Requisição Administrativa durante pandemia

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1. Considerações preliminares

A classificação como pandemia da situação mundial decorrente do contágio pelo coronavírus significou, em março de 2020, reconhecer o risco potencial de a doença infecciosa atingir a população mundial de forma simultânea, não se limitando a locais então já identificados como de transmissão interna. No Brasil, os entes federativos declararam situação de emergência em saúde pública, com base na doença respiratória decorrente do COVID-19 que seis meses depois vitimou mais de uma centena de milhares de pessoas.

Especificamente quanto à aquisição de bens e serviços necessários ao enfrentamento de uma crise de inédita magnitude, cumpre destacar a especialidade do regramento veiculado na Lei Federal nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, editada “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”. Destaca-se o artigo 3º, inciso VII que expressamente admitiu a requisição de bens e serviços.

É preciso considerar as especificidades colocadas em razão da pandemia de coronavírus e a complexidade das normas da ordem jurídica incidentes na matéria.

Quando se trata de situação emergencial enfrentada pela Administração Pública, é fundamental que os atos sejam praticados sem qualquer vício, de modo a não ensejar correções que atrasem as providências urgentes ou mesmo danos de difícil reparação posterior.

 

2. A inviabilidade do cumprimento das condições para dispensa de licitação, a hipótese dos preços abusivos e opção pela requisição administrativa

Em se tratando de uma pandemia com repercussão de magnitude sequer mensurável como a do COVID-19, é certo que desde os momentos iniciais os bens indispensáveis às medidas de prevenção não podiam faltar, principalmente equipamentos de proteção individual, insumos para testagem, medicamentos, respiradores e outros equipamentos, serviços e bens necessários aos cuidados da população. Trata-se de repercussão direta da legalidade e da eficiência, com obrigações de atuar resultantes da precaução e da prevenção, exigências orientadoras de situações de emergência, de forma a minorar os prováveis danos ou certos prejuízos que, infelizmente, ainda se impõem em todo o país.

Ademais, em relação às aquisições necessárias à realização de competências finalísticas vinculadas ao enfrentamento da pandemia (ex: distribuição de medicamentos, EPIs e outros bens nas unidades de saúde), verificou-se em dadas situações não ser sequer exequível o trâmite procedimental indispensável à contratação mediante dispensa de licitação, em razão da inexiguidade do prazo disponível pela urgência das ações necessárias. Evitando a equivocada posição de “profeta do acontecido” ou o “olhar pelo retrovisor” com ilusória análise de facilidades inexistentes nas semanas iniciais da pandemia, é preciso reconhecer o Everest de dificuldades impostas aos gestores de todos os níveis da federação: era indispensável “para ontem” um conjunto inimaginável de bens que o mercado sequer disponibilizava por preços razoáveis em quantidade suficiente. Não havia prazo, não havia tempo, não havia oferta. E se mostrava imperioso adquirir e obter a adequada prestação de serviços, sob pena da ameaça do sacrifício de vidas humanas.

Na primeira versão da Lei Federal nº 13.979/20 o artigo 4º veiculou hipótese de “licitação dispensada”, atraindo, segundo maioria doutrinária, o rito procedimental previsto para essa hipótese de contratação direta na Lei Federal nº 8.666/93. Destaque-se a superveniência da Medida Provisória 926 que deu nova redação ao citado dispositivo prevendo ser dispensável a licitação para celebração dos contratos necessários ao enfrentamento da pandemia, sendo estes os termos finais e vigentes atribuídos pela Lei Federal nº 14.035, de 11 de agosto de 2020:  “É dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei.” Foram introduzidas regras procedimentais pela MP nº 926, com redação final fixada pela Lei Federal nº 14.035, determinando-se desde a desnecessidade de estudos preliminares, requisitos do termo de referência ou projeto básico, até autorização para contratação de fornecedores e prestadores de serviço com restrição, p. ex., no tocante à regularidade fiscal. Se parte da doutrina considera que basta observar as regras determinadas pela Lei nº 13.979/20 em vigor, atendendo a redação dos dispositivos em vigor no momento da prática de cada ato, sem que se tenha de observar quaisquer outras exigências como as previstas para contratação direta do Estatuto Geral de Licitações, há estudiosos que defendem a observância das regras específicas do microssistema legislativo editado para o período de pandemia com aplicação subsidiária do procedimento consagrado na Lei Federal nº 8.666. Destarte, havendo regra específica em dado sentido na Lei Federal nº 13.979/20, é obrigatório atender os termos de tal preceito, o que não exclui a viabilidade de incidência das demais regras genéricas da Lei Federal nº 8.666/93 que normatizam a contratação direta como exceção à obrigatoriedade de licitar.

Independente da evolução legislativa e das divergências a propósito do procedimento a ser adotado em caso de licitação dispensável, é certo que em algumas situações, mesmo com a simplificação procedimental máxima, não havia tempo disponível para a Administração Pública realizar a contratação direta. A urgência das semanas iniciais da pandemia, o despreparo mundial para lidar com um contexto desconhecido e ameaçador, a incidência da precaução e da prevenção como princípios que obrigavam o Poder Público a tomar medidas o mais rapidamente possível, tudo exigia a formação de uma infraestrutura inicial mínima, a amparar as atividades sanitárias basilares. Esse o momento em que claramente se identificava razões suficientes para que se ultimassem requisições administrativas como instrumento para alcance da finalidade pública obrigatória.

Entrou em discussão, ainda, outra realidade que se apresentou de modo surpreendente. Em relação a algumas demandas urgentes, como o fornecimento de máscaras em número muito superior ao até então necessário, algumas empresas que dispunham de estoque formado em período anterior à pandemia (e, portanto, com custo de produção não afetado pelo novo contexto) majoraram imediata e significativamente os valores cobrados para contratação. Não se verificaram apenas preços excessivos, mas de fato abusivos, alguns caracterizadores de ilícito penal (art. 4º “b” da Lei 1.521/1951), o que a princípio deixou a Administração Pública diante da seguinte situação: ou adquiria os bens por preços superfaturados ou não os providenciava e deixava o quadro de pessoal das unidades de saúde e a população em maior risco.

Se é verdade que o Brasil se orienta pela livre iniciativa típica de uma economia de mercado, também o é que a Constituição da República, no artigo 174, § 4º, prevê a repressão do abuso do poder econômico que busque o aumento arbitrário dos lucros. Não há dúvida que se aproveitar da necessidade inadiável da Administração Pública para ampliar a margem de lucro entre o custo (reduzido prévio) e o valor (elevado imediata e excessivamente), sem nenhum elemento razoável capaz de justificar tal conduta, caracteriza manifesto comportamento abusivo. Destaque-se que não se tratava de situação na qual se poderia falar em repercussão de elevação do custo de insumos necessários à produção dos bens buscados pelo Poder Público, visto que os bens estavam em estoque com custo de produção anterior intacto. A mudança identificada foi outra: precisamente a intenção de quem detinha o estoque obter lucros excessivos, em claro comportamento abusivo sequer enquadrável na flutuação de mercado. Tem-se, aqui, hipótese consagrada no artigo 36, III da Lei Federal nº 12.529/11 que enumera como infração da ordem econômica, independente de culpa, ato que busque “aumentar arbitrariamente os lucros”, ainda que esses efeitos não sejam de fato alcançados.

À obviedade, diante da ilicitude do comportamento dos fornecedores de bens indispensáveis ao enfrentamento da pandemia e da necessidade premente de proteger a vida e a saúde, restava à Administração Pública evitar a dispensa de licitação que conduziria a contratações por preços extorsivos e providenciar a sua aquisição por um meio capaz de assegurar os objetivos simultaneamente: incorporação ao patrimônio público dos bens necessários para a atividade sanitária das unidades de saúde e pagamento do preço de mercado justo aos titulares bens. Advirta-se que não se trata de intenção de tabelamento ou de violência inadequada às empresas. Não se trata do Estado pretender fixar o “preço máximo que o mercado deve cobrar”, mas de não se tornar refém de um valor injustificado, muito maior do que o até então praticado e sem qualquer causa objetiva capaz de justificar o aumento, analisados os custos e a realidade do negócio. O que se impôs foi uma ponderação pelos gestores entre exigências vinculantes diversas e em situação de confronto, à luz da proporcionalidade e com atenção à falta de tempo para produção de soluções negociadas ou para aguardar a atuação dos órgãos repressivos de controle como CADE, Ministério Público e autoridades policiais.

Não se compreende a recalcitrância doutrinária e mesmo administrativa em reconhecer a natureza excepcional e raríssima desse contexto (dificilmente reproduzível em outro momento histórico). Não estamos na seara do direito econômico em que se discute, v.g., os limites da atuação do CADE, com parte da doutrina defendendo que somente é possível considerar infração à ordem econômica o preço abusivo anticoncorrencial, sendo a “mera exploração” inapta para caracterizar ofensa à Lei Federal nº 12.529/11. Aqui, diversamente, está-se diante do direito contratual pertinente à Administração Pública em que se afigura teratológico e inadmissível permitir que recursos orçamentários terminem sendo empregados no pagamento de preços abusivos, de natureza manifestamente exploratória, como se o Estado não possuísse alternativas para proteger o interesse público primário (o da sociedade, genuinamente) a não ser: a) ou enriquecer indevidamente empresas que praticam cobranças extorsivas em seus negócios; b) ou deixar trabalhadores da saúde e cidadãos desprotegidos sem a proteção  e o tratamento necessários num momento de pandemia. Em linguagem simples: não me venham com teoria econômica de “respeito ao mercado” quando estamos falando de contratos administrativos em cuja celebração está em jogo vidas humanas e um Estado falido sem recursos orçamentários suficientes na maior crise de saúde do último século!

Não se ignora que foi incluído no artigo 4º-E da Lei Federal nº 13.979/20 o § 3º segundo o qual “Os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do § 1º deste artigo não impedem a contratação pelo poder público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, desde que observadas as seguintes condições: I – negociação prévia com os demais fornecedores, segundo a ordem de classificação, para obtenção de condições mais vantajosas; II – efetiva fundamentação, nos autos da contratação correspondente, da variação de preços praticados no mercado por motivo superveniente.” O referido dispositivo autoriza contratação por “valores superiores” que sejam resultado de “oscilações ocasionadas pela variação de preços”, o que não se confunde com permissão para pagar preços extorsivos, não justificados e que não são uma variação razoável do mercado, mas verdadeira prática ilegal extorsiva, passível de repressão nas searas de polícia administrativa e penal.  Uma coisa é, seis meses depois do início da pandemia, ao comprar determinado bem, verificar que ocorreu variação do preço pelo aumento de consumo pela população, pela dificuldade de obtenção de insumos e por inúmeras outras variáveis que, essas sim, são típicas da flutuação de mercado. Outra coisa, bem diferente e que aconteceu país afora, é no início da crise que surpreendeu a Administração Pública, legitimar uma compra superfaturada, com ganhos ilegais de empresa cuja atividade negocial exploratória é danosa ao próprio mercado, ao Estado e à sociedade.

Sendo assim, do ponto de vista estritamente jurídico, se num contexto de gravidade clara a Administração se depara com situações de prática de preços extorsivos ou se não há prazo suficiente nem mesmo para cumprir o procedimento da dispensa de licitação (art. 4º da Lei Federal nº 13.979/2020), é legítimo ao gestor justificar, tecnicamente, a necessidade da aquisição imediata, diante das especificidades do uso que dará aos bens, indispensáveis para medidas fundamentais a serem realizadas pelo órgão. Cabe ao administrador indicar os aspectos da realidade de natureza técnica, orçamentária, sanitária, financeira, inclusive eventuais pesquisas de preços, porquanto é o gestor quem detém capacidade técnica e competência normativa para tal.

Uma vez identificado pela área técnica a) a urgência da aquisição em situação absolutamente extraordinária e sem equivalentes; e b) a inviabilidade de arcar com os preços excessivos orçados ou a ausência de tempo disponível para ultimar o procedimento formal de dispensa de licitação, é necessário examinar a situação fática posta pelo gestor e identificar, juridicamente, a alternativa disponível no ordenamento vigente, à luz da própria ideia de proporcionalidade.

 

2.1. A proporcionalidade como condicionante do procedimento destinado à aquisição de bens pelo Estado

Decorre da proporcionalidade – princípio cuja observância se requer em qualquer Estado Democrático de Direito – a exigência do exercício moderado da competência administrativa. Não pode o Poder Público atuar arbitrária e irracionalmente, estando proibidos o excesso e a insuficiência da ação administrativa, ainda que diante de crises como a que atualmente atinge diversos países. Se não é admissível que o Estado, diante de uma pandemia, mantenha-se inerte em cumprir a obrigação de tomar medidas preventivas e aptas a reduzir o contágio, igualmente não é legítimo reconhecer-lhe a prerrogativa de utilizar meios arbitrários, com violência estatal desarrazoada, que comprometa indevidamente universos jurídicos de terceiros. Em razão da proporcionalidade, impõe-se a conduta adequada, necessária e suficiente na espécie, bem como o dever de perseguir, de modo refletido, o equilíbrio entre a proteção da liberdade individual e dos direitos da coletividade, vale dizer, entre o interesse privado e o interesse público.

Resulta dessa exigência a necessidade de sopesamento dos valores juridicizados no ordenamento em face das circunstâncias concretas, caracterizando violação a este dever quaisquer exageros ou omissões estatais injustificadas. Ao praticar determinada conduta, como adquirir bens, serviços e insumos para combate do coronavírus, deve o agente público tornar concreto o máximo da proteção ao interesse da sociedade no tocante à preservação da saúde e vida da população, sem esquecer do dever de não sacrificar desnecessariamente as garantias asseguradas às pessoas físicas e jurídicas pelo ordenamento vigente.

Na tentativa de delimitar o conceito, Alexy, ao tratar da proporcionalidade, distingue a adequação (se uma dada medida é o meio para levar à finalidade almejada), a necessidade (postulado do meio mais benigno/menos gravoso) e a proporcionalidade no sentido estrito (postulado de ponderação entre meios e fins). Segundo a professora Daniela Mello Coelho:

“A adequação significa que o estado gerado pelo poder público por meio do ato administrativo ou da lei e o estado no qual o fim almejado pode ser tido como realizado situam-se num contexto mediado pela realidade à luz de hipóteses comprovadas. A necessidade, por sua vez, significa que não existe outro estado que seja menos oneroso para o particular e que possa ser alcançado pelo poder público com o mesmo esforço ou, pelo menos, sem um esforço significativamente maior. Também aqui o legislador e a administração devem basear-se em hipóteses plausíveis e/ou comprovadas, que devem estar presentes para que, no âmbito de sua maior ou menor liberdade de arbítrio, estejam autorizados a tomar as medidas que julgarem necessárias.”[1]

Em sentido estrito, é necessário determinar a relação custo-benefício da medida em face do conjunto de interesses em jogo, de modo a ponderá-la mediante o exame dos eventuais danos e dos resultados benéficos viáveis na espécie. Nesse mister, o operador do direito “deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim”.[2]

Aplicando-se tais premissas à hipótese de aquisição de bens e de serviços, denota-se que é medida própria para se chegar à incorporação dos bens ao patrimônio público, de modo a se tornar possível o cumprimento das competências administrativas, uma série de mecanismos e procedimentos. Um deles é a dispensa de licitação a permitir a contratação direta. Também leva à aquisição de bens outros procedimentos, com grau de intervenção e força estatal maior, como é o caso da requisição administrativa e da desapropriação. Todos apresentam o mesmo resultado final: incorporação dos bens ao patrimônio público. A necessidade de se utilizar o meio mais benigno, contudo, afasta a legitimidade de, em situações de normalidade, em princípio e sem atendimento dos requisitos legais/constitucionais, optar por requisitar administrativamente bens ou serviços, quando é viável realizar uma dispensa de licitação. Se o interesse público é atendido com uma ação menos restritiva do direito alheio, é este o procedimento que deve ser escolhido.

Nesse sentido, confira-se o entendimento já exarado pelo TRF da 5ª Região no sentido de dar primazia ao contrato administrativo como via menos restritiva de aquisição de bens necessários ao enfrentamento da pandemia, ainda que a União tenha pretendido requisitar os mesmos bens:

“5. A requisição administrativa tem lugar quando obstada a possibilidade de aquisição de bens pelo Poder Público pelas vias regulares e verificada a existência de conflito entre o interesse particular e o interesse público. Em sendo o mecanismo natural para aquisição de bens móveis pela Administração o contrato administrativo, cujo procedimento, na casuística, está em fase de ultimação pelo Estado do Rio Grande do Norte, não deve a requisição administrativa realizada pela União Federal sobrepor-se ao interesse público defendido na esfera estadual. 6. A requisição administrativa federal de bens e serviços não possui o condão de afetar a competência concorrente e a autonomia dos Estados, Distrito Federal e Municípios nas ações e serviços de saúde voltados ao combate da Pandemia do Covid19.”[3]

Em situações excepcionais, contudo, é possível que o meio “mais suave” – como uma contratação direta autorizada pelo artigo 4º da Lei Federal nº 13.979, p. ex. – não seja capaz de atender a necessidade administrativa, em razão de peculiaridades da realidade em questão. Assim acontece se não há tempo suficiente para realizar os atos que integram o procedimento de dispensa de licitação ou, se na fase de orçamentação para fins de justificar o preço, constata-se a prática de preços muito excessivos, sendo infrutífera a negociação ou mesmo inviável negociar pela ausência de tempo disponível para essa tentativa. Insiste-se ter sido esta uma realidade comum nas semanas iniciais da pandemia em que não havia estoque nem quadro suficiente para atender uma demanda surpreendente nas estruturas de saúde e muito menos tempo para planejar, buscar alternativas, acionar órgãos de controle (como o Ministério Público) e construir outras alternativas, inclusive consensuais. Diante de circunstâncias realmente extraordinárias, tornou-se possível levar a efeito a forma mais restritiva da atuação estatal, procedendo à requisição administrativa no lugar da contratação direta mediante dispensa de licitação, o que restou autorizado, inclusive, pelo artigo 3º, VII da Lei Federal nº 13.979.

Cabia ao gestor justificar as peculiaridades da situação, demonstrando a veracidade dos motivos invocados (ex: documentos comprobatórios da majoração excessiva e injustificada de preços, evidenciando haver estoque nas empresas de bens produzidos com custos reduzidos anteriores à fevereiro de 2020, com clara intenção de cobrança extorsiva já em meados de março de 2020) e indicando os fundamentos normativos para o comportamento adotado. A demonstração seria no sentido de que a ação era necessária (para levar à aquisição dos bens), adequada (o meio utilizado era o mais suave diante das especificidades da realidade) e proporcional (havia equilíbrio entre custo e benefícios, considerando-se as circunstâncias especiais em que se encontrava o órgão, o interesse público que é dever do Estado proteger e a perda da propriedade por parte do antigo titular dos bens, mediante indenização).

Quando se enfrenta uma pandemia, e pela primeira vez de forma tão avassaladora em mais de um século, não se pode ignorar o contexto extraordinário de risco social mundial em que se insere a ação pública. Afinal, tem-se clara a nocividade de se colocar em risco (e em massa) vidas humanas dos mais frágeis (idosos, portadores de comorbidades e obesos), o que representa justificativa de carga coativa que habitualmente se exclui, mas que a própria legislação passou por autorizar expressamente em situações excepcionais como a presente no ano de 2020. Nesse sentido, cogitar de requisição administrativa, diante da impossibilidade de fazer uma contratação direta para adquirir bens indispensáveis ao combate do coronavírus, tem intensidade proporcional à necessária para a proteção do bem jurídico perseguido pela Administração.

A doutrina contemporânea já se pronunciou sobre a matéria:

“Em casos emergenciais, revela-se possível, em tese, a adoção de medidas excepcionais, de forma proporcional e justificada, que restringem a liberdade individual para garantir a saúde pública. Como dizia Hipócrates, considerado o pai da medicina, “para os males extremos, só são eficazes os remédios intensos”. (…) A inércia estatal é indesejada no momento de crise, assim como revela-se vedada a adoção de medidas arbitrárias que extrapolam a proporcionalidade na restrição de direitos individuais. O desafio, como de praxe, é encontrar o ponto médio na ponderação entre as liberdades individuais e a necessidade de proteção da saúde pública.”[4]

Ao buscar esse equilíbrio que se exige entre o interesse público presente na necessidade dos bens e a restrição ao direito de propriedade de uma pessoa ou empresa, cumpre pontuar que a experiência vivida em 2020 consiste numa hipótese rara, em que a necessidade a ser atendida se mostrou desde o início urgentíssima, fazendo com que o tempo de que dispunha o gestor público para finalizar o procedimento administrativo prévio fosse tão exíguo que tentar realizar uma dispensa de licitação diante da emergência de coronavírus, principalmente nos meses iniciais, acarretaria graves danos ao próprio interesse público e comprometeria a vida e a saúde de mais pessoas, além das que foram tragicamente atingidas. Isso principalmente quando se está falando de medicamentos, insumos, serviços médicos e equipamentos de proteção individual essenciais aos doentes e também aos profissionais de saúde sem os quais a letalidade da pandemia aumentaria (são importante grupo de risco, pela alta carga viral a que são submetidos em seu trabalho).

Resulta claro que a proporcionalidade incide também como técnica que, aplicada, permite identificar o cabimento, ou não, da requisição como mecanismo de atender as demandas do Estado em absoluta consonância com sua natureza extraordinária. Se é preciso escolher a forma “menos restritiva” possível de atender a demanda social e com “os menores custos” inclusive quanto ao núcleo de outros direitos (como, p. ex., direito de propriedade e livre iniciativa), daí decorre um o dever de observar uma gradação, iniciando do modo menos restritivo e com menor custo possível ao conjunto de direitos afetados capaz de atender o interesse público primário. Se esse modo é o contrato administrativo, seja mediante uma modalidade tradicional de licitação da Lei nº 8.666, seja pelo pregão previsto na Lei nº 10.520 ou mesmo contratação direta autorizada como dispensa de licitação na Lei nº 13.979, que se firme o acordo com respeito ao procedimento cabível. Se descabido ou inviável o contrato administrativo e há condições para promover a desapropriação, com pedido judicial de imissão provisória na posse, que se cumpram os requisitos do Decreto-Lei 3.365/41 e, ausente acordo quanto ao preço, que seja ajuizada a ação desapropriatória. Já na situação em que não é possível o contrato administrativo, nem a desapropriação, o que é ônus argumentativo e probatório do Poder Público, que se promova a requisição administrativa, com respeito às garantias constitucionais, sem que se possa arguir qualquer inconstitucionalidade apriorística no tocante a um instituto regularmente consagrado na Constituição e na legislação vigente, ordinária e extraordinária para tempos de pandemia.

Frisa-se que a natureza extraordinária da requisição administrativa e a sua incidência na exata proporção em que necessária para satisfazer as demandas relativas ao “perigo público iminente” já vinham sendo proclamadas pelos Tribunais do país, evitando-se qualquer abuso inicial ou na sua prorrogação indevida.[5] E é exatamente o respeito às premissas constitucionais, legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, suficientes para ensejar hermenêutica adequada à cada realidade, que enseja a adoção da requisição administrativa no ordenamento brasileiro.

Fixadas tais premissas, cabe analisar o fundamento constitucional e legal, indicando as normas que autorizam a requisição administrativa e enfrentando o seu regime jurídico.

 

2.2. Da requisição administrativa

O fundamento básico para a aquisição de bens por parte da Administração Pública, em plena pandemia, é viabilizar a realização de medidas objetivas para diminuir o risco de transmissão individual e a propagação do coronavírus internamente e na população, com a potencial redução do número total de casos e a viabilização de absorção dos casos graves pelo sistema de saúde existente, com o menor número de óbitos possível. As providências aptas a diminuir a velocidade da transmissão do COVID-19 exigem uso de insumos, serviços e bens a instrumentalizar e concretizar as ações necessárias.

Destarte, em cumprimento à precaução e à prevenção, é dever do Estado tomar as providências necessárias à garantia dos bens indispensáveis à eficiência dos seus serviços, especialmente na área de saúde pública, desafiada a enfrentar a pandemia de COVID-19. Inadmissível ignorar os riscos de progressão geométrica dos contaminados, a requerer medidas de adequada prevenção.

Em relação àquilo que se deseja proteger com a aquisição dos bens – vida humana e saúde –, trata-se de direitos fundamentais protegidos constitucionalmente. A saúde, além de consagrada como um direito social (artigo 6º da CR), é definida na Constituição como um direito de todos e dever do Estado (artigo 196 da CR). A Lei Federal nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, foi editada exatamente para enfrentar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

Observe-se que, no direito comparado, além das requisições militares, também se admitem requisições “civis” pela Administração Pública, com regime específico adequado às circunstâncias excepcionais que as justificam. O doutrinador Yve Gaudemet analisa a requisição da propriedade dos bens móveis ou somente do seu uso, bem como requisição de pessoas e de empresas cujos serviços apresentem caráter individual ou coletivo, reconhecendo-lhe o caráter de procedimento constritivo no qual se asseguram garantias procedimentais (inferiores às pertinentes à desapropriação), com indenização fundada no princípio da igualdade dos cidadãos quanto aos encargos públicos[6].

Diante desse contexto fático e jurídico, a evidenciar fundamentos hábeis do instituto, a gravidade da situação enfrentada e a normatização da proteção constitucional, legal e regulamentar em vigor, cabe analisar os dispositivos que, no ordenamento brasileiro, tratam da requisição administrativa, senão vejamos:

 

2.2.1. Da base normativa constitucional e legal. Inviabilidade de contratação direta e preço extorsivo.

Em caso de perigo público iminente, o artigo 5º, XXV da Constituição da República prevê a competência de a autoridade pública usar propriedade particular. Especificamente o artigo 3º, VII da Lei Federal nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, admite, para o enfrentamento da pandemia de coronavírus, a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”, sendo que o artigo 3º, § 7º, III consagra a competência dos gestores locais para fazer a citada requisição administrativa.

Destaque-se que o artigo 15, XIII da Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, prevê como competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios que, “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização”. Também o artigo 1.228, § 3º do Código Civil determinou que “O proprietário privado pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente”.

Não se vislumbra, pois, nenhuma divergência normativa ao autorizar que se faça requisição administrativa diante de perigo público iminente (e a pandemia do coronavírus é a situação que, historicamente, melhor já se enquadrou nesse pressuposto).

Tendo em vista a necessidade de obter, com um mínimo de celeridade, bens, serviços e insumos indispensáveis ao atendimento das exigências de prevenção de contaminação e ao cumprimento das finalidades institucionais dos órgãos sanitários, vislumbra-se que, ao se deparar com uma aquisição incompatível com o tempo necessário às providências da contratação direta mediante dispensa de licitação, cabe ao gestor promover a requisição administrativa. É sua obrigação apresentar a motivação suficiente da realidade excepcional enfrentada, com base em dados concretos, preferencialmente embasados em documentos que devem ser juntados ao procedimento.

A própria ideia de que incumbe ao gestor atuar com base em conhecimento científico, sendo necessário tornar realidade a “administração por evidências” afasta medidas teratológicas ou infundadas também quando se trata de requisição administrativa. Ao referendar a medida cautelar na ADI 6343, o Plenário do STF explicitou a necessidade de se ter constrições devidamente fundamentadas: “as medidas de restrição devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada do respectivo órgão de vigilância sanitária ou equivalente.”[7] Confira-se, ainda:

“Assim, muito embora não se discuta, no caso, o poder que detém o chefe do executivo municipal para editar decretos regulamentares, no âmbito territorial de sua competência, no caso concreto ora em análise, para impor tal restrição à circulação de pessoas, deveria ele estar respaldado em recomendação técnica e fundamentada da ANVISA, o que não ocorre na espécie.  A própria decisão cautelar, proferida pelo eminente Ministro Marco Aurélio, nos autos da ADI nº 6.341, aborda a possibilidade da edição, por prefeito municipal, de decreto impondo tal ordem de restrição, mas sempre amparado em recomendação técnica da ANVISA. Fácil constatar, assim, que referido decreto carece de fundamentação técnica, não podendo a simples existência da pandemia que ora assola o mundo, servir de justificativa, para tanto. Não é demais ressaltar que a gravidade da situação por todos enfrentada exige a tomada de providências estatais, em todos as suas esferas de atuação, mas sempre através de ações coordenadas e devidamente planejadas pelos entes e órgãos competentes, e fundadas em informações e dados científicos comprovados. Bem por isso, a exigência legal para que a tomada de medida extrema, como essa ora em análise, seja sempre fundamentada em parecer técnico e emitido pela ANVISA”.[8]

A necessidade de instruir o ato constritivo adequadamente e o motivar impõe-se não importa a razão pela qual a contratação direta se mostrou inviável: a) seja elevação excessiva que consubstancia prática abusiva de preços, não amparada pela excepcionalidade do § 3º do artigo 4º-E da Lei Federal nº 13.979/20 com a redação dada pela Lei Federal 14.035, de 11.08.2020, nem passível de repressão procedimental por órgãos de controle, visto que ausente até mesmo tempo disponível para aguardar os resultados da atividade fiscalizatória e eventualmente punitiva; b) seja a ausência já inicial de tempo hábil para tomar todas as providências exigidas para contratação direta, nos termos da legislação vigente (sempre com atenção para as mudanças na redação da Lei Federal nº 13.979/2020), o que foi situação comum nas primeiras semanas de reconhecimento da pandemia no país.

Quanto à elevação excessiva que consubstancia prática abusiva de preços, reitera-se que, a despeito de o mencionado § 3º do artigo 4º admitir pagamento de preços “ superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços” após negociação prévia com fornecedores e fundamentação em motivo superveniente sobre o aumento praticado pelo mercado, isso não significa permissão para pagamento de preços abusivos no processo de dispensa de licitação. Em primeiro plano, malgrado divergência doutrinária, não se entende que o microssistema normativo da Lei Federal nº 13.979 implica exclusão absoluta que impeça aplicação subsidiária do Estatuto Geral de Licitações, sendo certo que a exigência de que os preços sejam “justificáveis” no procedimento de dispensa de licitação é obrigatória também nos contratos firmados em tempo de pandemia. Nos termos da Lei Federal nº 8.666/1993, o preço ser “justificado” consiste requisito legal expresso e, até a edição Medida Provisória nº 926, de 21.03.2020, vinculante sem exceções previstas no ordenamento. Mesmo após o referido diploma transitório, não se permite a cobrança de preços extorsivos em flagrante contrariedade à proporcionalidade, à moralidade, à boa-fé objetiva e à eficiência administrativa. Isso porque que o §3º do artigo 4º-E (introduzido pela MP 926/2020 e já definitivamente incorporado pela Lei Federal nº 14.035/20) admitir “valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços”, no caso de contratação por dispensa de licitação para enfrentar a pandemia de coronavírus, não altera o rechaçamento absoluto do ordenamento à prática abusiva presente quando são cobrados preços extorsivos. Frise-se: é certa a diversidade entre “mera oscilação razoável de preços” e a prática de preços abusivos, extorsivos, prejudiciais ao interesse público primário e inadmitidos na ordem jurídica. O primeiro (pagar preço que oscilou razoavelmente), comportamento admitido pela atual redação da Lei Federal nº 13.979, jamais pode significar entronizar na ordem jurídica práticas ilícitas, inclusive qualificáveis como crime contra a economia popular. A interpretação sistêmica da ordem jurídica e reconhecimento da força negativa de normas principiológicas de status constitucional não admitem qualquer dúvida a respeito.

Conclui-se que, inclusive em face da Lei Federal nº 14.035/20 (e da MP 926/20), não há que se falar na hipótese de contratação direta mediante pagamento de preços extorsivos, cabendo a requisição administrativa na espécie. O mesmo ocorre quando não há tempo suficiente para proceder aos trâmites procedimentais da licitação dispensável. Afinal, se está evidenciada a inviabilidade de qualquer tentativa de contratação direta mediante procedimento de dispensa de licitação, tem-se autorizada, na realidade extraordinária da pandemia do coronavírus, que se promova a requisição administrativa.

Reitere-se: foi exatamente essa a situação com que se depararam alguns órgãos estaduais, federais e municipais o que levou à edição de atos de requisição administrativa de bens como álcool gel, máscaras, higienizador e outros EPIs indispensáveis aos profissionais de saúde. Em primeiro plano, a demanda pelo insumo nas unidades de saúde era imediata e urgente, principalmente antes dos primeiros picos de contaminação, sendo certa a insuficiência das medidas de distanciamento social que não reduziram adequadamente a velocidade do contágio. Ora, se era necessário distribuir em poucos dias, álcool gel em todo o território nacional, para um mínimo de segurança dos cidadãos e dos profissionais de saúde, era inviável observar o prazo necessário às providências da dispensa de licitação. Ademais, em diversas situações as pesquisas de preços indicavam cobrança de valores excessivos por distribuidores e fabricantes, a ensejar, inclusive, apuração pelo órgão competente (MP) para aferição de crime contra economia popular, motivo por que se foram acionados o Ministério Público, órgãos de controle e autoridades policiais. Cabível, à obviedade, a requisição administrativa, sendo suficientes os motivos fáticos existentes e de enfrentamento impositivo pelo Poder Público.

 

2.2.2. Conceito e objeto. Em discussão a requisição de bens consumíveis e de serviços.

Requisição administrativa é um ato administrativo unilateral e auto-executório que consiste na utilização de bens ou de serviços particulares pela Administração, para atender necessidades em caso de perigo público iminente, mediante pagamento de indenização a posteriori. Não possui a natureza de direito real, posto que dela resulta direito pessoal vinculante do Poder Público e do titular do bem ou do serviço requisitado.

No caso da pandemia de coronavirus, tem-se caracterizado o “perigo público iminente”, visto que evidente risco que, se propagadas as suas consequências, é improvável que a sociedade seja preservada dos resultados danosos terríveis para a vida e saúde dos mais frágeis (idosos e portadores de comorbidades). Se iminente a ocorrência de um risco que ameaça a população de todo o mundo é legítimo adotar a requisição dos bens ou serviços necessários à proteção do interesse público primário, nos termos da legislação já indicada.

Podem ser objeto de requisição administrativa bens imóveis, bens móveis ou serviços particulares. Com efeito, é lícito ao Poder Público, quando autorizado por lei que atenda as normas constitucionais de regência, requisitar bens móveis, prédios, determinados equipamentos, insumos ou mesmo a prestação de serviços para atender uma situação de perigo público iminente.[9]

No caso de ser requisitado bem móvel consumível[10], a possibilidade de a intervenção do Estado caracterizar-se como desapropriação exclui-se, uma vez que o objetivo da requisição não é a aquisição da propriedade mediante indenização prévia, mas sim o atendimento de uma necessidade urgente e transitória do Poder Público, com indenização posterior. A diversidade entre a figura da requisição e a da desapropriação é bem clara, pois, além de fundamentos diversos, a primeira decorre de um ato unilateral e autoexecutório, sendo a segunda dependente de um acordo ou de decisão judicial. Assim sendo, pode-se afirmar que, quando recai sobre bens móveis consumíveis, a requisição pode até levar ao desaparecimento da coisa, mas não se transmuta em desapropriação.

Na mesma linha de raciocínio, a lição do saudoso Diogenes Gasparini segundo quem se a requisição “incidir sobre bens consumíveis (gêneros alimentícios, roupas, cobertores) é definitiva. Nesse caso, há transferência dominial e a correspondente indenização posterior, sem, no entanto, caracterizar uma desapropriação. Da desapropriação difere porque a indenização é a posteriori, isto é não é prévia como exige a Constituição para a expropriação, e porque independe, para a sua concreção, do auxílio do Judiciário, mesmo quando for contrária aos interesses de seu proprietário.”[11]

Aliás, com a devida vênia dos entendimentos em sentido contrário, nenhum sentido faria ignorar os pressupostos especiais consagrados na Constituição e na legislação autorizando a requisição administrativa em situações excepcionais para adotar o regime desapropriatório que, inclusive, requer ou a concordância do titular do bem ou o acesso ao Judiciário para que o Poder Público possa se imiscuir na posse, trâmite incompatível e desarrazoado em face das condições autorizativas da requisição administrativa, procedimento autoexecutório também válido para bens consumíveis. Consoante ensina Marçal Justen Filho, “a ocupação do bem acarretará seu desaparecimento, de modo que é possível estimar, desde logo, a impossibilidade de sua restituição. Por isso, a destinação da requisição é resolver-se no pagamento da indenização correspondente”. Adverte o doutrinador, com percuciência, ser necessário a própria Administração iniciar procedimento para liquidar o valor devido a título de ressarcimento, sob pena de responsabilização administrativa do agente responsável.[12]

Mais uma vez pedindo vênias aos entendimentos contrários, não faria sentindo algum que, diante de uma realidade que atende os pressupostos constitucionais e legais, traçados com estrito respeito ao caráter extraordinário da requisição administrativa, se a descaracterize como uma medida autoexecutória do Poder Público, cabível somente em situações excepcionalíssimas, o que de fato ocorreu no primeiro semestre de 2020, de modo a justificar a observância de um regime jurídico especial de intervenção do Estado na propriedade privada. Falar em necessária desapropriação é ignorar os preceitos legais e constitucionais, sem nenhum elemento razoável que o justifique e, ainda, com sacrifício do interesse público da sociedade cujas necessidades precisam ser imediatamente atendidas.

Para que não remanesçam dúvidas, não está a se defender qualquer abuso na adoção da requisição administrativa e muito menos considerando-a como uma alternativa corriqueira de atuação em face de bens consumíveis, serviços ou bens não consumíveis.  Um dos aspectos mais fundamentais já exaustivamente analisado é que a proporcionalidade é a técnica a orientar qual o mecanismo de intervenção da propriedade cabível. À obviedade, uma forma de atuação na via administrativa como a da requisição, que se dá sem recurso ao Judiciário, com pagamento de indenização a posteriori, não há de ser instrumento corriqueiro de ação pública. Corriqueiro e rotineiro não. Mas excepcional e extraordinário sim. E é inviável conceber algo mais extraordinário do que uma pandemia que, sem respeito às fronteiras, colocou sob os ombros de todos os Estados a tarefa de se estruturar em tempo recorde para atender demandas sanitárias excepcionais. Discursos como “o extraordinário não afasta o Direito” afiguram-se incompreensíveis como fundamento pretendido para conclusões como “isso não pode ser requisição, tem que ser desapropriação com indenização prévia”, pois ao requisitar não se busca afastar o Direito, mas, ao contrário, cumpri-lo, respeitando as regras de indenização ulterior e pressupostos extraordinários como “perigo público iminente”, fato mais do que notório em se tratando do alastramento da covid10 em razão do contágio pelo coronavírus. Em outras palavras: o próprio direito vigente prevê a requisição administrativa com condições prévias que a autorizam de natureza especial, regime jurídico próprio e adequado ao seu caráter extraordinário, inclusive quanto ao dever indenizatório, motivo por que não há que se falar em “intervenção radical à margem do direito”, mas em cautela reforçada para só adotar o procedimento nas situações em que, de fato, ele seja possível.

Não se ignora a complexidade da requisição em se tratando de bens manifestamente consumíveis (como máscaras) ou aqueles cuja devolução após uso pode sequer ser útil ao interessado (respiradores de um fabricante que não os vende usados, mas somente quando novos). Doutrina recente adverte que “encerrada a pandemia e quiçá reduzida drasticamente a demanda por parte desses produtos, o retorno desses bens a alguns particulares pode não ser conveniente e tampouco representar efetiva diminuição do dano gerado pela Administração Pública, a quem caberá mandatoriamente observar esta realidade no seu dever de indenizar.

Afinal, a requisição administrativa é ‘um direito com dupla titularidade. Estado e particular, pois, enquanto garante-se ao Poder Público a realização de suas tarefas em casos de iminente perigo público, resguardando-se dessa forma o bem-estar social, não permite que o particular seja espoliado de seus bens, e, eventualmente, sofra prejuízos’.”[13]

Exatamente por se tratar de uma forma de atividade interventiva que pode resultar em dupla titularidade, com incidência possível inclusive quanto aos bens consumíveis ou aqueles cuja devolução não interesse aos seus titulares, é necessário cuidado especial na fixação posterior do montante indenizatório que deve ser justo e, portanto, abranger todos os prejuízos sofridos, consoante se explicitará.

Não se ignora, ainda, discussão quanto à possibilidade de requisição de serviços, especialmente os de natureza hospitalar ou mesmo os de saúde por profissionais com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos em radiologia ou fonoaudiólogos. Uma primeira corrente defende que a requisição administrativa somente pode ter caráter patrimonial, sendo inadmissível incidir sobre serviços, visto que restrita a bens móveis e imóveis: “(…) a aplicação da requisição é restrita ao conceito de propriedade particular, não abrangendo a prestação de serviços.

No caso de pessoas jurídicas, a incompatibilidade mostra-se aparente, uma vez que o conjunto de bens empregados em determinada prestação liga-se ao seu titular por vínculo patrimonial, de modo a ensejar a incidência da requisição administrativa diretamente sobre tais bens, e não propriamente sobre os serviços resultantes.

Por outro lado, conclui-se pela impossibilidade de que a requisição que vise à prestação de serviços incida diretamente sobre a pessoa natural. Aplicando-se a técnica da interpretação conforme a Constituição aos arts. 15, XIII, da Lei nº 8.080/90, e 3º, VII, da Lei nº 13.979/20, constata-se que a obrigatoriedade de prestação de serviços por pessoa física poderia decorrer de eventual vínculo contratual (de direito privado) com a pessoa jurídica que teve seus bens requisitados. Entretanto, em razão da garantia de liberdade profissional e, pelo fato de que a capacidade de prestar determinado serviço não se enquadra no conceito de patrimônio, ficou evidenciado que não há sustentação jurídica para a requisição direta sobre os serviços prestados por pessoas naturais”.[14]

Há quem admita a requisição de serviços junto a pessoas jurídicas como hospitais, mas não perante os profissionais de saúde, entendendo pela inadmissibilidade de se obter, compulsoriamente, a realização de uma obrigação de fazer que consubstancie exercício profissional.

Com a devida vênia às duas correntes anteriores, manifesta-se adesão segundo o qual, nos estritos limites em que admite o ordenamento de regência, cabe requisição administrativa de bens ou de serviços, sejam eles prestados por hospitais, outras unidades de saúde ou um dos profissionais da área. Já na Lei nº 8080/90 havia autorização para os entes administrativos requisitarem bens e serviços no artigo 15, XIII:

“Artigo 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições: (…)

XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização”.

Também a Lei Federal nº 13.979/20 previu a requisição de serviços junto a pessoas naturais e jurídicas em seu artigo 3º, VII, o que em nada diverge da possibilidade de requisição de força de trabalho de particulares consagrada no ordenamento em diversas outras searas, para atingimento do interesse público. Alguns dispositivos já não estão mais em vigor como o artigo 25 do antigo Código Florestal, de 15.09.65, que admitia que “Em caso de incêndio rural, que não se possa extinguir com os recursos ordinários, compete não só ao funcionário florestal, como a qualquer autoridade pública, requisitar os meios materiais e convocar homens em condições de prestar auxílio”. A antiga SUNAB (Superintendência Nacional de Abastecimento), tinha prevista no artigo 1º do Decreto-Lei Federal nº 2, de 14.01.66, competência para requisitar bens e serviços essenciais ao abastecimento da população. Também a Lei Federal nº 6.439, de 01.09.77, prevê a competência do Ministério da Previdência Social requisitar bens e serviços essenciais à continuidade das atividades de interesse da população, em caso de “calamidade pública, perigo público iminente ou ameaça de paralisação” dessas atividades, assegurada indenização ulterior. Na hipótese de mobilização nacional, o artigo 4º, IV da Lei Federal nº 11.631, de 27.12.2007 também autoriza requisição de bens e serviços, convocando-se civis e militares (inciso V do dispositivo mencionado). Não se ignore, por fim, a mais popular das requisições civis de serviços, a saber, a prevista no artigo 120 do Código Eleitoral, “in verbis”:

“Art. 120. Constituem a mesa receptora um presidente, um primeiro e um segundo mesários, dois secretários e um suplente, nomeados pelo juiz eleitoral sessenta dias antes da eleição, em audiência pública, anunciada pelo menos com cinco dias de antecedência. (…) § 2º Os mesários serão nomeados, de preferência entre os eleitores da própria seção, e, dentre estes, os diplomados em escola superior, os professores e os serventuários da justiça. § 3º O juiz eleitoral mandará publicar no jornal oficial, onde houver, e, não havendo, em cartório, as nomeações que tiver feito, e intimará os mesários através dessa publicação, para constituírem as mesas no dia e lugares designados, às 7 horas. § 4º Os motivos justos que tiverem os nomeados para recusar a nomeação, e que ficarão à livre apreciação do juiz eleitoral, somente poderão ser alegados até 5 (cinco) dias a contar da nomeação, salvo se sobrevindos depois desse prazo. § 5º Os nomeados que não declararem a existência de qualquer dos impedimentos referidos no § 1º incorrem na pena estabelecida pelo art. 310”.

Para quem não atender à requisição eleitoral, há previsão de incidência de sanção administrativa correspondente a multa (“caput” do artigo 124 do Código Eleitoral), suspensão disciplinar se se tratar de servidor público (§ 2º do artigo 124), ao que se acresce a previsão do seguinte tipo penal: “Art. 344. Recusar ou abandonar o serviço eleitoral sem justa causa: Pena – detenção até dois meses ou pagamento de 90 a 120 dias-multa.”

Denota-se que sequer é preciso recorrer às requisições de serviços da Lei de Serviço Militar (Lei Federal nº 4.375/64) para que possam ser apontadas diversas requisições de serviços consagradas no ordenamento pátrio, sem que jamais tenha sido questionada sua constitucionalidade. É de se destacar, em especial, o artigo 15, XIII da Lei Federal nº 8.080/90 que enumerou como competência comum dos entes políticos o “atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização”. Ao comentar o citado preceito, a doutrina reconhece a requisição administrativa de bens e serviços, junto a pessoas jurídicas ou pessoas naturais, uma forma legítima de intervenção, visto que o dispositivo autoriza ao Poder Público “dado seu dever e escopo de prestar assistência à saúde da população, a intervir nas entidades privadas que prestam serviços de saúde, nos casos nele especificados, com a finalidade de permitir e preservar a continuidade de tais serviços ou mesmo restabelece-los, podendo também para tanto requisitar bens.”[15]

Em todas essas situações, assim como na hipótese da Lei Federal nº 13.979/20, tem-se presente uma situação excepcional que autoriza a previsão de requisição de serviços de particulares, seja uma pessoa jurídica, seja uma pessoa natural, desde que capaz de atender o interesse público em situação de perigo público iminente. Embora seja certa a liberdade de iniciativa e a liberdade de exercício profissional e de atuação em determinada atividade, tem-se como possível, em situações extraordinárias nas quais se mostre impossível a satisfação do interesse público primário por outro meio menos restritivo e conforme a aquiescência voluntária, utilizar a via extrema da requisição administrativa.

Tem-se, a propósito, manifestações doutrinárias mais recentes no sentido de que “mais que possível, é dever do Estado intervir na propriedade, em bens ou serviços de particulares, diante de calamidade pública ou perigo público iminente ou ainda de ameaça ou efetiva solução de continuidade de serviços públicos de saúde, ainda que em unidades específicas da rede de atendimentos à população de propriedade da iniciativa privada, dada a peculiar condição e função que enredam o direito público subjetivo à saúde, a vincular a conduta estatal”[16],além de fundados pareceres da advocacia pública, com explicitação, inclusive, das normas federais e locais do setor de regulação da saúde, o qual delineia a legitimidade da competência para requisição administrativa pelos médicos reguladores do sistema:

“84. De toda sorte, vislumbra-se que a requisição de leitos determinada pelo médico regulador corresponde, na realidade, à requisição da prestação de serviços de saúde por parte da instituição privada, sem que isso implique a supressão ou a ocupação temporária da propriedade particular pelo próprio Estado. (…)

  1. Na área da saúde, o instituto da requisição administrativa ganha ainda maior notoriedade, tendo em vista que as ações e os serviços de saúde prestados pelo Poder Público e também pela iniciativa privada são dotados de “relevância pública”, conforme se extrai do texto do art. 198 da CRFB/88 (…) 86. Como se vê, o legislador constitucional atribuiu à área da saúde uma qualificação singular, a abranger não apenas os serviços executados pelo Poder Público, mas também as ações e os serviços de saúde desempenhados pela iniciativa privada, em regime de complementariedade ou não, nos termos autorizados pelo art. 199 da CRFB/88. Na mesma diretriz, o art. 3º da Lei Orgânica do SUS assinala que o dever do Estado de garantir a saúde não exclui ‘o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade’.
  2. Não há dúvidas, portanto, que a iniciativa privada se submete a uma série limitações ao se inserir no mercado da saúde, exatamente por não se tratar de uma atividade econômica típica, que se guia, naturalmente, pela lógica preponderante do lucro e da acumulação de capital. Aliás, nenhuma atividade econômica pode ser exercida exclusivamente nesses termos, consoante as diretrizes de justiça social elencadas no art. 170 da CRFB/88. No entanto, por ser uma atividade de ‘relevância pública’, que se propõe a realizar um direito fundamental, o setor da saúde atrai uma conotação ainda mais especial, que reclama um feixe de proteção e fiscalização mais robusto por parte do Poder Público.
  3. A relação entre o público e o privado na área da saúde foi recentemente tratada pelo Supremo Tribunal Federal no RE n.º 597.064/RJ, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a constitucionalidade do art. 32 da Lei n.º 9.656/98, que impõe às operadoras de plano de saúde o dever de ressarcir o SUS pelos serviços de médico-hospitalares prestados na rede pública ou conveniada em benefício de pacientes detentores de planos privados de saúde.
  4. Na ocasião, o STF destacou que o Poder Público e a iniciativa privada compartilham os ônus e os riscos das ações e serviços de saúde prestados em prol da população, como bem observado pelo Min. Rel. Gilmar Mendes (…) No mesmo sentido, o Min. Alexandre de Moraes enfatizou que a iniciativa privada na área da saúde se submete a uma disciplina mais rigorosa do que aquela aplicável a outros setores do mercado: (…) 96. Diferentemente da ‘compra de leitos’, a requisição administrativa consiste em um ato de força e, assim, prescinde de concordância do particular: ela é fruto de um ato administrativo unilateral, revestido de imperatividade, coercibilidade e autoexecutoriedade.”[17]

A jurisprudência vem afirmando a legitimidade da requisição de serviços de pessoas jurídicas e naturais: “3 – A Lei Federal nº 8.080/90 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, no âmbito do SUS, em seu art. 15, inciso XIII, permite à Administração Pública que, em situações de perigo iminente e de calamidade pública, requisite administrativamente o fornecimento de bens e serviços ao particular para atender as demandas da coletividade. 4 – O Poder Público, diante de situação de calamidade pública, poderá requisitar os bens e serviços que necessita ‘tanto de pessoas naturais como de jurídicas’, não havendo qualquer restrição quanto ao particular demandando, sendo possível, portanto, compelir a empresa cuja atividade seja apenas de distribuição e armazenamento de medicamentos, mormente a se considerar que os elementos trazidos aos autos delinearam que a empresa recorrente já vinha realizando o fornecimento de fármacos ao município.”[18]

Conclui-se, por conseguinte, pela legitimidade de se requisitar não só bens, mas também serviços, para enfrentar a situação de perigo público iminente que requer satisfação emergencial, sendo certo que não só pessoas jurídicas, mas também pessoas naturais podem sofrer tal intervenção excepcional e motivada por parte do Estado.

 

2.2.3. Instituição. Conflito federativo. Requisição de bens públicos. Procedimento.

Para que a requisição possa ocorrer, cumpre que se esteja diante de um dos pressupostos que a autoriza, sendo manifesto que a pandemia de coronavirus caracteriza perigo público iminente. Ela é instituída por ato administrativo unilateral e auto-executório. Assim sendo, basta a manifestação de vontade do Estado para a sua existência jurídica (unilateralidade). Outrossim, o ato possui força de coerção material e direta junto aos bens e aos serviços requisitados, independentemente da aquiescência dos terceiros atingidos ou da necessidade de o Poder Público recorrer previamente ao Judiciário (autoexecutoriedade).

Em se tratando de requisição administrativa em seara de competência reconhecida à União, Estados, DF e Municípios, não é impossível cogitar de mais de uma pessoa federativa objetivar fazer incidir a constrição sobre o(s) mesmo(s) objeto(s). O conflito de competências entre as pessoas federativas, durante o período de pandemia, assumiu caráter belicoso, desvirtuado do atendimento do interesse público primário e ignorante das exigências de coordenação e articulação entre os diversos entes.

Um dos maiores desafios para se alcançar eficiência no exercício de competências em um Estado federado como o Brasil é conseguir conjugar a atuação dos muitos órgãos das diversas pessoas federativas que partilham competência legislativa e administrativa em mesma matéria. Embora cada órgão deva atuar na sua seara, cumprindo o dever de realizar as competências que lhe foram atribuídas, não se pode esquecer a necessidade de ação coordenada de modo a assegurar a proteção ao interesse público primário, sem excessos em face dos que são afetados pelos comportamentos públicos. Nesse sentido, a administrativista Maria Coeli Simões Pires leciona: “O Estado em Rede, sob denominações diversas, é uma arquitetura político-administrativa de difusão do poder decisório da esfera pública em uma rede articulada de governança, na qual o ente estatal compartilha sua autoridade internamente e com instituições, instâncias, organizações e atores diversos, conexionados por pontos nodais que sustentam múltiplas relações de distensão do poder em lógica pluricêntrica.” Ao analisar a noção de Administração em Rede, a professora mineira invoca o princípio da coordenação “que permite integrar e unificar a ação administrativa, mediante mecanismos de compartilhamento de informações e alinhamento de diretrizes e objetivos, evitando sobreposição de competências e duplicação de níveis decisórios”[19].

Numa perspectiva de um Estado federado “em rede” é preciso evitar a duplicação de constrições federal, estadual e municipal, buscando um compartilhamento de informações que torne possível a realização eficaz das medidas pelos distintos órgãos da Administração Pública das três esferas, de forma correta (juridicidade), com o maior grau possível de estabilidade (segurança jurídica) e capacidade de evitar danos futuros a quem sobre a requisição (precaução e prevenção), além de minorar a ineficiência administrativa.

Também na mesma linha de raciocínio, o Ministro Luís Roberto Barroso apontou, ao analisar a liminar pretendida na MC-ADI 6341-DF, a necessidade de se assegurar o enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente do coronavírus: “Há de ter-se a visão voltada ao coletivo, ou seja, à saúde pública, mostrando-se interessados todos os cidadãos.”

Tratando do desafio de obter articulação apta a proteger o interesse público quando se trata de requisição administrativa por entes federativos diversos, em meio a pandemia, doutrina recente vem assentando:

“De acordo com o princípio da lealdade federativa (‘bundestreue’), as unidades federadas devem sempre atuar (a) de forma leal no exercício das suas competências próprias, evitando prejudicar os demais entes federativos e pautando a sua conduta pelo princípio da boa-fé; (b) de forma solidária, ajudando-se mutuamente sempre que necessário para a manutenção da coesão federal; e (c) de forma harmônica e complementar no planejamento e execução de políticas públicas, na consecução dos objetivos fundamentais e na concretização das determinações constitucionais de interesse comum.

A postura de entes federativos, ao disputar a primazia do direito de concretizar a requisição administrativa de equipamentos de empresas privadas para atender às demandas locais, pode sim significar a violação do princípio da lealdade federativa, em especial se a conduta impossibilitar o acesso dos demais entes federativos aos equipamentos necessários ao atendimento da população localizada em seus territórios.

Ainda, a aplicação do instituto de forma pouco criteriosa pode violar o princípio da eficiência, caso resulte na subutilização dos equipamentos e insumos essenciais ou, ainda, atrasos no efetivo emprego desses nas ações de enfrentamento ao novo coronavírus, em vista de provável judicialização ocasionada por alegados abusos.”[20]

Especificamente quanto ao conflito entre União, Estados, Municípios e DF ao pretenderem requisitar bens privados, malgrado ainda se vislumbrem incertos os parâmetros determinantes das competências entre as pessoas federativas, tem-se indicação doutrinária no sentido da primazia da competência das autoridades e órgãos municipais para, só então, reconhecendo as atribuições estaduais e, por fim, o dever de agir da União:

“autoridade competente é aquela que precisa vencer o perigo iminente, especificado no ato por meio da demonstração do nexo causal entre a necessidade pública e o bem ou serviço a ser expropriado. Isso nos estreitos limites de sua competência funcional e territorial. A Lei 13.979/2020 não ajuda, eis que o art. 3º trata do Ministério da Saúde e dos gestores locais de saúde (art. 3º, § 7º, incs. I e III). Aqui, vale a lógica da ADPF 672/DF: medidas restritivas que são, as requisições estão sob encargo primário das autoridades municipais, para depois desencadear as competências estaduais e federais. Além disso, não pode haver requisição recíproca de bens e serviços públicos.”[21] Esse entendimento que permite aos gestores locais requisitarem bens sem controle da União surgiu como posição doutrinária majoritária e restou consagrado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, ao julgar improcedente a ADI 6.362 em 02.09.2020, nos termos do entendimento de mérito exarado pelo Ministro Relator Ricardo Lewandowsky, restou assentado “que todas as requisições administrativas de bens e serviços realizadas por estados, municípios e Distrito Federal para o combate ao coronavírus não dependem de prévia análise nem de autorização do Ministério da Saúde” e, ainda:

“De acordo com o relator, ao dispor sobre medidas de enfrentamento ao coronavírus, a lei se refere a uma autoridade plural, não discriminando se é municipal, estadual ou federal. Para ele, não deve haver primazia no poder de requisição, mas uma cooperação necessária entre os entes e uma responsabilidade comum. Lewandowski ressaltou que o federalismo fortalece a democracia, porque permite o acesso do cidadão ao governante mais próximo e, nesse sentido, os municípios são os primeiros a reagir numa situação de pandemia.

Para o relator, é impossível delegar ao Ministério da Saúde, de forma abstrata, a avaliação caso a caso de todas as requisições administrativas de bens e serviços de saúde. ‘Não há evidências de que o Ministério da Saúde, embora competente para coordenar em âmbito nacional as ações de vigilância epidemiológica e sanitária, tenha capacidade de analisar e solucionar tempestivamente as multifacetadas situações emergenciais que eclodem em cada uma das regiões ou localidades do país’, observou. (…)

O ministro avaliou que a interpretação sugerida pela CNSaúde, além de não estar contida na literalidade das normas questionadas, retiraria dos governos locais o poder de gestão autônoma inerente a eles, acarretando a ineficácia das medidas emergênciais previstas na própria Lei 13.979/2020. Conforme Lewandowski, o papel da União é prover, amparar e auxiliar os demais entes federados, e não substituí-los em sua competência derivada prevista na Constituição Federal. Os entes, por sua vez, devem agir de acordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que norteiam todos os atos administrativos.” [22]

Não se ignore que o Pleno do STF já referendou decisões que, em tutela de urgência, suspendeu liminarmente a eficácia de requisição administrativa feita pela União em se tratando de bens adquiridos por Estado-membro em face de empresa privada. Assim ocorreu no julgamento ultimado em 22 de junho de 2020 determinando a entrega de ventiladores pulmonares do Estado do Mato Grosso.[23]

Além dessa hipótese (conflito entre entes federativos ao pretenderem requisição dos mesmos bens privados) em que se tem entendido pela primazia dos interesses locais, tem-se que o Judiciário, em mais de uma oportunidade, foi chamado a se manifestar sobre o conflito entre os entes federativos na requisição sobre bens públicos (ou seja, requisição realizada por entes federativos sobre bens que integram o patrimônio de outra pessoa política). Não se vislumbra parâmetro decisório seguro a esse respeito nos Tribunais do país, nem mesmo considerando a jurisprudência do STF. Com efeito, relevante discussão a propósito do objeto da requisição administrativa ganhou força após o Decreto Federal n° 5.392, de 10.03.05, ter declarado calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro, requisitando dois hospitais municipais, inclusive bens, serviços e servidores, além de quatro hospitais federais municipalizados.

O fato de a intervenção ter atingido patrimônio, pessoal e serviço médico de duas unidades hospitalares do Município do Rio de Janeiro ensejou a discussão sobre a viabilidade de requisição administrativa ser levada a efeito por um ente político sobre bens e serviços públicos de outra pessoa federativa. Isto porque a doutrina tradicional vinha definindo a requisição administrativa como modalidade de intervenção parcial incidente sobre bens particulares, tendo em vista, inclusive, as normas inseridas nas Constituições anteriores, à semelhança da regra do artigo 5°, XXV, da Constituição de 1988. O Decreto Federal n° 5.392/05 atingiu, entretanto, bens e serviços da esfera municipal.

Defendendo a possibilidade de intervenção sobre bens públicos, invocou-se o argumento de que, se bens privados podem servir a Administração no atendimento de situação emergencial, com maior razão a incidência da requisição sobre bens públicos. Uma interpretação finalística e teleológica tornaria cabível a requisição dos hospitais municipais, tendo em vista a ameaça à saúde da população local, o que atende a finalidade da norma constitucional. Sob este prisma, a requisição administrativa também pode ter por objeto bens públicos.

Em sentido diverso, afirma-se que a autonomia reconhecida às pessoas federativas, pelos artigos 1°, 18, 25 e 30 da Constituição, impede que uma delas assuma, mediante simples requisição administrativa, o patrimônio, quadro de pessoal e serviços de outro ente político. Destarte, caso a União entendesse indispensável a assunção das unidades hospitalares integrantes do SUS, deveria adotar os mecanismos constitucionais que legitimam tal comportamento como, v.g., a Intervenção ou o Estado de Defesa, sob pena de comprometimento do modelo federativo vigente. Ambos os institutos — Intervenção ou Estado de Defesa — exigem pressupostos e trâmite específicos, cujo rigor é compatível com a gravidade das medidas. Não cumpridas as exigências do ordenamento, tem-se a ilicitude da medida adotada, que passa a merecer repulsa radical do ordenamento jurídico.[24]

Ao decidir o Mandado de Segurança n° 25.295-DF, em que a matéria foi discutida, inclusive à luz do artigo 15, XIII, da Lei Federal n° 8.080/90, o Ministro Relator Joaquim Barbosa ressaltou “a possibilidade de a requisição incidir sobre bens públicos, sem a necessidade da decretação do estado de defesa, por ser ela instituto que visa fornecer alternativas à administração para solução de problemas em casos de eminente perigo público”. Em sentido contrário, o Ministro Carlos Britto afastou “a viabilidade de requisição de bens públicos na forma preconizada pelo inciso XIII do art. 15 da Lei 8.080/90, haja vista tal dispositivo estar relacionado ao art. 5°, XXV, da CF, que prevê que a requisição de uso temporário apenas incide sobre bens particulares”. Já o Ministro Cezar Peluso “Acrescentou que a requisição como tal pressupõe que o bem requisitado tenha destinação natural diversa daquela prevista na Constituição, qual seja, atender a iminente perigo público, o que não teria sido observado no caso, e, ainda, o fato de a própria lei invocada como suporte da requisição impedir que se extravasasse o âmbito administrativo de cada unidade federada”. A questão não restou solucionada à época pelo Pleno do STF, uma vez que, no caso específico do Decreto Federal n° 5.392, de 10.03.05, formou-se a maioria em torno da nulidade do ato por falta de fundamentação. Foi a não motivação que ensejou o restabelecimento da administração e gestão dos hospitais pelo Município do Rio de Janeiro.[25]

Mais recentemente, em face dos conflitos surgidos em plena pandemia, Egon Bockmann Moreira inicia sua análise da jurisprudência do STF pela SS 5.382-PI, examinada em 21.05.2020 pelo Plenário da Corte Suprema: “O caso trata de requisição operada pela União, relativa a produção futura de respiradores pulmonares destinados ao Estado do Piauí. A cautelar suspendeu decisão judicial que permitia o apossamento dos bens estaduais pelo Ministério da Saúde.

Essa liminar da SS 5.382/PI menciona duas ações cíveis originárias sobre o mesmo tema. A primeira é a ACO 3.385/MA, rel. Min. Celso de Mello, j. 20/04/2020, ajuizada contra a requisição, pela União, de ventiladores pulmonares adquiridos pelo Estado do Maranhão. Neste processo, a decisão cita o MS 25.295, para consignar o fundamento de que o STF ‘entende inadmissível a prática, mesmo quando efetivada pela União Federal, desse ato requisitório em face de bens públicos’, exceção àquelas operadas sob estado de defesa ou estado de sítio.

A outra decisão citada na SS 5.382/PI foi proferida liminarmente na ACO 3.393/MT, rel. Min. Roberto Barroso, j. 06/05/2020. Aqui, o Estado do Mato Grosso pediu a invalidação de ato da União que requisitou ventiladores pulmonares adquiridos junto à iniciativa privada. Foi prestigiada a tese de que bens estaduais não podem ser objeto de requisição pela União.

Por fim e nada obstante a competência comum de garantia da saúde pública (Constituição, arts. 18 e 23), por meio de sistema único organizado em rede regionalizada e hierarquizada (Constituição, art. 198), fato é que o STF vem decidindo pela precedência de competências estaduais, distritais e municipais em face das federais. Isso se deu sobretudo no prestígio a medidas restritivas adotadas por tais pessoas políticas, em liminar referendada pelo Pleno na ADPF 672/DF, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 09/04/2020.”[26]

Com a devida vênia do entendimento doutrinário exarado, ainda não se tem claro no STF entendimento em favor da viabilidade de requisição de bens públicos por outra pessoa política integrante da federação, nem mesmo a certeza da primazia seja do interesse dos Municípios, ou dos Estados ou da União. Reconhece-se, entretanto, a formação de uma maioria em torno da prevalência dos interesses locais ou regionais, com restrição às intervenções federais que comprometam as competências do Município ou do Estado, ao que se acresce a necessidade de evitar desvio de finalidade em se tratando de uma forma tão drástica de intervenção do Estado na propriedade como a requisição administrativa. Nessa porfia, a interpretação, pela doutrina, de decisões jurisprudenciais exaradas em 2020:

“No último domingo, 22, a Presidência do Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região proferiu irretocável decisão suspendendo os efeitos de requisição administrativa emitida pela União com referência a ventiladores pulmonares que haviam sido adquiridos pelo Município de Recife para integração à rede de saúde pública3. A decisão ressalta o caráter genérico do ato de requisição, bem como o risco de lesão ao cofre público municipal tendo em vista o investimento realizado pelo Município na montagem de leitos de UTI para internação de pessoas infectadas. A suspensão do ato visou, ainda, evitar o risco de desequilíbrio federativo gerado por medidas constritivas desta natureza.

Além da situação enfrentada recentemente pelo TRF da 5ª Região, há diversas outras passíveis de desvio de finalidade, tais como a requisição genérica e indiscriminada de estoques de empresas, o que potencialmente abrangeria bens e insumos sem qualquer relação com a pandemia do Covid-19. Também seria passível de anulação eventual ato de requisição emitido sem que a autoridade competente comprovasse a impossibilidade de adotar o rito simplificado de dispensa de licitação introduzido pela Lei 13.979. O desvio finalístico restaria claro em tal hipótese, pois é evidente que o uso forçado de bem particular deve ser excepcional, sob pena de responsabilização funcional dos agentes públicos envolvidos.”[27]

Para a Administração Pública operacionalizar a requisição, é preciso não incorrer no vício de desvio de poder, o que exige análise dos fundamentos necessários à ação administrativa em face da documentação disponível. Incide a regra segundo a qual o ato administrativo reduz-se a escrito, com imposição das condições a serem observadas, tanto pelo órgão público quanto pelo titular do bem requisitado, deixando-se claro o teor do comportamento público e dos seus pressupostos. Por se tratar de ato unilateral e autoexecutório, devidamente amparado no ordenamento, não é preciso realizar notificação prévia, mas sim o cumprimento da publicidade em sentido restrito, o que se alcança com a simples comunicação, pela autoridade pública competente, dos efeitos resultantes da requisição administrativa.

Em outras palavras: cabe à autoridade competente promover a notificação do titular do bem ou serviço requisitado, devidamente fundamentada, com entrega subsequente, quando do recebimento dos bens requisitados.

Destaque-se que, de fato, os bens requisitados devem sempre ser disponibilizados imediatamente ao Poder Público, de modo que se tenha o atendimento da necessidade emergencial que caracteriza perigo público iminente. São cabíveis todas as providências administrativas necessárias para que a medida se realize, adotando-se cautela, neste caso, também para evitar qualquer excesso na consecução material das atividades necessárias a que se ultimasse a requisição administrativa.

Observe-se que a vedação de excesso ocorre desde a definição do que será requisitado e em que montante. Assim, p.ex., tem-se que, durante a pandemia, a Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais, nas semanas iniciais após o reconhecimento da emergência sanitária, teve o cuidado de não requisitar todo o estoque de uma mesma empresa com contrato de fornecimento já firmado com o Poder Público, o que poderia comprometer a existência da firmano mercado. Ponderando o cuidado na preservação da sua existência, a manutenção de empregos e o atendimento emergencial de demandas inadiáveis como álcool gel e máscaras em favor das unidades de saúde, fixou-se o montante passível requisição junto a algumas das empresas já contratadas, com notificação unilateral no momento da execução do ato administrativo unilateralmente. Também nessa etapa autoexecutória é fundamental adoção de cautelas que evitem excessos. Afinal, sendo insuficiente a presença do gestor público e dos servidores capazes de realizar materialmente o seu conteúdo, recebendo os bens requisitados, torna-se admissível a requisição da força policial capaz de garantir a autoexecutoriedade administrativa. Isso, entretanto, deve se dar com observância da moderação ao empregar os recursos policiais. Mais uma vez, trata-se de mensurar, em cada realidade, a repercussão da proporcionalidade administrativa.

A excepcionalidade dos mecanismos colocados, de modo extraordinário, à disposição da Administração Pública tem correlação lógica e direta com a natureza do interesse que os justifica: somente porque o que está em jogo é salvar vidas humanas, em situação de emergência sanitária e sem tempo disponível para em poucos dias adotar outra medida  capaz de atender o fim público, é que se tem permitida a autoexecutoriedade administrativa, inclusive com emprego de força policial.

Em tempos de consensualidade e de uma atividade administrativa que absorveu a importância do acordo, render-se ao fato de que existem realidades específicas e incomuns que admitem não só atuação unilateral mas execução direta, com a força de Estado, na via administrativa, tem sido algo difícil. O desafio tem sido claro para os doutrinadores, para o mercado e para o próprio Executivo, sendo perceptível uma resistência em afirmar que a requisição administrativa pode ser o que é: uma medida excepcional, com pressupostos específicos que, presentes, justificam uma atuação autoexecutória dos órgãos e entidades administrativas competentes, vedados excessos no seu conteúdo e na sua realização material

Nesse contexto, até mesmo para viabilizar um mínimo de segurança jurídica no cumprimento dos pressupostos e atendimento dos limites, tem-se pertinente que seja a notificação seja realizada por escrito, explicitando a situação de anormalidade vivenciada (motivação), com identificação dos serviços e/ou bens atingidos.  Trata-se de uma formalização relevante para o órgão público e para o titular do bem ou serviço requisitado.

Alguns entes federativos têm especificado que, na requisição de bens móveis, além da notificação, devem ser solicitados documentos como notas fiscais e demais elementos que ensejem precificação futura para fins indenizatórios. No caso de bens imóveis, recomendam-se medidas como a elaboração de um laudo simplificado do estado da coisa, inclusive com fotografias, com ao mesma finalidade instrutória no procedimento indenizatório.

A recomendação é no sentido de que seja lavrado um “auto de entrega dos bens requisitados”, com descrição dos bens e da quantidade recebida pelo Poder Público, sendo o documento devidamente assinado e disponibilizado ao titular da coisa requisitada.

Denota-se, ainda, clara preocupação em normatizar etapas subsequentes como prazo para instauração do procedimento em que se discutirá eventual divergência quanto ao montante indenizatório, garantias que concretizam a ampla defesa e contraditório em favor do titular dos bens requisitados, mecanismos de gestão patrimonial como realização de inventário e avaliação patrimonial dos bens já incorporados à posse estatal, uso e administração adequados, de modo a evitar deteriorações indevidas e garantir proteção das suas condições mediante fruição adequada.

Não se ignora a modicidade das normas que regem a requisição administrativa, o que exige das autoridades competentes especial atenção no momento da sua realização, porquanto lhes cabe extrair das garantias constitucionais e dos direitos fundamentais consequências diretas que limitam a atividade estatal. Não é o fato de inexistir uma lei exigindo que o proprietário seja notificado que autoriza o Poder Público a requisitar verbalmente, sem reduzir a escrito o comportamento estatal, com os cuidados de formalização essenciais para que se tenha um mínimo de segurança jurídica. A ausência de regras legais específicas procedimentais de uma medida indispensável à proteção do interesse público, prevista na Constituição e na legislação vigente, tem por consequência exigir da Administração operacionalidade de princípios e limites presentes no ordenamento, todos ponderados à luz da razoabilidade e  da proporcionalidade.

Não se deseja, gratuita e violentamente, suprimir a posse nem o direito de propriedade de terceiros, transferindo ativos para o Poder Público de modo arbitrário e muito menos “retomar o tempo da escravidão” no Brasil. Reitera-se à exaustão que o procedimento responsável que se mostrou necessário durante a pandemia é resultado de uma situação de perigo público iminente, com clara ameaça à vida humana e à saúde de profissionais da área e da população, situação peculiar e adequada às normas do ordenamento. Cabe ao gestor atentar aos requisitos, cumprir o seu dever público e operacionalizar a requisição em procedimento regular, com o pagamento devido da indenização justa. Isso para que a sociedade não sofra mais, refém da inércia e, tantas vezes, dos abusos privados e da covardia administrativa em fazer prevalecer a supremacia do interesse público primário.

 

2.2.4. Requisição administrativa como sacrifício de direito que atinge a exclusividade do direito de propriedade. Repercussão no dever indenizatório.

Quando são analisados os diversos modos de intervenção do Estado na propriedade, identificam-se formas de intervir que podem atingir o caráter absoluto, perpétuo ou exclusivo do direito de um terceiro. Para cada um destes aspectos, tem-se determinados instrumentos de intervenção. O caráter absoluto do direito de propriedade, que é a prerrogativa do titular de usar, gozar e dispor da coisa como melhor lhe aprouver, pode ser atingido pelas limitações administrativas ou pelo tombamento. A perpetuidade do direito de propriedade de alguém pode ser suprimida pela desapropriação levada a efeito pelo Estado e, para parte da doutrina, a requisição de bens consumíveis, tendo em vista os fundamentos já explicitados. A exclusividade, que impede uma coisa de pertencer a duas pessoas simultaneamente, pode ser afetada pela servidão administrativa, pela ocupação temporária ou, instrumento que aqui nos interessa, pela requisição administrativa.[28]

 

Direito de Propriedade Modalidades de Intervenção
Caráter absoluto Limitações administrativas Tombamento
Perpetuidade Desapropriação (para alguns autores, também requisição de bens móveis consumíveis)
Exclusividade Servidão Administrativa Ocupação Temporária Requisição Administrativa

 

Não há, contudo, unicidade terminológica entre os doutrinadores de Direito Administrativo ao se referirem às categorias destes mecanismos. Alguns utilizam a expressão restrições[29], outros empregam o termo limites; há quem prefira sacrifícios para determi­nadas realidades e limitações para outras[30], sem esquecer daqueles que distinguem as categorias conforme o conteúdo da intervenção.[31] Aqui, é adotado o termo limites como gênero, definindo-se como espécies os sacrifícios de direito e as limitações administrativas. Limites, sob a perspectiva adotada, é o termo que designa genericamente todas as intervenções do Estado voltadas para concreção do bem estar geral. Não importa se positivos ou negativos, neles se inserem as limitações (gravames de caráter geral, abstrato e impessoal) e os sacrifícios de direito (constrições particularizadas e individualizadas).[32]

Considerando os critérios da generalidade e da especificidade da constrição realizada, as limitações são as formas de intervenção genéricas que têm por objetivo evi­tar prejuízo ao interesse social. As limitações advêm de lei e se caracterizam pela generalidade, abstração e impessoalidade, não incidindo sobre um bem determinado. Já os sacrifícios de direito são gravames particularizados, ou seja, constrições espe­cíficas que incidem sobre determinados bens em favor do interesse público. Confira-se, a este respeito, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello ao definir sacrifícios de direito como “(…) providências administrativas nas quais a Administração, para realizar interesses públicos, devidamente apoiada em lei, investe contra direitos dos administrados, restringindo-os ou eliminando-os, ressalvada a indenização a que estes fazem jus pelo agravo sofrido. Aqui a situação é profundamente diversa das limitações administrativas. Enquanto nas limitações administrativas a Administração nada mais faz que conter os administrados na intimidade da esfera de seus direitos, tal como delineados pela lei, nos sacrifícios de direito, os direitos já compostos e definidos pela lei são objeto de uma compressão ou de uma supressão por uma providência administrativa. É o caso da desapropriação, da requisição e da servidão[33]

Destarte, nas limitações, o Estado de forma genérica conforma os direitos de terceiros. Nos sacrifícios de direito, há autorização legislativa preliminar a que o Estado atinja diretamente direitos consagrados no sistema, já incorporados no patrimônio dos terceiros. Não se trata de lhes definir os contornos, mas de, em face dos contornos já atribuídos pelo ordenamento, sacrificar-lhes o exercício, particularizadamente. Dentre os fundamentos tem-se a supremacia do interesse público como vêm reconhecendo os Tribunais do país. Assim fixou o TRF da 1ª Região ao manter decisão que consagrara: “De forma direta, a requisição administrativa é o instrumento de intervenção estatal mediante a qual, em situação de perigo público iminente, o Estado utiliza bens móveis, imóveis ou serviços particulares com indenização ulterior, se houver dano. Trata-se de instrumento unilateral de gestão pública, de utilização coativa de bens ou serviços particulares pelo Poder Público, por ato de execução imediata e direta da autoridade requisitante para atendimento de necessidades coletivas prementes e transitórias, sob pena de perigo público. Assim, nos casos de emergência ou calamidade pública, reconhecida oficialmente, há possibilidade legal de requisição de bens particulares já que o interesse público se sobrepõe ao do privado.” Estabeleceu o Desembargador Relator que a “administração utilizou-se de instrumento legal posto à sua disposição, no caso a requisição administrativa, para, dentro do seu poder de gestão da saúde pública, melhor alocar os recursos disponíveis para fins do controle da pandemia instaurada”, motivo por que assentou não identificar “a prática de ato que se possa imputar ilegal ou abusivo e que justifique a pronta intervenção do Poder Judiciário”.[34]

Pode-se afirmar que as limitações, em razão da generalidade do gravame que impõem, não implicam dever de indenizar, ao contrário dos sacrifícios de direito, cuja especificidade constritiva implica, em regra, o dever de ressarcir os prejuízos sofridos. Malgrado a licitude dos sacrifícios, que são impostos com fundamento em autorização legislativa preliminar, devem ser indenizados, em princípio, os danos emergentes causados ao titular do bem.[35]

Esta regra geral comporta, à obviedade, temperamentos, principalmente no tocante aos sacrifícios de direito. Em primeiro plano, qualquer limite imposto só acarreta a obrigação indenizatória do Estado na hipótese de prova evidente dos prejuízos sofridos.[36]Afinal, indenizar significa tornar indene de prejuízos e, na ausência de danos, não há o que se ressarcir. Outrossim, em algumas hipóteses de sacrifícios de direito, a jurisprudência pacificou-se no sentido da impossibilidade de indenizar, a despeito da especificidade da constrição imposta.[37]

Malgrado tais advertências, cabe afirmar, como orientação preliminar, sujeita às exceções especificadas quando do exame do regime jurídico de cada modalidade de intervenção, que, dentre os limites impostos pelo Estado às propriedades de terceiros: a) as limitações administrativas, em face da sua generalidade, não acarretam o dever de indenizar os que a elas se sujeitam; b) os sacrifícios de direito, em razão da sua especificidade, implicam, em regra, obrigação de ressarcir os prejuízos sofridos pelos terceiros, devendo-se promover a compensação pelas constrições individualizadas.

Como Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza, reconhece-se que “nem sempre é tarefa fácil distinguir-se, concretamente, a constrição normal à propriedade da que é anormal; a constrição geral da que é específica. Nem por isso o desafio de distinguir pode ser ignorado.” É indispensável fazê-lo especialmente considerando as repercussões de determinadas medidas de interesse público sobre o direito de propriedade.[38]

Sendo a requisição uma constrição anormal e específica ao direito de propriedade do titular de um bem ou serviço, incide, como regra, a obrigação indenizar, com a especificidade da sua natureza posterior em razão da situação extraordinária e emergencial que justifica o referido limite imposto pelo Estado.

 

2.2.5. Indenização

A própria natureza emergencial dos pressupostos que autorizam a requisição administrativa legitimam que a indenização, pelo Estado, dos prejuízos sofridos pelos titulares dos bens, se dê posteriormente à intervenção. Para sua mensuração, é fundamental que o administrador instrua o procedimento com os documentos que permitam avaliação dos danos sofridos na espécie. Demonstrados os prejuízos com a entrega dos bens ao Poder Público que os encaminha para o uso necessário no enfrentamento do perigo público iminente, não há como a Administração furtar-se do dever de ressarcir a posteriori, o mesmo raciocínio valendo no tocante aos serviços prestados após requisição.

A propósito ao quantum indenizatório, em um momento inicial em que não haja qualquer repercussão no aumento de insumos ou de outros elementos constitutivos do preço no mercado, é cabível que se faça o ressarcimento no valor correspondente à média dos preços pagos pelo Estado nos contratos administrativos firmados anteriormente (p. ex., no período de um ano). Caso os bens requisitados não tenham sido adquiridos previamente ou na hipótese de haver algum aspecto relevante que justifique precificação diversa, o titular pode apresente prova dos valores praticados juntamente com as notas fiscais de entrada dos insumos para a fabricação do item requisitado ou outros documentos que cumpram a finalidade instrutória. Relembre-se que ao Poder Público é legítimo satisfazer as demandas emergenciais mediante pagamento de indenização justa, sendo-lhe vedado enriquecer sem lastro, impor prejuízos indevidos ao titular do bem ou serviços ou mesmo intervir na economia e instabilizar indevidamente o mercado. Evitar gastos excessivos com sacrifício ilícito dos recursos públicos é bem distinto de se aproveitar da pandemia para pagar um preço a menor. Em uma frase: entre a “esperteza” do mercado e a desonestidade do Estado, há um espaço em que habita o preço adequado a ser pago a título indenizatório pelo Poder Público que necessita enfrentar as demandas de uma pandemia. O procedimento em que se apura que valor é esse busca exatamente garantia que a precificação corresponda a tal objetivo.

É preciso providenciar que o pagamento do referido montante seja feito no menor prazo possível, tendo em vista o trâmite burocrático necessário ao pagamento. Registre-se que deve ser assegurada a prioridade de adimplemento em face da própria natureza coativa do ato administrativo em questão.  Assim tem se pronunciado a doutrina:  “A lei não definiu o prazo para pagamento da indenização, mas a despesa deve ser liquidada e paga, imediatamente após o período de emergência em saúde pública de importância nacional.”[39]

Não é difícil vislumbrar que o gestor pode, de início, logo após receber os bens ou serviços, aferir o montante indenizatório é adequado. À obviedade, a Administração Pública  apurar esse montante não é incompatível com a oportunidade subsequente a ser dada ao titular dos bens requisitados ou prestador de serviços para manifestação e produção de provas, tendo em vista as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório diferido.

Reitere-se que o Estado em nenhum momento objetiva com a medida interventiva causar qualquer prejuízo desarrazoado, mas tão somente atender a demanda social urgente, em situação absolutamente extraordinária. Para que permaneça comprometido com tal objetivo em todo o procedimento, incumbe-lhe realizar o pagamento da indenização o mais celeremente possível, tendo em vista que o atraso pode chegar a comprometer a sobrevivência da empresa no mercado ou impor sacrifícios desarrazoados a quem teve os serviços requisitados.

Em outras palavras: O que cabe ao Estado buscar é, de forma ponderada, alcançar o equilíbrio entre os diversos interesses públicos: obter os bens e os serviços necessários ao enfrentamento da pandemia; manter a atividade econômica com a menor restrição e prejuízo possível. Para tanto, o Estado não pode se eximir de processar o pagamento da indenização, sob pena de locupletamento ilícito, devendo fazê-lo o mais celeremente possível. Isso porque não pode o Estado, nem mesmo em nome do benefício de toda população, tirar proveito da atividade do particular sem o respectivo pagamento. Ademais, em casos semelhantes, tem-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça[40] no sentido do dever de a Administração Pública indenizar a empresa quando esta não tenha participação culposa no fato.

A celeridade no pagamento, em uma situação tão grave como a de uma pandemia, que implica recessão econômica, é parte do cumprimento dos deveres múltiplos a que o Poder Público encontra-se obrigado. Assim sendo, recomenda-se seja solicitada, com urgência, ao órgão competente liberação de cota orçamentária para que se promova o pagamento imediato de indenização pelo valor adequado ao titular dos bens ou serviços requisitados.

Além disso, é preciso que o Estado vislumbre a possibilidade de o constritado entender não ser adequado o montante indenizatório recebido, malgrado os parâmetros objetivos utilizados assegurem o pagamento correto do ressarcimento. É que, em um Estado Democrático de Direito, assegurar ampla defesa e contraditório consiste em exigência inafastável do regime jurídico administrativo. Repita-se, portanto: mesmo após o pagamento da indenização, é mister que se oportunize a quem sofreu a intervenção manifestar sobre o montante depositado, devendo o Poder Público apreciar eventual impugnação, com decisão fundamentada, que aprecie os pontos litigiosos que sejam invocados.

Afinal, até mesmo para que se tenha maior segurança, com redução de possíveis nulidades e eventuais repressões judiciais subsequentes, é instrumento da juridicidade viabilizar, em sede administrativa, que o terceiro produza provas relativas ao montante a que faz jus a título de ressarcimento. Repita-se à exaustão: os elementos probatórios colacionados serão avaliados pelo órgão público e os argumentos apresentados pelo terceiro serão considerados na decisão administrativa final que, devidamente motivada, estabelecerá a importância ressarcitória devida pelo Estado. Caso se verifique que o valor inicialmente pago foi inferior ao montante indenizatório adequado, caberá ao Poder Público promover o pagamento complementar, de modo que o titular dos bens requisitados realmente se torne indene de qualquer prejuízo. Caso se constante a correção do montante pago imediatamente após a requisição, bastará ao Estado, motivadamente, inadmitir a impugnação administrativa, sendo possível, ainda, que o constritado recorra ao Judiciário, nos termos do artigo 5º, XXXV da Constituição da República.

Nesse ponto, vale lembrar que o interesse público não é único, claramente identificável e incidente, sempre de modo exclusivo, em situações complexas como a ora em exame. Trata-se de hipótese clássica em que há uma multiplicidade de interesses cuja proteção cabe ao Estado, simultaneamente, nesta mesma situação concreta. Como ensina Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, “Decorre daí que a noção de homogeneidade do interesse público tem que dar lugar à idéia de heterogeneidade de interesses públicos. (…) Significa apenas que o interesse público não pode mais subsistir (nem na prática política, nem na formulação doutrinária) de forma absoluta e autoritária, justamente para evitar que ele se transforme em ‘mera aparência, com que muitas vezes se busca um excesso ou um desvio de poder’. (…) A questão central parece ser a da efetivação de um interesse público primário em detrimento de outro interesse público, também primário. (…) o ponto nuclear diz respeito, diretamente, à questão do poder de decidir acerca do que seja o interesse público primário no caso concreto (mormente em situações-limite) quando para tanto muito não serve a genérica prescrição legal.”[41]

Destaca-se que não conduz à negação da primazia do interesse público primário o fato deste não ser sempre único, claramente identificável e incidente, de modo exclusivo, em uma dada realidade; o caráter dinâmico e a multiplicidade de interesses públicos inerente ao mundo contemporâneo e em situações extremas como a de uma pandemia apenas torna cabível a técnica da ponderação entre os diversos interesses, em face de cada situação específica, à luz da proporcionalidade. E a proporcionalidade, neste contexto, exige que se alcance o resultado com o menor sacrifício possível de todos os interesses envolvidos. Assim, admitir a requisição administrativa, uma vez atendidos seus pressupostos, e reconhecer o dever de o Estado promover o pagamento da indenização adequada, inclusive no tempo devido, é exatamente realizar, no caso concreto, a primazia do interesse público primário, mediante a proporcionalidade que preserva o “núcleo” dos diversos interesses cuja proteção cabe ao Poder Público. Tem-se presente e concretizada a difícil técnica da ponderação de interesses em um “hard case” que já nasce clássico na realidade administrativa do Estado.

Ao se concluir nesse sentido, atende-se, cumulativamente, o princípio do não enriquecimento sem causa  que norteia o ordenamento jurídico pátrio, não só no âmbito do Direito Privado, assim como no do Direito Público. Tomando os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello[42], tem-se que: O enriquecimento sem causa é o incremento do patrimônio de alguém à custa do patrimônio de quem o produziu sem que, todavia, exista uma causa juridicamente idônea para superditar esta consequência benéfica para um e gravosa para outro.

Portanto, para configuração do enriquecimento sem causa devem estar presentes os seguintes requisitos: (1) que uma parte haja enriquecido ou extraído proveito do comportamento do empobrecido; (2) que o enriquecimento tenha sido sem causa, ou seja, que não exista título jurídico fundamentando a relação e; (3) que a Administração tenha assentido em se beneficiar pelas prestações.

Ao cotejar a presente situação com as premissas do ordenamento vigente, podemos extrair que:  Primeiro, verifica-se que a Administração terá se valido e beneficiará a população e profissionais de saúde, com a requisição de bens e serviços requisitados, sendo necessário emissão subsequente de nota fiscal, com assinatura dos responsáveis. Segundo, o ordenamento vigente prevê o dever de o Estado indenizar posteriormente pela requisição administrativa, sendo certo que a ponderação dos interesses presentes na espécie exige do Poder Público a maior celeridade possível. Terceiro, sobre o recebimento da Administração de bens ou recibos, cabe análise o auto de recebimento devidamente assinado, atestando o recebimento dos  produtos/atividades ali contemplados.

Em hipótese semelhante à em discussão, cite-se o administrativista francês Gabriel Bayle[43]: O assentimento administrativo pode ser havido como presumido em hipóteses de urgência, de necessidade ou do caráter indispensável das prestações, afora os casos em que a Administração decide não se opor a oferta de colaboração da contraparte.

Nas hipóteses em que há conflito, a doutrina brasileira tem ponderado para que o gestor público não incorra em equivocada simplificação do cenário econômico típico de uma pandemia, sendo necessário avaliar diversos aspectos que integram a própria noção de “indenização justa”, elemento essencial da requisição administrativa:

“Mas qual o preço justo para a indenização? No caso concreto, seria necessária uma análise detalhada e minuciosa da situação ocorrida, pois, diante do cenário atual, os preços de mercado estão altamente voláteis, em virtude da pandemia e da escassez de recursos, principalmente em relação a bens e equipamentos de saúde utilizados no enfrentamento da crise. Assim, considerando a previsão legal de que a requisição é limitada no tempo e no espaço, no mínimo indispensável à preservação da saúde pública (previsão do parágrafo 1º do art. 3º da Lei 13.979/2020), será necessário avaliar qual seria a indenização justa aplicável ao caso concreto.

Nesse mister, alguns aspectos podem ser utilizados para auxiliar na definição do quantum indenizatório, como, por exemplo, o estado de conservação do bem e os documentos relacionados à requisição realizada. Recomenda-se ao bom gestor que justifique nos autos do processo administrativo os motivos que levaram à prática do ato, juntando documentos relativos à descrição do bem assim como a identificação do agente público que realizou a requisição. Essa avaliação não é simples e não pode ser satisfatoriamente atendida por uma aferição expedita ou paramétrica definida de forma unilateral.”[44]

Não se ignora que a matéria é controversa, já tendo o STF reconhecido repercussão geral no RE 666.994 em que se discute se o Poder Público deve pagar a hospital privado os valores da tabela do SUS por serviços prestados por hospital privado compulsoriamente, em razão de decisão judicial proferida em favor de paciente prejudicado pela inexistência de vaga na rede pública de saúde: “1. A decisão recorrida condenou o Distrito Federal a pagar a estabelecimento privado de saúde o valor referente a serviços prestados em cumprimento de ordem judicial. 2. Constitui questão constitucional relevante definir se a imposição de pagamento pelo Poder Público de preço arbitrado pela unidade hospitalar viola o regime de contratação pública da rede complementar de saúde (art. 199, §§ 1º e 2º, da CF/1988), ou se o ressarcimento com base em preço tabelado pelo SUS ofende princípios da ordem econômica. 3. Repercussão geral reconhecida.”

Em sede de consultoria jurídica, destaca-se a seguinte orientação:

“109. Com relação à requisição administrativa, entende-se, igualmente, que os valores a serem pagos pela SES-MG devem observar a normatização estabelecida pelo Órgão, limitando-se, estritamente, à remuneração dos serviços prestados. Como bem assinala o Código Estadual de Saúde, a requisição administrativa determinada pela autoridade sanitária está condicionada ao “pagamento” ou à “contrapartida a posteriori”. Assim, em se tratando de requisição de serviços que devem ser executados pelo próprio particular, e não diretamente pelo Estado, os valores devidos somente poderiam ultrapassar os limites da contraprestação caso comprovada, na situação concreta, a ocorrência de algum tipo de dano imputável ao Estado, mediante ampla e inequívoca comprovação por parte da instituição hospitalar, acompanhada de conclusão técnica da SES-MG pela sua possibilidade. Nesses casos, alerta-se para a impossibilidade de se acatar cobranças abusivas que sequer respeitam o conceito jurídico de indenização, assim estabelecido pelo Código Civil: Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

  1. Isso posto, corrobora-se a lista de verificação elencada na Nota Jurídica n.º 235/2018, a orientar a formalização dos expedientes voltados ao pagamento das despesas médico-hospitalares resultantes da requisição administrativa ou da compra de leitos privados determinadas pelo médico regulador, nos exatos termos narrados na consulta, a partir dos elementos essenciais já determinados no Parecer/AJ/n.º1966/2013 e na Nota Jurídica n.º 3.693/2013:
  2. Relatório médico, contendo as informações prestadas pela autoridade competente sobre os fundamentos fáticos e técnicos que autorizaram a prestação dos serviços ou o fornecimento do bem em caráter de urgência ou emergência. A nota técnica deverá comprovar todos os requisitos legais pressupostos da contratação emergencial, descrita no inciso IV, do art. 24, da Lei n.º 8.666/1993, robustecida pela gravidade extrema decorrente da impossibilidade material e temporal de se aguardar o trâmite regular da contratação direta, sob pena de graves riscos para a integridade física do paciente. Em se tratando de requisição administrativa, a nota técnica deverá contemplar, igualmente, a ‘situação excepcional’ que ensejou a internação do paciente na rede privada.
  3. Comprovação documental do efetivo fornecimento do bem ou da execução do serviço, por meio de relatório circunstanciado ou formulário de justificativa da compra dos procedimentos ou leitos hospitalares, no qual deve constar: 2.1. em se tratando de fornecimento de bens: documento relacionando os bens que efetivamente foram fornecidos para a Administração, elaborado e assinado por técnico do setor competente do órgão/entidade, discriminando os valores unitários e globais, como foi realizada a fiscalização dessa entrega e demais elementos essenciais à apuração das circunstâncias e locais de entrega dos bens; 2.2. em se tratando de prestação de serviços: documento relacionando os serviços que efetivamente foram prestados, elaborado e assinado por técnico do setor competente do órgão, discriminando em que consistiu o serviço, em qual local foi prestado, como foi executado, quais os componentes dos custos, como foi realizada a fiscalização dessa execução e demais elementos essenciais à apuração do tipo de serviço que foi prestado;
  4. Emissão de análise qualitativa e global da gestão, com a exposição das providências administrativas adotadas em termos de planejamento e estruturação da rede assistencial para a ampliação do número de leitos ofertados à população, ou a impossibilidade de o fazê-lo.
  5. Parecer técnico, devidamente assinado, contendo as razões da escolha do fornecedor do bem ou do prestador do serviço, bem como a comprovação da adequação do valor cobrado, com a observância da normatização estabelecida pela SES-MG. Eventualmente, se o caso concreto for anterior à normatização do Órgão, os setores competentes devem assegurar a razoabilidade do valor cobrado em face dos preços definidos, exemplificadamente, em tabelas oficiais, evitando-se, para todos os fins, a prática de valores que possam ocasionar dano ao erário.
  6. Juntada da nota fiscal emitida pela instituição privada, com o ateste do recebimento, a contento, do material ou da prestação do serviço.
  7. Adoção de diligências com o intuito de verificar se o paciente possui plano de saúde, e, em caso positivo, providenciar a devida comunicação à Advocacia-Geral do Estado, a fim de que possam ser adotadas medidas judiciais de cobrança do crédito, observados os trâmites do Decreto Estadual n.º 46.739/2015.
  8. Imputação de responsabilidade do fornecedor ou prestador do serviço, conforme o caso.
  9. Ademais, em consonância com as recomendações tecidas na Nota Jurídica n.º 235/2018, considera-se essencial que a Administração Pública adote as seguintes providências: a) apure a certeza e liquidez do crédito, observados os procedimentos do Decreto Estadual n.º 37.924/96; b) só efetue os pagamentos referentes aos bens efetivamente entregues ou aos serviços que tenham sido efetivamente prestados, exigindo a apresentação dos comprovantes dos pagamentos efetuados aos empregados vinculados à prestação dos serviços, bem como do cumprimento das obrigações sociais e previdenciárias, e acautelando-se para não proceder à duplicidade de pagamentos; c) proceda à regular retenção dos encargos legais incidentes sobre os pagamentos.[45]

Com todas as cautelas enunciadas, a Administração Pública consegue ponderar os diversos interesses que lhe cabem proteger: a necessidade social de ver a saúde e vida da população protegidas; a demanda pelos bens e serviços essenciais ao enfrentamento da pandemia, principalmente em um momento inicial; a preservação da atividade econômica, evitando-se o comprometimento da existência de empresas (mediante o pagamento célere do montante indenizatório) e, com isso, a preservação dos empregos dos funcionários ou mesmo remuneração imediatado prestador de serviço. Na verdade, a disponibilização imediata de capital de giro não só compensa a restrição sofrida pela empresa como transforma a requisição administrativa numa forma justa e rápida de transferência da titularidade de bens em estoque, mediante pagamento devido e tempestivo, o mesmo ocorrendo em relação a quem presta o serviço. Admitir impugnação administrativa posterior, com apreciação pelo Estado dos eventuais pontos litigiosos relevantes, mediante análise dos aspectos fáticos e jurídicos, afasta definitivamente qualquer ofensa ao ordenamento vigente.

 

2.2.6 Extinção

É entendimento clássico o de que a requisição administrativa é uma modalidade de intervenção que se caracteriza pela transitoriedade. O seu caráter não-definitivo implica que, findo o pressuposto emergencial que a autoriza, o bem ou o serviço retorne à esfera do seu titular. Afinal, após ultrapassada a situação de perigo público iminente ou de guerra, seria desarrazoada a continuidade do uso da coisa ou serviço requisitado pelo Poder Público.

De fato, em princípio não é razoável que uma intervenção excepcional como a requisição, com indenização paga apenas posteriormente, seja um mecanismo contínuo e comum de atendimento das necessidades administrativas. A excepcionalidade dos pressupostos que a autorizam indicam o caráter improvável de situações de perigo público iminente durarem de forma contínua ao ponto de se ter a realidade extraordinária permissiva dessa forma interventiva. À obviedade, não se ignore a viabilidade de se ter prolongada uma situação de guerra ou mesmo um inimaginável contexto extraordinário de contínua necessidade que se enquadre nos pressupostos legais. Não existe no ordenamento um prazo máximo para que ocorra o atendimento da demanda pública que autorizou a medida interventiva. E um dos pontos que o ano de 2020 deixou evidente, em especial no tocante à requisição administrativa, é ser impossível restringir ao que é imaginável em determinada época a amplitude das demandas que podem surgir a seguir. Que o Direito esteja pronto para o impensável e que os atores envolvidos tenham responsabilidade ao concretizá-lo.

[1] COELHO, Daniela Mello. Administração Pública Gerencial e Direito Administrativo”. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 96.

[2] Revista de Direito Administrativo, v. 227, p. 331.

[3] Agravo de Instrumentonº 08042368220204050000, rel. Desembargador Federal Edilson Nobre, 4ª Turma do TRF da 5ª Região, julgamento em 10.06.2020.

[4] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Direito Administrativo e o coronavirus. Revista Colunistas – Direito do Estado. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/rafael-carvalho-rezende-oliveira/direito-administrativo-e-coronavirus-. Acesso em 17.03.2020.

[5]“AGRAVO DE INSTRUMENTO – ADMINISTRATIVO – LIMINAR – INTERVENÇÃO JUDICIAL – PRORROGAÇÃO – DESNECESSIDADE – SITUAÇÃO DE CALAMIDADE E IMINENTE PERIGO PÚBLICO JÁ SUPERADA – NOSOCÔMIO EM PLENO FUNCIONAMENTO – RECURSO PROVIDO. I – Enquanto modalidade de intervenção do Estado na propriedade, a “requisição” está ainda prevista no Código Civil de 2002, expressamente em seu art. 1.228, § 3°, bem como na Lei n° 8.080/90, que trata das “condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes”, e prevê, como atribuição da Administração Direta, a requisição de bens e serviços “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias” (art. 15, XIII, Lei n° 8.080/90). II – Se já atingido o objetivo da intervenção judicial na propriedade particular (medida indiscutivelmente excepcional, posto interferir direta e drasticamente nos constitucionalmente assegurados princípio fundamental da livre iniciativa e direito de propriedade – arts. 1º, IV, “in fine”, 170 e art. 5º, XXII, CF/88 – e, por isso mesmo, prevista única e exclusivamente para afastar “iminente perigo público” – art. 5º, XXV, CF), estando o nosocômio em pleno funcionamento e com reduzido déficit orçamentário, impertinente a manutenção da intervenção anteriormente deferida tão somente pela ausência de perícia contábil e/ou, mesmo, pela demonstração de bons resultados obtidos pela interventora, não sendo estes os requisitos legalmente previstos para autorização de uma intervenção judicial via requisição.” (Agravo de Instrumento 0519022-57.2017.8.13.000, relator Peixoto Henriques, 7ª Câmara Cível do TJMG, julgamento em 25.06.2019).

[6] GAUDEMET, Yves. Traité de Droit Administratif. Droit Administratif des biens. 2ª ed. T. 2 . Paris: L.G.D.J, p. 360-364.

[7] Referendo na MC-ADI nº 6.343- DF, rel. para o acórdão Ministro Alexandre de Moraes, Informativo 976 do STF.

[8]Suspensão Liminar nº 1.309-SP, Ministro Relator Dias Toffoli, decisão monocrática de 01.04.2020.

[9] Também no direito comparado admite-se a requisição administrativa de coisas móveis, uso de imóveis e semoventes, bem como de prestação de serviços públicos, consoante ensina Patricia R. Martinez. (In: FARRANDO, Ismael e MARTINEZ, Patrícia R. (Org.) Manual de derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1996. p. 540)

[10] Bens consumíveis são os bens móveis cujo uso implica destruição imediata da própria substância (p.ex., alimentos e medicamentos).

[11] GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 6ª ed. São Paulo:Saraiva, 2001, p. 612.

[12] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 418.

[13] FRANÇOLIN, Andrea Pitthan. A requisição administrativa em tempos de covid. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/323162/a-requisicao-administrativa-em-tempos-de-covid-19. Acesso em 29.08.2020

 [14] ONO, Ricardo Ideaki. Da requisição administrativa sobre bens e serviços particulares no contexto de enfrentamento à pandemia da covid-19. Disponível em  https://www.conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/54415/da-requisio-administrativa-sobre-bens-e-servios-particulares-no-contexto-de-enfrentamento-pandemia-da-covid-19. Acesso em 25.08.2020.

 [15] ANDRADE, Gustavo Henrique Baptista. A intervenção do Estado na propriedade privada e o papel do Município. Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 2, p. 464-485, maio/ago. 2019

[16] COSTA, Alexandre Massarana. A requisição administrativa de bens e serviços no âmbito da saúde. Disponível em https://jus.com.br/artigos/26062/a-requisicao-administrativa-de-bens-e-servicos-no-ambito-da-saude. Acesso em 01.08.2020.

[17] Parecer 16.085 de 22.03.2019. Disponível em http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/advogado/parecer-16.085.pdf. Acesso em 20.03.2020.

 [18] Apelação Cível 1.0572.16.001573-9/04, rel. Desembargadora Sandra Fonseca, 6ª Câmara do TJMG, súmula publicada em 31.05.2019.

[19] PIRES, Maria Coeli Simões. Transparência e Responsabilidade na Gestão Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 81, n. 4, ano XXIV, out./dez. 2011, p. 66.

[20] KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Requisição administrativa em tempos de pandemia. Disponível em https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/requisicao-administrativa-em-tempos-de-pandemia-09042020. Acesso em 27.08.2020.

[21] MOREIRA, Egon Bockmann. Requisição administrativa em tempos de pandemia: seis desfios e um novo conceito. Disponível emhttp://www.direitodoestado.com.br/colunistas/egon-bockmann-moreira/requisicao-administrativa-em-tempos-de-pandemia-seis-desafios-e-um-novo-conceito. Acesso em 10.08.2020.

[22] ADI 6.362-DF, rel. Min. Ricardo Lewandowsky, Pleno do STF, julgamento em 02.09.2020.. Disponível em Notícias do STF http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=450880&ori=1. Acesso em 03.09.2020.

[23] Ref-MC-ACO 3393-MT, rel. Min. Luís Roberto Barroso, Pleno do STF, sessão virtual de 12.06.2020 a 19.06.2020, publicação em 08.07.2020.

[24] No caso específico do Decreto Federal n° 5.392/05, cumpre advertir que a Constituição da República, em seu artigo 34, não admite a intervenção da União diretamente em Município, mas somente em Estados-Membros e no Distrito Federal.

[25] MS nº 25.295-DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno do STF, julgado em 20.04.2005, Informativo do STF, nº 384.

[26] MOREIRA, Egon Bockmann. Requisição administrativa em tempos de pandemia: seis desfios e um novo conceito. Disponível emhttp://www.direitodoestado.com.br/colunistas/egon-bockmann-moreira/requisicao-administrativa-em-tempos-de-pandemia-seis-desafios-e-um-novo-conceito. Acesso em 10.08.2020.

[27] LEVY, Ricardo. LAUMBAUER, Roberto. A requisição administrativa e a dispensa de licitação. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/requisicao-administrativa-dispensa-de-licitacao-31032020. Acesso em 01.09.2020.

[28]Especificamente sobre a requisição de bens móveis consumíveis, há quem entenda tratar-se de forma de intervenção que atinge a perpetuidade, não a exclusividade.

[29]Neste sentido, confiram-se: Maria Sylvia Zanella di Pietro (Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 119) e Sérgio de Andréa Ferreira (Revista de Direito Administrativo, v. 234, p. 43-79).

[30] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 631.

[31] Neste sentido, confira-se Patricia R. Martinez. (FARRANDO, Ismael; MARTINEZ, Patrícia R. (Org.). Manual de derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1996. p. 510-511.)

[32] A ideia de sacrifício especial quando o terceiro afetado pela intervenção do Estado sobre um agravamento especial não exigido de um outro, excedendo o limite do sacrifício geral, foi construída no direito alemão e explicitada por doutrinadores como Harmut Maurer (MAURER, Harmut. Direito administrativo geral. 14. ed. Tradução de Luís Afonso Heck. Barueri-SP: Manole, 2006. p. 869).

[33] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 631.

[34] Agravo de Instrumento nº 1015310-63.2020.4.01.0000, decisão monocrática do Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, julgamento em 27.05.2020

[35] Neste sentido, confira-se o posicionamento de Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza: “No caso de sacrifício, há o dever de indenização pelo Estado porque alguém, ou um grupo muito restrito de pessoas, foi obrigado a suportar um dano em prol de determinado interesse coletivo, sendo justo que este encargo seja repartido também com o restante da coletividade. Trata-se não apenas de medida de justiça, mas de providência indispensável para fazer prevalecer o preceito constitucional segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5, caput). Daí falar-se na indenização como um meio de aplicação da repartição dos encargos públicos, corolário do princípio constitucional da isonomia.

No caso a limitação administrativa, justifica-se a inexistência de dever de indenização àquele que a suporta pelo fato de que, simplesmente, trata-se de um condicionamento normal, imposto à generalidade das pessoas. Não há dano indenizável, mas simples condicionamentos ínsitos à vida em sociedade.” (SOUZA, Rodrigo Pagani de; SUNDFELD, Carlos Ari e. A perfuração do túnel do metrô sob imóveis urbanos: hipótese de mera limitação à propriedade. A&C: Revista de Direito Administrativo & Constitucional, n. 20, p. 50-51, abr./jun. 2005.)

[36] REsp n° 314.487-SP, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1a Turma do STJ, DJU de 24.06.2002, p. 201.

[37] É o caso, p. ex., do tombamento que, segundo a orientação majoritária não dá ao proprietário do bem direito à indenização, ressalvada a hipótese de esvaziamento econômico, consoante explicitar-se-á no item 5.9. deste capítulo 8. Denota-se, contudo, tendência jurisprudencial inovadora no sentido de determinar a indenização a quem sofra prejuízo em razão de intervenção estatal: “A autorização constitucional no sentido de reconhecer ao Estado o direito de interferir na propriedade particular, atinge-o em caráter irreversível. Admitida com cautelas, determina o pagamento de justa indenização em dinheiro. Caso contrário, se nada paga, comete-se esbulho possessório ou pratica-se ato ilícito. É inegável a desvalorização de imóvel em decorrência da construção do dique que, segundo a perícia, sequer foi precedida de estudos ou provas de que seria necessária, bem como de que seja suficiente para conter as enchentes nos bairros próximos, habitados por população de baixa renda. O fato de parte do imóvel estar situado em área de preservação  ermanente não retira do proprietário o direito de ser indenizado pelos prejuízos sofridos. Mesmo que lhe seja proibido construir no local, poderia utilizar o terreno para pastagens ou outras atividades sustentáveis e não agressoras ao meio ambiente.” (Processo n° 1.0525.02.007846-1/001, rel. Desembargador Wander Marotta, TJMG, DJMG de 02.03.2007)

[38] SOUZA, Rodrigo Pagani de; SUNDFELD, Carlos Ari. A perfuração do túnel do metrô sob imóveis urbanos: hipótese de mera limitação à propriedade. A&C: Revista de Direito Administrativo & Constitucional, n. 20, p. 52, abr./jun. 2005.

[39] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses, Direito provisório e a emergência do Coronavírus: ESPIN – COVID-19: critérios e fundamentos: Direito Administrativo, Financeiro Responsabilidade Fiscal, Trabalhista e Tributário: um mundo diferente após a COVID-19. Belo Horizonte: Fórum, 2020, E-book, p. 123

[40]   (…) “5. O dever da Administração Pública em indenizar o contratado só se verifica na hipótese em que este não tenha concorrido para os prejuízos provocados. O princípio da proibição do enriquecimento ilícito tem suas raízes na equidade e na moralidade, não podendo ser invocado por quem celebrou contrato com a Administração violando o princípio da moralidade, agindo com comprovada má-fé. 6. Recursos especiais improvidos.” (REsp 579541/SP, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 17/02/2004, DJ 19/04/2004, p. 165).

[41] MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 151.

[42] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 623.

[43]L’enrichissemente sans cause em Droit Administratif, p.23, LGDF, Paris,1973.

[44] CHARLES, Ronny. O instituto da requisição administrativa à luz da Lei n. 13.99/2020. Disponível em https://ronnycharles.com.br/o-instituto-da-requisicao-administrativa-a-luz-da-lei-no-13-979-2020. Acesso em 05.09.2019

[45] Parecer 16.085 de 22.03.2019. Disponível em http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/advogado/parecer-16.085.pdf. Acesso em 20.03.2020.

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