Decreto nº 9.690/2019: a inconstitucionalidade material da delegação da competência classificatória de sigilo no âmbito federal

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1.  Considerações Preliminares

Foi publicado o Decreto nº 9.690, de 23 de janeiro de 2019, que alterou o Decreto Federal nº 7.724, de 16 de maio de 2012, normatizador da Lei de Acesso à Informação. Sobre a publicidade, é claro o direito à informação pública consagrado no ordenamento brasileiro, sendo essencial assegurar a transparência em um Estado Democrático de Direito.

À obviedade, isso não significa excluir todas as hipóteses de sigilo do sistema jurídico, sendo cabível previsão legal de situações em que não se admitirá divulgação de informações que justifiquem a preservação do seu conteúdo. Na Lei Federal nº 12.527/2011 são fixadas as hipóteses em que se pode afastar a regra da publicidade, sendo clara inovação o fato de somente diplomas legais disporem sobre o tema de forma exaustiva. De fato, à medida em que a LIA determinou a publicidade como regra geral, enumerar os casos em que excepcionalmente se admite sigilo exigiu previsão em lei no sentido formal. Assim sendo, matéria que até então era comumente tratada em normas inferiores, não oriundas do Congresso Nacional, passou exigir lei em sentido formal.

Dentre as exceções consagradas na própria Lei Federal nº 12.527/2011, tem-se os dados pessoais, ou seja, aqueles relacionados à pessoa natural identificada ou identificável, com exigência de respeito à vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. As informações de caráter privado podem estar sob custódia do particular ou do Estado; aqui vale a regra do sigilo, ao contrário das informações estatais em que, por determinação legal, o sigilo é exceção. No caso de informação de caráter privado em poder particular, tem-se um segredo particular, com acesso restrito indefinidamente. Quando esta informação está em poder do Estado, trata-se de informação pessoal, com acesso restrito nos termos do art. 31 da LIA; consequentemente, não se trata de informação pública e o prazo de sigilo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua produção. Por força do art. 31, § 1º, é autorizada divulgação ou acesso por terceiros diante e previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que se referirem. O consentimento não é exigido se as informações são necessárias à prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz e para utilização única e exclusiva no tratamento médico; na hipótese de realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei (vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem); no caso de cumprimento de ordem judicial; e se se trata de defesa de direitos humanos, proteção do interesse público geral e preponderante (art. 31, § 3º, I a V da LIA). É preciso reconhecer que a restrição de acesso não pode ser invocada para prejudicar apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação e fatos históricos relevantes.

A outra hipótese de exceção à regra da publicidade expressamente prevista na Lei Federal nº 12.527/2011 é a das informações classificadas como sigilosas, visto que imprescindíveis à segurança da sociedade (à vida, segurança ou saúde da população) ou do Estado (ex: soberania nacional, relações internacionais, atividades de inteligência) nos termos do artigo 23, sendo aqui necessária classificação pela autoridade competente para que se justifique a restrição de acesso.

A propósito da classificação de uma informação pública como sigilosa, a Lei nº 12.527 reduziu os antigos quatro níveis de sigilo (ultra-secretos, secretos, confidenciais e reservados) para três níveis (ultrassecreta, secreta e reservada), como também reduziu os prazos máximos de guarda das informações: informação classificada como ultrassecreta – atualmente prazo 25 anos de sigilo, renovável uma única vez; secreta – prazo de 15 anos de sigilo e reservada – prazo de 5 anos de sigilo. Especificamente quanto às informações que coloquem em risco segurança do Presidente, Vice-Presidente, seus cônjuges e filho(as), se as classificam como reservadas, incidindo o sigilo até término do mandado em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição. Daí parte da doutrina denomina essa hipótese de sigilo “reservado especial”, que admite restrição por até oito anos, diferente do grau reservado comum que tem como limite fixo o período de cinco anos.

 

2. A classificação de uma informação pública como sigilosa

A Lei Federal nº 12.527/2011 é tímida ao fixar critérios orientadores da classificação da informação pública como sigilosa. No § 5º do artigo 24 determina a incidência do critério menos restritivo possível e a observância do interesse público, considerando-se: I) a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado; II) o prazo máximo de restrição de acesso ou evento que defina seu termo final.

O dispositivo reitera o paradigma legal da publicidade como regra, sendo o caráter excepcional do sigilo orientador da adoção da menor restrição possível em face do interesse público da transparência. Essa é a máxima que decorre do sistema de publicidade instituído pela LIA, com funções normogenética e hermenêutica claras. Consequentemente, as normas infralegais subsequentes (como as veiculadas por Decretos ou atos normativos da Administração Pública) são limitadas, em seu conteúdo, pelo fato de o interesse público fixar, como regra, a publicidade, sendo imperioso que as suas regras restrinjam o menos possível o dever de transparência. Também no momento da sua interpretação, para delas extrair o significado em dada realidade, idêntico limite vincula a atividade do operador do Direito, sendo-lhe obrigatório buscar a mais ampla divulgação cabível na realidade específica.

É certo que tais premissas extraídas do artigo 24 da LIA enquadram-se na ideia de proporcionalidade que, como princípio, obriga a Administração Pública. E por força da adequação (subprincípio da proporcionalidade), qualquer medida estatal deve impor a menor restrição possível ao núcleo dos direitos envolvidos. Ao se classificar uma informação como sigilosa, é manifesto que se tem uma restrição ao direito fundamental à publicidade e, à obviedade, é preciso que sua limitação seja sempre a menor possível. Trata-se de um aspecto vinculado em relação a uma competência que, no ordenamento, implica abstrata discricionariedade.

Em algumas situações, a proporcionalidade, a regra do artigo 24 da LIA e as demais normas do ordenamento levarão a uma resposta única: ou não se trata de hipótese de sigilo, ou claramente é um caso de sigilo ultrassecreto pelos interesses envolvidos, ou é hipótese de informação secreta ou reservada. Nestes casos, a hermenêutica que considera os aspectos fáticos da informação a ser classificada e que aplica as normas do sistema jurídico  conduze a somente uma resposta possível, havendo clareza e unicidade no comportamento licitamente admitido.

Em outras situações, entretanto, pode não ser vinculado o enquadramento, havendo uma margem de conveniência e oportunidade reservada ao juízo da autoridade competente. Mesmo atentando para as especificidades da informação a ser classificada, sujeitando-as ao ordenamento vigente, após a interpretação não se tem uma única possibilidade de conduta outorgada ao agente público com competência classificatória. Há uma liberdade para que ele considere conveniência e oportunidade políticas e/ou administrativas na gestão das informações públicas, fazendo um juízo que não é somente de legalidade e submissão dos fatos ao ordenamento. Trata-se, aqui, de situações em que há discricionariedade a ser exercida pela autoridade competente, sem que resvale no arbítrio e sem que ignore os limites vinculados da sua atribuição discricionária.

Não há dúvida quanto à complexidade de se enquadrar como vinculada ou discricionária, em cada situação, a competência classificatória de informações públicas nos termos do artigo 24. Também não se pode ignorar a grande responsabilidade que pesa sobre as autoridades a quem se permite o exercício dessa atribuição. Daí a importância de se atentar para a previsão, em cada esfera da federação, daqueles que poderão classificar uma informação como ultrassecreta, secreta ou reservada.

A esse propósito, cumpre sublinhar que, por força da autonomia política dos entes da federação, é competência de cada pessoa federativa determinar quem, no seu quadro de pessoal, poderá classificar uma informação pública de modo a afastar a regra da publicidade. Assim, cabe à União estabelecer quem poderá classificar uma informação como ultrassecreta, secreta ou reservada no âmbito federal, cabe ao Estado fazê-lo no tocante aos seus agentes públicos e em sua esfera, bem como ao Município em relação ao seu quadro de pessoal, no nível local.

Atentando para a Lei Federal nº 12.527/2011, tem-se no artigo 27 regra que determina a competência classificatória no âmbito federal: a) grau ultrassecreto: Presidente, Vice, Ministros de Estado (autoridades com mesmas prerrogativas), Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior; b) grau secreto: autoridades mencionadas acima (alínea “a”) mais os titulares de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista; c) grau reservado: autoridades mencionadas acima (alíneas “a” e “b”), mais quem exerça função de direção, comando ou chefia, nível DAS 101 5 ou superior (grupo direção e assessoramento superiores) ou hierarquia equivalente (regulamentação do órgão ou entidade).

Nos termos do § 1º do referido artigo 27, tanto a competência para classificar uma informação como ultrassecreta quanto secreta pode ser delegada pela autoridade responsável a agente público, inclusive em missão no exterior, vedada a subdelegação. Não há, na Lei nº 12.527/2011, autorização expressa para se delegar a classificação de documento reservado.

Sobre a previsão de competência em lei e as condições para sua delegação, cabem algumas considerações doutrinárias sobre os institutos.

 

3. A competência do agente público e a figura da delegação

Para que um agente público possa praticar um ato administrativo como o de classificação de uma informação é preciso que, além da capacidade, ele tenha competência específica para a atividade pública desenvolvida. Define-se competência como um conjunto de atribuições que se reconhece ao Estado e que se atribui, de modo específico, aos seus agentes públicos, a fim de que um determinado feixe de deveres possa ser exercido pelo agente que realiza a atividade administrativa. No Direito Administrativo, não basta a capacidade (titularidade de direitos e obrigações passíveis de serem exercidas, por si ou por terceiros), sendo necessário que o sujeito tenha competência (poderes conferidos pela ordem jurídica para o desempenho de funções específicas).

O doutrinador Edmir Netto Araújo explicita, sobre o tema:

“1. Competência não se presume, porque requer sempre texto legal expres­so, ao contrário da capacidade, que é regra, sendo exceção a incapacidade; esta sim exige previsão expressa; 2. Em conseqüência, competência é improrrogável e intransferível, salvo disposição legal também expressa, que pode ser a avocação ou a delegação, de acordo com o ordenamento jurídico hierárquico, mas o exercício da capacidade pode ser, por exemplo, objeto de mandato; 3. O exercício da competência é obrigatório (princípio do poder-dever do administrador público), ao passo que o exercício da capacidade é faculdade que fica ao arbítrio do particular; 4. Por tal obrigatoriedade, competência é irrenunciável e intransigível, não podendo ser objeto de pactos ou acordos que lhe comprometam ou reduzam o exercício, como é comum nos atos que envolvam capacidade dos particulares.”[1]

Atentando para estes ensinamentos, é necessário que a pessoa política ou administrativa e, cumulativamente, o próprio agente público tenha recebido, explícita ou implicitamente do ordenamento, uma quantidade definida de poder, para editar com validade aquele ato administrativo. De fato, competência requer previsão normativa, seja constitucional, infra-constitucional, regulamentar e/ou regulatória. O fundamental é que se tenha uma norma que seja a origem do poder em nome de que o ato realizar-se-á.

É o administrativista José dos Santos Carvalho Filho quem explicita a possibilidade de previsão de competência em lei ou em ato normativo secundário da Administração Pública:

“Em relação a órgãos de menor hierarquia, pode a competência derivar de normas expressas de atos administrativos organizacionais. Nesses caso, serão tais atos editados por órgãos cuja competência decorre de lei. Em outras palavras, a competência primária do órgão provem da lei, e a competência dos segmentos internos dele, de natureza secundária, pode receber definição através dos atos organizacionais. Pode-se firmar, assim, a conclusão de que a competência administrativa há de se originar de texto expresso contido na Constituição, na lei (neste caso, a regra geral) e em normas administrativas, como, aliás, bem sintetiza CASSAGNE.”[2]

Tanto a capacidade quanto a competência decorrem do ordenamento incidente em dada realidade (regra constitucional, legal ou normativo-administrativa) e são aspectos vinculados do ato administrativo. Como lembra Alexandre Santos de Aragão, invocando o magistério de Caio Tácito:

“Não há, em direito administrativo, competência geral ou universal: a lei preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o momento do exercício da atribuição do cargo. Não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito. A competência é sempre um elementos vinculado, objetivamente fixado pelo legislador’.

Todavia, na prática e de acordo com a visão mais atualizada do princípio da legalidade, e ressalvados os casos de reserva legal absoluta, as leis não são tão detalhistas assim, sendo muitas vezes atribuídas competências de forma geral, e mais comumente ainda por regulamentos administrativos organizativos ou regimentos internos.”[3]

A possibilidade de se ter competência explicitada em atos normativos do Chefe do Executivo e de outros órgãos e entidades da Administração Pública coloca em questão a intransferibilidade, inderrogabilidade e improrrogabilidade das atribuições públicas. De fato, em princípio as competências são irrenunciáveis (de exercício obrigatório), intransferíveis, inderrogáveis, improrrogáveis e imprescritíveis. Contudo, é claro que os institutos da delegação e avocação de competência são exceção a tais exigências. No âmbito federal, as regras gerais sobre a delegação e avocação encontram-se na Lei nº 9.784/99 (artigos 11, 12, 13 e 15), sendo certo que cada nível federativo deve editar diplomas que normatizem ambas figuras.

Especificamente sobre o poder de delegar competência (em que o superior transfere ao inferior uma competência que inicialmente era dele), tem-se no âmbito federal, o artigo 11 da Lei de Processo Administrativo fixando irrenunciabilidade de competência, “salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos”. Por força do citado dispositivo, para haver delegação e avocação, é preciso haver lei que permita. Já o artigo 12 do mesmo diploma legal, há possibilidade de delegação “se não houver impedimento legal”. Ou seja, o artigo 12 admite a delegação sempre que não houver lei proibindo a transferência da competência ao inferior hierárquico.

Não há dúvida que as regras dos artigos 11 e 12 da Lei Federal nº 9.784 são distintas. Outrossim, tem-se que, nos termos do artigo 13 do mesmo diploma, não é possível a delegação de atos de caráter normativo, de decisão de recurso administrativo e de competência exclusiva. Diante desse sistema normativo, a conclusão majoritária é no sentido de que prevalece a possibilidade de delegação se não há proibição legal (como já existe, p. ex., no artigo 13 da Lei Federal nº 9.784). Nesse sentido, entende-se que prevalece a regra do artigo 12 da Lei de Processo Administrativo Federal, observadas as proibições do artigo 13.

Especificamente quanto ao tratamento dado à matéria pela Lei de Informação Administrativa, tem-se que o § 1º do artigo 27 expressamente determinou que a competência para classificar informação como ultrassecreta e secreta “poderá ser delegada pela autoridade responsável a agente público, inclusive em missão no exterior, vedada a subdelegação”. No âmbito federal, portanto, a própria Lei nº 12.527/2011 expressamente assegurou a prerrogativa das autoridades com competência prevista nos incisos I e II do artigo 27 transferirem a atribuição classificatória no nível ultrassecreto e secreto aos inferiores hierárquicos.

Em situações dessa natureza, cumpre reconhecer que a legislação deu uma liberdade de gestão à autoridade superior a quem cabe, discricionariamente, eleger se exercerá sua competência diretamente ou se preferirá transferi-la ao(s) inferior(es). Essa opção pode ser feita caso a caso, por meio de decisões individualizadas (atos administrativos em sentido restrito que veiculem ordens específicas), ou abstrata e aprioristicamente, utilizando-se de instrumentos normativos (como Decreto do Chefe do Executivo ou, ainda, instruções normativas, resoluções, portarias de outras autoridades ou órgãos públicos). Ambas alternativas decorrem do poder de gestão, mediante ordens gerais ou individualizadas, inerente à hierarquia superior.

O Decreto Federal nº 7.724, de 16 de maio de 2012, diante da liberdade de delegação outorgada pela lei, optou no § 1º do artigo 30 em vedar a delegação de competência de classificação nos graus de sigilo ultrassecreto ou secreto. Admitiu, no § 2º do artigo 30, que fosse delegada competência classificatória para o grau reservado pelo dirigente máximo do órgão ou entidade em favor de agente público no exercício de função de direção, comando ou chefia. Conclui-se que, diante da discricionariedade abstratamente prevista na Lei Federal nº 12.527/2011, a Chefia do Executivo, no exercício do poder de gestão inerente à hierarquia, optou por renunciar à liberdade outorgada no âmbito federal e determinou, em ato geral, abstrato e obrigatório (Decreto), por fixar que a competência classificatória para os níveis ultrassecreto e secreto fosse exercida somente pelos agentes indicados expressamente nos incisos I e II do artigo 27 da LIA. Nenhum vício se identifica na referida opção, tratando-se do mero exercício da discricionariedade política outorgada ao superior hierárquico do Executivo.

Agora está em discussão a mudança da opção feita normativamente na cúpula do Executivo Federal. O Presidente da República em exercício editou o Decreto nº 9.690, de 23.01.2019, para alterar regras do Decreto nº 7.724/2011 que passou a ter a seguinte redação:

“Art. 30. (…) § 1º É permitida a delegação da competência de classificação no grau ultrassecreto pelas autoridades a que se refere o inciso I do caput para ocupantes de cargos em comissão do Grupo-DAS de nível 101.6 ou superior, ou de hierarquia equivalente, e para os dirigentes máximos de autarquias, de fundações, de empresas públicas e de sociedades de economia mista, vedada a subdelegação.

§ 2º É permitida a delegação da competência de classificação no grau secreto pelas autoridades a que se referem os incisos I e II do caput para ocupantes de cargos em comissão do Grupo-DAS de nível 101.5 ou superior, ou de hierarquia equivalente, vedada a subdelegação.

§ 3º O dirigente máximo do órgão ou da entidade poderá delegar a competência para classificação no grau reservado a agente público que exerça função de direção, comando ou chefia, vedada a subdelegação.

§ 4º O agente público a que se refere o § 3º dará ciência do ato de classificação à autoridade delegante, no prazo de noventa dias.”

Decorre da literalidade do atual dispositivo não mais vedação, mas, ao contrário, permissão expressa para delegação de competência classificatória de informações ultrassecretas e secretas, respectivamente, para os servidores comissionados no exercício de DAS 6 ou superior (mais servidores providos em cargos comissionados de hierarquia equivalente, e para os dirigentes máximos de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista) ou de DAS 5 ou superior (mais servidores providos em cargos comissionados de hierarquia equivalente). Referida alteração implica um maior número de agentes públicos com competência para colocar uma informação federal sob sigilo de 25 anos (em se tratando do nível ultrassecreto) ou de 15 anos (para o nível secreto), o que significa no mínimo ampliação, respectivamente, de mais 200 servidores (DAS 6) e 1000 servidores (DAS 5) federais. É exatamente a referida mudança, com expressa possibilidade de delegação, que tem sido objeto de controvérsia.

 

4. A competência classificatória de informações federais como ultrassecretas e secretas, conforme regras atuais (Decreto nº 9.690/19)

O primeiro aspecto que se enfrenta sobre a delegação de competência classificatória admitida após o Decreto nº 9.690/19 para informações ultrassecretas e secretas é a sua conformidade com a legislação federal. A esse propósito, é certo que o entendimento prevalecente quanto à Lei de Processo Administrativo Federal é a viabilidade de delegação se não houver proibição expressa. Insta observar que a Lei de Informação Administrativa não apenas não veda, mas expressamente admite a delegação de competência. Nesse sentido, não se vislumbra ilegalidade por ofensa à Lei Federal nº 9.784, nem à Lei nº 12.527/2011, mas, ao contrário, conformidade com o ao § 1º do artigo 27 da LIA. Prever a delegação de competência insere-se, em princípio, na discricionariedade política do Presidente da República que pode tratar da matéria mediante Decreto.

Em um segundo momento, é preciso enfrentar a normatização especificamente levada a efeito pelo Decreto nº 9.690/2019. Em se tratando de classificação de informação ultrassecreta, o que se permitiu foi o exercício da competência classificatória pelos servidores comissionados providos em cargos DAS 6 ou superior, ou de hierarquia equivalente, e para os dirigentes máximos de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Muito além do número de servidores que podem ter a si delegada a competência classificatória, é preciso aferir a razoabilidade e a proporcionalidade de se legitimar que tais autoridades e servidores possam fazer juízo sobre informações que mereçam o qualificativo de “ultrassecretas” no âmbito federal. O mesmo questionamento vale para a classificação de informações secretas, delegável para servidores comissionados DAS 5.

Registre-se que todo ato normativo como Decreto, em relação ao conteúdo, deve obediência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Em caso de excessos ou insuficiências à luz do interesse público, cabe o controle de constitucionalidade negativo, afirmando-se a contrariedade a princípio implícito da CR. Assim sendo, se se entender que um número significativo de autoridades que possam ter a si delegada a atribuição de colocar uma dada informação sob sigilo de 25 ou 15 anos contraria a proporcionalidade e a razoabilidade, o dispositivo regulamentar qualifica-se como inconstitucional materialmente. Isso porque a discricionariedade política exercida em sede de Decreto não atendeu a exigência de equilíbrio entre o meio adotado (delegação de competência) e o fim a ser atingido (interesse público presente em manter a publicidade como regra e o sigilo como hipótese excepcional justificada) e/ou por impor uma restrição indevida ao núcleo do direito fundamental à transparência e/ou por comprometimento do equilíbrio necessário entre a publicidade e a preservação do sigilo governamental, dentro de limites de razoabilidade.

No caso ora em exame, há quem entende ser razoável a delegação de competência pelo Presidente da República para as autoridades indicadas. Com a devida vênia, divirjo. Em se tratando de exceção à publicidade determinada constitucionalmente (artigo 37, caput da CR) e reiterada na Lei Federal nº 12.527/2011, é preciso que a procedimentalização das suas exceções não venha comprometer o próprio conteúdo da transparência indispensável à realidade administrativa. Estabelecer um número significativo de agentes públicos com poder de colocar uma informação federal sob sigilo por 25 ou 15 anos é um modo indiscutível de afastar a publicidade e sem qualquer controle repressivo possível “a posteriori”. Formal e abstratamente a publicidade mantém-se como regra, mas na realidade federal cria-se um sistema capaz de a excluir e – pior! – sem qualquer viabilidade de controle externo a quem exerceu a competência classificatória.

Isso porque uma crítica antiga vigente quanto à competência classificatória das informações públicas segue valendo para o atual ordenamento: a possibilidade de os gestores classificarem documentos como ultrassecretos e secretos na prática torna a informação inacessível (ou mesmo dizê-la inexistente ou indisponível). Isso porque, a partir da classificação, não se tomará mais conhecimento do seu teor. A autoridade afirma “é ultrassecreto” e, à obviedade, os órgãos de controle como Ministério Público, Corregedorias, Controladoras e outros não terão acesso ao juízo para aferir a constitucionalidade e legalidade do juízo feito.

Observe-se que a classificação e a decisão nos termos do art. 28 da LIA formalizam-se com assunto da informação, fundamento da classificação (conforme critérios legais), indicação do prazo de sigilo contado em anos, meses ou dias ou evento que defina termo final e autoridade que classificou:

“A classificação de informação em qualquer grau de sigilo deverá ser formalizada em decisão que conterá, no mínimo, os seguintes elementos:

I – assunto sobre o qual versa a informação;

II – fundamento da classificação, observados os critérios estabelecidos no art. 24;

III – indicação do prazo de sigilo, contado em anos, meses ou dias, ou do evento que defina o seu termo final, conforme limites previstos no art. 24; e

IV – identificação da autoridade que a classificou.”

Frise-se que a decisão que classificou uma informação federal tem o mesmo grau de sigilo da informação classificada, por determinação do parágrafo único do artigo 28 da Lei Federal 12.257. Daí se infere que, de fato, não há como órgãos de controle terem acesso ao conteúdo da informação e/ou da classificação, o que impede o controle de juridicidade das competências exercidas.

Na ADI nº 4.077, ajuizada pelo então Procurador Geral da República em 19.05.08, foram impugnados dispositivos que localizam no âmbito do Executivo, de maneira autocrática, o processo decisório quanto à classificação dos documentos públicos:  “Note-se que os artigos em questão transferem ao Executivo o poder de classificar as categorias de sigilo e impor as restrições a seu acesso. Não é o próprio Executivo quem detém a quase totalidade de dados históricos e políticos que deveriam ser franqueados ao público? Não é ao Executivo que se vinculam as diversas agências de inteligência? Não é o Executivo a quem interessa diretamente o segredo, sob as mais diversas inspirações e móveis? Não é o Executivo o detentor perpétuo (e recalcitrante) das raisons d’état? Como, então, a ele delegar essa tarefa que acaba por definir o (e interferir no) núcleo essencial do direito fundamental à informação?”

Alguns exemplos de problemas na classificação verificaram-se na CPI dos Correios, em que foram apuradas que muitas informações bancárias vinham com o carimbo de sigiloso, e no momento do manuseio das informações, havia até cópias de matéria de jornal, que alguém carimbou como sigilosas.

Ampliando o perigo para o significativo número de servidores comissionados que agora podem receber delegação para classificar informação federal como ultrassecreta e secreta, tem-se como desproporcional e desarrazoado o sistema de competências delineado por meio do Decreto Federal nº 9.690/2019.

Com reiteradas vênias dos entendimentos contrários, entende-se manifesta a inconstitucionalidade da nova redação atribuída aos §§ 1º e 2º do artigo 30 do Decreto Federal nº 7.724/2012 pelo Decreto Federal nº 9.960/2019.

 

[1]ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 435-436.

[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15ª  ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 93.

[3]ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria Geral dos atos administrativos – uma releitura à luz dos novos paradigmas do direito administrativo in Os caminhos do ato administrativo. MEDAUAR, Odete. SCHIRATO Vitor Rhein (Organizadores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 45-46.

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