2019: perspectivas e limites (concepção liberal de Estado, dever de progressividade, proibição de retrocesso social, solidariedade e mínimo existencial)

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1) Perspectivas de medidas para 2019

O ano de 2019 inicia com perspectivas de mudanças significativas em diversas áreas do Direito Administrativo brasileiro. A posse de um novo governo federal com política liberal anunciada traz o ressurgimento de temas como privatizações, maior volume de concessões e parcerias público-privadas, o que também exigirá discussões a propósito das funções de que o Estado não pode se demitir, bem como a juridicidade de extinção de órgãos e de entidades administrativas, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista.

Destaca-se, aqui, parâmetros vinculantes da atuação do Estado que limitam atividades legislativas e administrativas em especial em relação aos direitos sociais, de natureza fundamental, protegidos na Constituição da República. Serão analisados especificamente neste artigo o dever de progressividade, vedação de retrocesso social, solidariedade e garantia do mínimo existencial.

 

2) Progressividade e proibição de retrocesso social

Considerando referências comuns no Direito Comparado para orientar a hermenêutica necessária a cada uma das medidas que se anteveem, inclusive de reforma da estrutura do Estado e mutação nas atribuições públicas executadas na realidade administrativa, destaca-se a ideia de progressividade e a de proibição de retrocesso.

O dever de progressividade encontra-se previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) cujo artigo 2º estabeleceu uma obrigação de realização progressiva, a significar o dever estatal de tomar todas as providências possíveis, nos limites dos recursos disponíveis, com escopo de alcançar crescentemente a mais completa realização desses direitos.  A obrigação estatal de ampliar as possibilidades de efetivação dos direitos sociais corresponde, assim, ao dever de progressividade, o que impõe que os recursos existentes sejam direcionados, da melhor maneira possível, à consecução dos direitos sociais, mesmo porque a satisfação dos direitos sociais supõe uma certa gradualidade, com obrigação realização do direito ao mais alto nível eficientemente possível. Essa a lição doutrinária que veda a inércia dos poderes públicos em relação à superação de carências e à construção do bem-estar, impondo a atuação positiva do Estado no enfrentamento dos óbices à plena eficácia prestacional dos direitos.[1]

O administrativista mineiro Eurico Bitencourt Neto é claro ao explicitar que “A sujeição a um regime de progressividade de realização decorre da imposição constitucional do bem-estar e também de normas transnacionais sobre direitos fundamentais, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” e complementa:

“Tal regime de progressividade supõe a constatação de que direitos a prestações dependem de condicionantes fáticas, em especial recursos financeiros, nem sempre disponíveis no montante necessário a sua plena eficácia, o que inviabiliza uma imediata instauração de uma sociedade de bem estar, notadamente em sociedades marcadas por graves desigualdades sociais.

Por outro lado, o regime de progressividade ou gradualidade significa uma vedação de inércia dos poderes públicos em relação à superação de carências e à construção do bem-estar, impondo a atuação positiva do Estado no enfrentamento dos óbices à plena eficácia prestacional dos direitos sociais. Em outras palavras, o reconhecimento de condicionantes fáticas não pode esvaziar a fundamentalidade de posições ativas referentes a prestações materiais, o que significa que ao Estado se impõe a promoção do progresso social, elegendo prioridades e potencializando recursos.

Ao regime de progressividade também corresponde a vedação de retrocesso desproporcional dos direitos sociais.”[2]

Malgrado divergências doutrinárias quanto ao seu “status”, entende-se que a proibição de retrocesso social é um princípio constitucional cujo objetivo é manter um estado de coisas já conquistado no ordenamento jurídico, evitando a sua supressão arbitrária e induzindo o avanço na proteção dos direitos e garantias consagrados. Segundo doutrina especializada sobre a matéria,

“Além do instrumento da proibição de insuficiência em matéria das políticas públicas que veiculam Direitos Fundamentais, à luz do artigo 60, parágrafo quarto, da Constituição Federal, que estabelece as cláusulas pétreas do sistema jurídico brasileiro, é possível indicar a vedação do retrocesso como outro instrumento importante para a garantia do desenvolvimento social, (…)

A vedação do retrocesso, porém, possui uma conotação que vai além das garantias expostas, pois que ela se volta ao impedimento, como instrumento jurídico de bloqueio, de atos não retrocessivos, mas prospectivos, do Poder Público que possam gerar retrocesso na intensidade do atendimento de Direitos Fundamentais, prestados pelo Estado. Em outras palavras, o mecanismo da proibição do retrocesso se destina à exigência de desenvolvimento ou, ao menos, da manutenção dos níveis gerais de proteção social alcançados pela atuação do Estado.” [3]

Não se trata de defender a vedação absoluta de proibição de retrocesso, sob pena de não ser possível atendimento das demandas sociais, econômicas e culturais, até mesmo em face da limitação de recursos públicos, nem mesmo se busca que tal princípio implique em transmutar todas as normas ordinárias em constitucionais. Trata-se de aceitar que “a supressão pura e simples da norma concretizadora do direito fundamental social pode representar a própria extinção do direito, em flagrante descumprimento ao poder constituinte originário”.[4] Nessa perspectiva, vinculam-se os Poderes Públicos numa perspectiva negativa, a saber, de abstenção de atos legislativos e administrativos contrários às normas de direitos fundamentais, o que implica interdição de abolir ou tentar abolir, material ou legislativamente, normas concretizadoras de direito fundamental, no sentido de levarem ao aniquilamento puro e simples, sem compensação, das políticas públicas. Também o Judiciário não pode aplicar atos contrários à Constituição, de modo especial ofensivamente aos direitos sociais, tendo em vista a natureza da proibição de retrocesso como direito fundamental, verdadeiro princípio implícito (mandamento de otimização), já fixado pelo STF (RE 410.715-5-SP). O dever em tese é “efetivar-se na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas, para a realização progressiva do projeto de modernização e de promoção da justiça social”, cabendo ponderação que preserve o nível de concretização legislativa já alcançado.[5]

Um dos principais estudos sobre a matéria foi realizado pela administrativista mineira Luísa Cristina Pinto e Netto que aponta a existência de um princípio implícito de proibição de retrocesso social com fundamento: a) na supremacia da Constituição; b) no postulado de máxima eficácia das normas de direitos fundamentais; c) nos princípios estruturantes do Estado Constitucional; d) na internacionalização dos direitos fundamentais. Invoca, ainda: I) a dignidade da pessoa humana, valor prévio ao Estado, mas reconhecido como norma do ordenamento, com caráter de princípio que impõe preservação e promoção, proíbe condutas estatais contrárias à sua preservação e impõe condutas estatais necessárias para sua promoção; II) normas de direitos fundamentais sociais, positivadas num modelo combinado de regras e princípios (vinculação à busca da máxima eficácia, da progressividade, vedando quer excesso arbitrário, quer proteção deficiente); III) princípios estruturantes do Estado Constitucional: juridicidade,  democracia, socialidade,  normas internacionais recepcionadas com status constitucional e que garantem direitos sociais, econômicos e culturais e impõem os deveres correlatos ao Estado, exigindo progressividade e vedando condutas estatais retrocessivas. Advertindo que o princípio não pode assumir caráter absoluto (como qualquer outro princípio jurídico), sob pena de petrificar a ordem jurídica em prejuízo dos próprios direitos fundamentais e elevar quase ao infinito os conflitos, explicita que para haver retrocesso legítimo:

“a) o retrocesso não esvazia o núcleo essencial do direito social, preservando-se sua eficácia prestacional essencial

b) o fim visado com o retrocesso é fim compatível com a máxima eficácia do sistema de direitos fundamentais e com o sistema constitucional;

c) o retrocesso é um meio apto a atingir o fim visado; a medida se mostra idônea;

d) o retrocesso foi determinado em comparação com outras alternativas mais gravosas para o direito social, para o sistema de direitos fundamentais e para o sistema constitucional; a medida resulta necessária;

e) o retrocesso foi determinado considerando a intensidade da restrição do direito social relativamente ao favorecimento do bem a que se visa proteger; a medida resulta proporcional;

f) o retrocesso não é arbitrário à luz da igualdade;

g) o retrocesso se coaduna com a segurança jurídica e com a proteção da confiança, sendo previstas, se for o caso, normas de transição ou compensações indenizatória;

h) o retrocesso foi determinado no bojo de medidas voltadas ao aproveitamento pleno e otimizado dos recursos disponíveis, inserido em políticas públicas adequadas às tarefas constitucionalmente previstas;

i) o retrocesso, segundo as normas aplicáveis, conforma-se à participação social na definição de políticas públicas.”[6]

Denota-se, assim, que para o retrocesso ser legítimo deve inserir-se em política pública planejada, que justifique a medida em prol do melhor aproveitamento dos recursos do Estado, não só financeiros, bem como fomente interação com a sociedade civil, não devendo ser desconhecido o nível internacional de cooperação.

Nesse sentido, afirma-se a proibição do retrocesso social arbitrário, atualmente “se não significa absoluta vedação de marcha atrás ou de modificação da regulação legislativa do direito fundamental, proíbe seja reinstalado o vazio normativo que inviabilize o exercício de dimensões de eficãcia do direito social.” [7]

O Supremo Tribunal Federal, ao decidir que não houve ofensa à proibição de retrocesso social com o novo tratamento dado ao DPVAT, assentou as seguintes premissas pelo voto do Ministro Relator:

“O princípio da vedação ao retrocesso social revela-se, na compreensão de Felipe Derbli, como uma:

‘garantia contra a ação erosiva do grau de concretização infraconstitucional de um direito social fundamental definido em uma regra ou princípio constitucional, praticada diretamente pelo legislado, ou mesmo indiretamente pelo titular do Poder Constituinte Reformador, atribuindo-se a esse direito social o status negativo jusfundamental e, com isso, modalidades de eficácia jurídica geralmente atribuídas aos direitos de defesa. (…) Constitui o núcleo essencial do princípio da proibição de retrocesso social a vedação ao legislador de suprimir, pura e simplesmente, a concretização de norma constitucional que trate do núcleo essencial de um direito fundamental social, impedindo a sua fruição, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios. É defeso o estabelecimento (ou restabelecimento, conforme o caso) de um vácuo normativo em sede legislativa. (…) Por óbvio, é permitido ao legislador rever as leis editadas, mas o fundamento para uma reformatio in pejus, de acordo com as circunstâncias fáticas em que se a realiza, deve ser, mediante um juízo de proporcionalidade, suficiente para prevalecer sobre um grau de concretização legislativa que já tenha alcançado o consenso básico na sociedade’.

Segundo as valiosas lições de Canotilho:

‘A proibição de retrocesso social nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. (…) O princípio da proibição de retrocesso social pode formularse assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (…) deve considerarse constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial.’ (…)

E ainda Celso de Mello:

Como se sabe, o princípio da proibição do retrocesso impede , em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, “Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais”, 1ª ed./2ª tir., p. 127/128, 2002, Brasília Jurídica; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 320/322, item n. 03, 1998, Almedina; ANDREAS JOACHIM KRELL, “Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha”, p. 40, 2002, Sergio Antonio Fabris Editor; INGO W. SARLET, “Algumas considerações em torno do conteúdo , eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988”, “in ” Interesse Público, p. 91/107, n. 12, 2001, Notadez; THAIS MARIA RIEDEL DE RESENDE ZUBA, “O Direito Previdenciário e o Princípio da Vedação do Retrocesso”, p. 107/139, itens ns. 3.1 a 3.4, 2013, LTr, v.g.).

Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos. (…) Os fundamentos que venho de referir, concernentes à alegada transgressão ao postulado que veda o retrocesso social, não se mostram aplicáveis ao caso ora em julgamento, que trata de tema em relação ao qual, segundo penso, revela-se destituída de pertinência a invocação do princípio em causa. Sendo assim, em face das razões expostas, e enfatizando, uma vez mais , que a conversão em lei não convalida eventuais vícios de inconstitucionalidade que possam afetar a medida provisória, acompanho o voto do eminente Relator e, em consequência, julgo improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade.”[8]

O Voto do Ministro Celso de Mello no Ag. Regimental STA 175-CE (Informativo 582 do STF) é referência a propósito da matéria:

“Refiro-me ao princípio da proibição do retrocesso, que, em tema de direitos fundamentais de caráter social, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (…)

Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à saúde), impedindo, em conseqüência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses — de todo inocorrente na espécie — em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais.

Lapidar, sob todos os aspectos, o magistério de J. J. GOMES CANOTILHO, cuja lição, a propósito do tema, estimula as seguintes reflexões (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 1998, Almedina, p. 320/321, item n. 3):

“O princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição de retrocesso social.

A idéia aqui expressa também tem sido designada como proibição de ‘contra-revolução social’ ou da ‘evolução reaccionária’. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A ‘proibição de retrocesso social’ nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o principio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. O reconhecimento desta proteção de direitos prestacionais de propriedade, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação no núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente aniquiladoras da chamada justiça social. Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito a subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma (…).

De qualquer modo, mesmo que se afirme sem reservas a liberdade de conformação do legislador nas leis sociais, as eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei da segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura a simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.”

 

3) A solidariedade qualificadora do Estado brasileiro

Entende-se os conceitos de “Estado Solidário” e “Direito Fraterno” como vinculantes da estrutura pública nacional desde a elaboração das políticas públicas, atividade legislativa e administrativa, sendo verdadeiro desafio fixar regras mínimas de convivência entre os membros da sociedade, bem como os deveres públicos a se concretizar.

Conforme doutrina atualizada, “A solidariedade corresponde ao pertencimento a um determinado grupo social, do que resulta compartilhar os benefícios, mas também a responsabilidade nas dificuldades, o que identifica a idéia de fraternidade. (…) A solidariedade supõe, portanto, não apenas vínculo com a sociedade, pelo que a todos cabe o dever de contribuir para sua superação. A garantia de suficiência de recursos necessários ao respeito pela dignidade humana passa a ser um problema social, e não mais exclusivamente individual e, para além disso, uma questão jurídica, levada às Constituições sob a forma de direitos e deveres fundamentais.”[9]

De fato, é entendimento doutrinário contemporâneo o de que um Estado em que prestações realizam-se da forma mais democrática possível atinge a dimensão da solidariedade que se espera em uma sociedade livre, justa e fraterna. Tem-se um Estado em que o sentimento de corresponsabilidade e de auxílio mútuo repercute na consecução de atividade sem a qual não há sequer a dignidade mínima determinada pela Constituição. Perseguir esse objetivo é tarefa da Administração no exercício da atividade de planejar e decidir as ações públicas. Afinal, não há dúvida quanto ao impacto da solidariedade nos direitos fundamentais. Trata-se de um novo paradigma de compreensão da organização do Estado Constitucional (externo e interno).[10]

Nessa porfia, a solidariedade como alicerce de direitos fundamentais, em especial dos direitos a prestações materiais que asseguram o mínimo para uma existência digna e que propiciam uma mais justa distribuição de rendas e riquezas. Segundo Hans-Georg Gadamer, “Se não aprendermos a virtude da hermenêutica, isto é, se não reconhecermos que se trata, em primeiro lugar, de compreender o outro, a fim de ver se, quem sabe, não será possível, afinal, algo assim como solidariedade da Humanidade (…) então – se isso não acontecer -, não poderemos realizar as tarefas essenciais da Humanidade, nem no que tem de menor nem no que tem de maior”.[11]

Há décadas estudiosos denunciam os perigos de, no direito moderno, vivermos o “reino do indivíduo, com a “absolutização do eu” como característica típica da pós-modernidade. Essa verdade, indiscutível, nos coloca diante de uma realidade na qual o paradigma do “interesse geral” como orientador da gestão pública torna-se de difícil percepção objetiva. Vivemos a crise do vínculo cívico, como bem diagnostica Jacques Chevallier: “O vínculo político encontra apoio, assim, num civismo que constitui a sua verdadeira substância. Ora, essa dimensão cívica tornou-se problemática devido a uma crise dos mecanismos clássicos de integração à Cidade e da erosão dos contextos ao redor dos quais ela se produz. (…)

Primeiramente, a explosão do individualismo coloca em dúvida o sutil equilíbrio mantido entre o espaço político democrático e a esfera de autonomia individual, que se encontra no núcleo da modernidade: a lógica do desabrochamento individual, que domina não apenas a vida privada, mas ainda determina as formas de investimento na ação coletiva, coloca em novos termos o problema do vínculo social e político e, partindo da ‘governabilidade’, de sociedades nas quais a ‘virtude cívica’ está perdendo velocidade.”[12]

Destarte, o princípio da socialidade caracteriza-se como um dos fins do Estado, “que se organiza para buscar, senão o desaparecimento, ao menos a mitigação das desigualdades na sociedade.” Afinal, o patamar mínimo de um modelo de Estado que se pretenda social está em garantir participação nos bens da vida, buscar a necessária redistribuição e maior equilíbrio na sociedade.[13]

 

4) Mínimo existencial

A doutrina vem definindo o mínimo existencial como “um conjunto de situações materiais indispensáveis à existência digna, condizente não apenas com a sobrevivência física e a manutenção do corpo, mas também espiritual e intelectual, sem o que não se viabiliza a possibilidade de participação dos indivíduos nas deliberações públicas e muito menos a de ser capaz de tomar as rédeas de seu próprio desenvolvimento.”[14] Adverte-se que mínimo existencial não é o mínimo de subsistência. A dignidade da pessoa humana, pela interpretação sistemática da Constituição brasileira, pressupõe a preservação de uma série de valores e bens; o mínimo existencial há de refletir o escopo de realização do ser humano. Sem cair em excessos, devem ser asseguradas condições de alimento, saúde, educação, moradia, segurança, lazer, informação, que, mesmo em termos mínimos, permitam a fruição de uma vida digna, com liberdade e autonomia individual. Segundo Emerson Clève, os direitos sociais não têm a finalidade dar ao brasileiro apenas o mínimo. Aponta a Constituição para a ideia de máximo, mas de máximo possível (o que coloca o problema da possibilidade), em que a reserva do possível opere como imposição de cuidado, prudência e responsabilidade no campo da atividade judicial e competência legislativa. Nessa linha de raciocínio, malgrado o caráter principiológico das normas de direitos fundamentais, há um núcleo mínimo em cada direito social, estabelecido in concreto, segundo as características do próprio direito e em atenção à preservação da dignidade humana, que não pode ser ultrapassado, sob pena de negação do próprio direito. Trata-se de um limite mínimo absoluto, que necessariamente deve ser assegurado pelo Estado, a despeito, inclusive, de eventuais questões orçamentárias: “O mínimo existencial constitui, portanto, um quid a ser imposto sobre o direito fundamental, tanto no sentido de coibir vulnerações pelo Estado ou por terceiros, quanto, numa acepção prestacional, por respaldar a pretensão às condições mínimas de vida digna.” Buscando equilíbrio no exercício da conformação na escolha dos instrumentos e do montante de auxílio em que consistirá a prestação estatal relacionada ao mínimo de existência, moldá-los em função das circunstâncias e dos próprios critérios políticos (princípio democrático) requer observância do pressuposto da igualdade, sendo certo que as escolhas devem assegurar eficácia jurídica suficiente à salvaguarda do direito a um mínimo de existência condigna).[15]

A propósito do mínimo existencial  relativo aos direitos sociais a prestações materiais, “doutrina e jurisprudência brasileiras tendem a admitir, embora ainda não totalmente, a existência de um direito originário às prestações que integrem o mínimo existencial, estabelecido in concreto e por meio da ponderação entre as condições do titular do direito e o estágio de desenvolvimento social e econômico alcançado pela sociedade, superando, com isso, a noção de mínimo à subsistência (mínimo vital).”[16]

No direito comparado, identificam-se direitos fundamentais sociais como integrando o conjunto de “tarefas constitucionais objetivas”, que se traduzem, quanto ao Estado, na determinação de “deveres objetivos”. Assim, por exemplo, na Alemanha, a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal o fixou como um “standard mínimo incondicional” que não deve ser interpretado de forma restritiva; ao contrário, entende-se que deve ser progressivamente fixado e desenvolvido numa perspectiva aberta e casuísta. “Essa ‘garantia de um mínimo social’ – ou ‘standard mínimo’ compreendido como ‘mínimo existencial’ – destina-se a evitar a perda total da função do direito fundamental de forma a que este não resulte ‘esvaziado’ de conteúdo e, deste modo, desprovido de sentido.”[17]

Ainda numa perspectiva histórica, tem-se que, nos anos 60 e 70 do século XX, durante um curto período, o Tribunal Supremo, nos Estados Unidos, mostrou-se receptivo à ideia de que a Constituição protegia, pelo menos, uma parte do chamado “Second Bill of Rights”, isto é, os direitos econômicos e sociais. Declarou que o Estado não podia discriminar “contra” os pobres. Em alguns casos foi mais longe: declarou que o Estado tinha o “dever afirmativo”’ de ofertar aos mais pobres os recursos de que estes careciam para o exercício do direito de voto e do direito de acesso aos tribunais: “Numa palavra, o Tribunal Supremo colocou a eliminação da pobreza e a igualdade como ‘pré-condição’ da ‘democracia’. Alguns constitucionalistas na linha da filosofia política de MADISON, MONTESQUIEU, LOCKE ou PAINE, chegaram a individualizar a consagração de um ‘direito a um mínimo de garantias sociais’ (right to a minimun welfare guarentees)”.[18] Nessa porfia, o objeto típico dos direitos fundamentais sociais constitui-se pelo chamado “mínimo de existência material” como medida de menor grau de protecão “Não apenas o legislador ou a administração se encontram ‘imediatamente obrigados a garantir esse conteúdo mínimo’ como ainda não poderão suprimir totalmente sem contrapartida as disposições legais e administrativas correspondentes.” (p. 94)

Entre nós, reconhece-se não ter sido consagrada explicitamente pela Constituição da República a garantia da salvaguarda do mínimo existencial, ou mínimo vital, sendo ela, pois, delimitada conceitualmente pela doutrina, ora como dado pré-constitucional, ora como direito fundamental decorrente do Estado Social e da proteção à vida, à integridade física e corporal, à dignidade da pessoa humana e a uma série de direitos fundamentais. Definido como um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas, tem a si fixados alguns fundamentos, desde os que derivam da noção de dignidade da pessoa humana até os princípios da liberdade, igualdade, devido processo legal, livre iniciativa, direitos humanos, imunidades e privilégios dos cidadãos. Essa noção fundamenta a exigibilidade de pretensões originárias, é dizer, a exigibilidade de um mínimo à subsistência digna, visto que um mínimo material consubstancia pressuposto de exercício dos direitos individuais e políticos como já reconhecia John Rawls.[19]

No Brasil, doutrinadores reconhecem que há várias decisões que, se não tratam diretamente do direito ao mínimo existencial, contêm fragmentos do seu reconhecimento. Diante de um aparente impasse (de um lado, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe tarefas ao Estado, sob a forma de prestações decorrentes de direitos fundamentais; de outro, tais prestações, para que se concretizem, dependem de interposição legislativa, o que dilui a sua eficácia imediata) definem a ação pública pelo princípio da dignidade da pessoa humana que possui uma reserva de eficácia direta: o direito ao mínimo para uma existência digna:

“Se não há Estado social sem democracia – o que afasta a tentativa de substituição do legislador pelo juiz, por interpretação inconstitucionalmente extensiva do princípio da socialidade -, também não há democracia sem dignidade humana – o que impede que as maiorias eventuais, por ação ou omissão, possibilitem seja ela violentada. Esta vedação, reserva de eficácia do princípio da dignidade humana, se materializa na garantia de um mínimo para uma existência digna, que não é um mínimo de dignidade – já que esta não comporta gradação -, mas um mínimo de recursos ou prestações materiais para que o indivíduo não tenha desrespeitada a qualidade que o faz humano.

(…) O direito ao mínimo para uma existência digna, como já referido, postula, com a mesma força, em relação aos meios materiais necessários: a) defesa contra investidas do Estado; b) proteção contra ameaças de particulares; c) prestações materiais do Estado. Não há dúvida de que se trata de um direito híbrido (…)

O direito ao mínimo para uma existência digna é um direito sobre direitos, vale dizer, não possui conteúdo próprio, distinto e complementar dos demais direitos fundamentais, mas é um direito ao cumprimento do mínimo dos outros direitos fundamentais. (…)

Portanto, a afirmação de que o direito ao mínimo existencial é um direito sobre direitos põe em relevo duas características marcantes: a) trata-se de direito fundamental autônomo; b) trata-se de direito fundamental cujo conteúdo se compõe de dimensões de outros direitos fundamentais. Esta última peculiaridade faz com que se possa qualificá-lo como um direito-condição, reserva de eficácia da dignidade da pessoa humana.”[20]

 

5) Conclusão

Vivemos um momento da estruturação do Estado brasileiro em que foi legitimada mudança nas prioridades a serem normatizadas na legislação, atos regulamentares e regulatórios, bem como realizadas pela estrutura da Administração Pública. Referidas transformações encontram-se sujeitas aos limites do ordenamento vigente, desde regras e princípios constitucionais expressos, até limites principiológicos implícitos, deduzidos e induzidos a partir do texto constitucional. É fundamental que o Parlamento, a estrutura governamental, as autoridades administrativas e controladoras observem as repercussões de tais limites em cada situação concreta, tendo a cautela de motivar o respeito a cada um desses parâmetros, com indicação transparente, precisa e concreta das circunstâncias fáticas e jurídicas que os circundam.

Adaptar as políticas públicas a um novo padrão de Estado legitimado pelas urnas não pode ser confundido com fazer ruir limites constitucionais, nem com impedir evoluções necessárias à sociedade. De fato, qualquer estrutura governamental, em qualquer época, vincula-se ao ordenamento vigente em um Estado de Direito, sendo-lhe imposto o constante, responsável e eficiente aperfeiçoamento.

 

[1] FIGUEIREDO, Marina Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

[2] BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência digna. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 162.

[3] BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 262.

[4] SOARES, Dilmanoel de Araújo. O direito fundamental à edição e a teoria do não retrocesso social. Boletim de Direito Administrativo, novembro de 2013, p. 1215.

[5] SOARES, Dilmanoel de Araújo. O direito fundamental à edição e a teoria do não retrocesso social. Boletim de Direito Administrativo, novembro de 2013, p. 1215-1216.

[6] PINTO E NETTO, Luísa Cristina. O princípio de proibição de retrocesso social. Porto Alegre: livraria do advogado editora, 2010; p. 115-219.

[7] BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência digna. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 163.

[8] ADI nº 4.350-DF, rel. Min. Luiz Fux, Pleno do STF, DJe de 02.12.2014.

[9] BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência digna, op. cit., p. 107-108.

[10] OLIVEIRA JÚNIOR, Valdir Ferreira de. Repensando o Estado Constitucional: controle judicial de políticas públicas através da proibição de retrocesso, inexistência, extinção e deficiência. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte, Fórum, ano 8, n. 29, p. 126;132, abr.-jun./2010.

[11] “Da palavra ao conceito”, in Custódio de Almeida, Hans-Jgeorg Glichinger e Luiz Roden, Hermenêutica Filosófica, p. 25 apud FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 41

[12] CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno, Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, p. 83; 123; 134; 196-197

[13] BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência digna, op. cit., 2010, p. 72

[14] SALAZAR, Andrea Lazzarini, GROU, Karina Bozona. A defesa da saúde em Juízo. São Paulo: Editora Verbatim, 2009, p. 40.

[15] FIGUEIREDO, Marina Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 199-201; 205.

[16] FIGUEIREDO, Marina Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade, op. cit., p.72.

[17] QUEIROZ, Cristina. O Princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 92-93..

[18] QUEIROZ, Cristina. O Princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 93-94.

[19] FIGUEIREDO, Marina Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade, op. cit., p.188-191.

[20] BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência digna, op. cit., 2010, p. 96-97; 100-102; 172-174

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