, mas somente em Estados-Membros e no Distrito Federal.

[6] MS nº 25.295-DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno do STF, julgado em 20.04.2005, Informativo do STF, nº 384.

 

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