Uma prosa sobre Advocacia Pública

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07 de março é o Dia Nacional da Advocacia Pública, profissão que abracei por vocação e que já ensejou publicações técnicas, com exame de aspectos fundamentais à carreira.

Hoje, queria mesmo falar com os colegas em tom de prosa. Primeiro, com aqueles que acabaram de entrar na carreira.

Quando passamos em um concurso, a euforia é imensa. Cada vez mais o tempo de dedicação para podermos alcançar a aprovação em meio a tantos candidatos é maior. Parabéns por sua competência. Hoje, é improvável que a sorte o tenha levado ao patamar necessário para a posse no cargo de advogado público. Foram dias e dias sozinho na frente dos livros, assistindo aulas de cursinho, lendo informativos do STJ e do STF, resolvendo simulados e aguentando a falta de dinheiro, a cobrança familiar, a culpa por não fazer mais e as reprovações. Porque antes de passar, tem a reprovação. E outra. E outra. Até que… você está entre nós. Seja bem vindo. Mais uma vez, parabéns.

Em primeiro lugar, queria dizer que a carreira realmente tem um potencial incrível. Você poderá ser o viabilizador de políticas públicas, auxiliando formatar, dentro da legalidade, projetos essenciais para a população brasileira. Isso na área da saúde, educação, segurança pública, assistência social, meio ambiente… não tem nada que nos dispense! Conseguirá ajudar arrecadar o dinheiro que subsidia todo o trabalho do Estado, do Judiciário ao Legislativo, passando pelo Executivo, inclusive quem nem sempre entende estar entre nós, como os colegas do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Na tentativa de evitar controles exagerados que desestruturem aquilo que centenas levaram tempos planejando, a sua voz será a dos agentes públicos em processos judiciais e administrativos, demonstrando a razoabilidade do que está sendo feito e ainda o será. Sem você fazer seu trabalho direitinho, tudo morre e gente que “não entende do traçado” termina definindo o que não tem competência para determinar. Se tiver sorte, poderá auxiliar na constatação de teses que não fazem mais sentido no contencioso diante da jurisprudência dos Tribunais superiores ou da realidade administrativa e que devem ser padronizadas como situações de dispensa de intervenção judicial, sob pena de o erário perder, além do direito discutido no processo, muito dinheiro com custas, honorários, perícias e toda a atuação dos envolvidos no controle, ao que se acresce o principal: o sacrifício e sofrimento descabido da outra parte. Se tiver mais sorte ainda, poderá participar da discussão e implantação real de “novidades” com grande potencial de eficiência: o uso da mediação, a gestão inteligente de processos que afasta a atuação em situações irrelevantes (e, assim, permite concentrar nosso trabalho onde mais precisamos), o combate à improbidade administrativa e muito mais. Você poderá conhecer pessoas as mais diferentes, trabalhar com gente sensacional e dividir resultados maravilhosos considerado o interesse público (aquele primário, o “de verdade”, o que faz diferença no mundo). Quer saber? É sen-sa-cio-nal!

Mas prepare-se. Os perigos e as dificuldades são imensos. A nossa carreira é muito próxima do poder e, não raro, somos capturados para viabilizar projetos políticos transitórios de governos em relação aos quais as divergências éticas podem ser abissais, o que traz uma angústia imensa. Isso quando não há ilegalidades em face das quais temos que resistir, impedindo que ocorram. Cada um acha o seu jeito de sobreviver e aqui vai o meu: não estamos no Estado para “mandar nele”. O olhar tem que ser sempre “viabilizador”, ou seja, cabe-nos pensar “como fazer isso acontecer com respeito às normas jurídicas”. E aí surge a maior dificuldade: o nosso papel é permitir que as coisas ocorram DENTRO DA LEGALIDADE. Legalidade, aquela coisa que já foi cumprir dispositivo de lei literal, aí virou legitimidade que abrange moralidade, aí chegou na constitucionalidade e agora é a juridicidade, com interpretação do ordenamento todinho, diante da reconstrução da realidade por cada sujeito, e que varia muito conforme a abordagem que se tenha da Ciência Jurídica. Pois é isso mesmo. A cada passo você precisa, com humildade, definir o que está dentro e o que está fora da legalidade e, gostando ou não, viabilizar e defender o que estiver do lado de dentro. Deverá manter sob controle a vontade de colocar fora da legalidade o que você, por suas convicções ideológicas sobre o Estado, sobre a política e sobre o mundo, acha que não deveria acontecer, embora não resulte exatamente essa proibição do direito. Também precisará resistir a colocar dentro da bolha do “possível juridicamente” absurdos que gestores e administradores, desonestos ou desavisados, por vezes querem realizar.

Então veja bem: você precisa saber. Isso significa seguir estudando um colosso. Você precisa ser humilde, até para escapar dos perigos internos da atividade que exerce. E você precisa ser corajoso, para não cair das “casas de caboclo” externas que o tempo todo lhe são colocadas (sim, a gente recebe documento falso, é ameaçado indireta e diretamente e muito mais). E tem que ter uma habilidade pessoal imensa, para explicar a todos porque não dá para rasgar a Constituição e as leis em pedacinhos, o que pode lhes parecer ótimo naquele momento, mas certamente é um preço alto demais a se pagar. Além disso, tem que se posicionar em face de colegas jurídicos que estão certos da superioridade das suas funções e nos destratam (para cada juiz e promotor bacana tem outro que… Jesus Cristo nos dê paciência!), de servidores que nos pressupõem um “bando de vagabundos” e não nos integram, nem facilitam nosso trabalho (a conquista do espaço é lenta e vale a pena), além de deixar de ser invisível perante a sociedade que sequer entende o trabalho que fazemos e dificilmente, quando sabe, o valoriza.

O cotidiano é avassalador. Saiba que está entrando na carreira em um dos seus piores momentos. Essa bipolaridade política que vivemos no mundo real também existe do lado de dentro. A dificuldade de conversar e encontrar um ambiente saudável tornou-se indesejada companheira no trabalho. E tem pior: a maioria dos governos decidiu não fazer concursos públicos. Então, os colegas aposentam (desconfio que é a última geração que conseguirá esse direito, a tempo de viver uns anos com saúde e conforto do lado de fora), morrem ou saem de licença saúde/maternidade, e o trabalho deles precisa ser assumido. Sem mais estrutura, sem auxílio eficiente, sem novos parâmetros que adequem à uma realidade diversa a demanda aumentada de serviço e sem desculpas quanto ao não atingimento de metas. A gente olha a “big picture” e a sensação é que “é algo para dar errado”, o que, de certo modo, autorizaria a mudança da Constituição quanto às normas de exclusividade hoje postas para as carreiras federal e estaduais. Assim, seria possível entregar a nossa atividade para o mercado. Eu sei que parece absurdo, mas é que governos raramente nos percebem como a parte do Estado que protege inclusive o agente público, muito além da sociedade. Somos vistos como “entrave”, aquele povo “que não deixa fazer o que é preciso”. A ideia de ter um “escritório privado que atenda de verdade nossas demandas” ou um “banco que saiba cobrar rapidinho os créditos tributários” é um desejo real ou, para alguns, plano em execução. Então você estará lá, atolado em trabalho de que não dá conta, com esse contexto assustador ao redor, e não terá saída a não ser seguir fazendo todo o possível, ainda que pareça insuficiente.

Um dos meus conselhos é: abrevie a fase do deslumbramento e vá, mais rapidamente, caindo na real. Nem todos são bonzinhos e confiáveis. Você tem responsabilidade de gente grande e precisa fazer seu melhor, ainda quando está completamente sem forças. Lavar as mãos feito Pôncio Pilatos não é uma alternativa enquanto estiver na carreira. Estabilidade e remuneração não são garantia de vida feliz, ao contrário do que você sempre acreditou. Ter maturidade para fazer um trabalho volumoso, repetitivo e muitas vezes chatíssimo exige um comprometimento maior do que qualquer advogado de escritório privado já teve. Ah! E lembre que você não vai se aposentar com os ganhos do cargo. Logo, finja que a sua remuneração é 30% a menos e, ainda que alguém muito importante adoeça, guarde para quando for você o doente e velho. Agradeça que poderá fazer essa escolha e a implantar. A minha geração não teve essa chance. Combinamos uma coisa quando do começo do jogo e aos 30 minutos do segundo tempo avisaram que será outra. Não dá mais tempo de fazer outra escolha. Como advogados públicos, até fazemos milagre às vezes, mas não conseguimos mudar o passado. Nem o do Estado, nem o pessoal.

Então já passo a prosa para os colegas que já estão há mais tempo no cargo. Vivemos um momento em que precisamos escolher: ou ficar ou sair fora. Sabemos os desafios da profissão, conhecemos as suas benesses e precisamos avaliar se vale a pena, ou não. Em um país em que o número de desempregados é imenso e a maioria da população ganha muito menos, é mesmo uma tranquilidade recebermos a remuneração mensal. A questão é: vale a pena? E  o limite: em ficando, todos precisamos fazer jus à remuneração.

Sair de casa comprometido a fazer o melhor não pode ser só um discurso bonito. Tem que ser ação cotidiana, ainda diante de tudo (e “tudo” tem sido coisa demais, eu sei). É preciso manter em mente que qualquer agente público está na estrutura do Estado para trabalhar. Também nós somos servidores e, portanto, temos de servir à sociedade. Eu bem sei que “40 não é 20, nem 50 é 30”, e envelhecer numa carreira que vem piorando as condições de trabalho é um desafio e tanto. Mas enquanto estivermos nela, não dá para trair o compromisso básico com as nossas funções.

Resista a adotar como saída “virar planta” num canto para “ficar livre”. Essa invisibilidade que busca o “pouco trabalho” pode, em princípio, parecer legítima num contexto de disputas de poder, falta de estrutura e até de abuso moral em diversas situações, mas ser parte do erro institucional não é uma alternativa, acredite. Isso também vale para quem se desculpa com “já faço meu máximo”, “não sei fazer melhor”, estando manifestamente aquém do mínimo que um advogado público precisa entregar. Cada um, no fundo, bem sabe quando está só se desculpando para justificar a própria omissão prejudicial às necessidades públicas. Sobreviver sem “deixar o serviço pra lá” é quase impossível, mas é exatamente essa a única solução sustentável para quem resolver ficar.

Pular de chefia em chefia fazendo política sem botar a mão na massa, nem encarar o dia a dia, é tão danoso ao Poder Público quanto desviar recursos. Raramente dizemos com todas as letras, mas alguns dos maiores prejuízos que a advocacia pública sofre são resultado de quem nela usa o(s) cargo(s) como “escada” de projeto pessoal de poder, costurando e alinhavando conchavos a portas fechadas. Isso sem falar em quem, nesse caminho, usa o poder de gestão para perseguir, acuar, manipular, inventar mentiras para afetar a honra alheia e somente atender seus próprios interesses. Não dá para ter a ilusão de que “o mundo gira e a justiça será feita” (na maioria das vezes não se faz justiça alguma e essas pessoas alcançam sem dificuldade seus objetivos de “chegar ao topo”). Um ponto positivo, contudo, é que esse tipo de comportamento é vício que o passar do tempo revela, não importa a história inventada como escudo e repetida incansavelmente na tentativa de convencimento típica aos tempos de pós-verdade. Daí manter-se a convicção de que nunca é tarde para seguir, com lucidez, enxergando o que nos rodeia e fazendo diariamente escolhas que pareçam acertadas e éticas.

A certa altura da vida, ser Pollyana ou “Alice no País das Maravilhas” não é uma opção. Fazer coraçãozinho “gratidão” e manter a cegueira que nos impede de assumir nosso relevante papel em um momento fundamental da história torna-se criminoso. Deixar de enxergar a desestruturação do serviço público, considerar-se intocável por ser advogado público, não se implicar na proteção indispensável aos cidadãos e adotar a filosofia egoísta “farinha pouca, meu pirão primeiro” é trair as exigências mais basilares da nossa função e se iludir, infantilmente, quanto aos riscos que já se mostram realidade. Não é questão de “se” vamos apanhar mais e mais no sistema, é “o quanto” e “até que ponto” sobreviveremos como instituição protegida constitucionalmente, em razão da sua importância social.

Sempre temos a digna opção de escolher outro trabalho. “Largar o serviço público” não é uma “loucura absoluta” como costumam dizer. Por vezes, é a única saída digna para se manter vivo e saudável. Se acha que não aguenta o tranco, vale a pena se estruturar e fazer a transição. Não é fácil, mas é melhor do que perder a saúde ou, pior, o respeito por si mesmo. Muitos não têm condição de se arriscar a uma dada altura da vida, por compromissos familiares e limites de outras naturezas. É muito compreensível, pois, a decisão de “ficar”. Mas fique direito. Fique cumprindo suas obrigações. Fique sem se desculpar pela desídia. Fique sem aproveitar de laços pessoais para se livrar do trabalho e obter benesses injustas. Fique sem usar o sistema ao seu favor com comprometimento da igualdade e da eficiência. Fique sem fazer discursos bonitinhos que escondem objetivos escusos e divorciados do interesse público. Fique sem fazer do serviço público “um bico” de segunda categoria. Fique resistindo às propostas ilícitas, às fraudes, às trocas sujas, à omissão absurda e à ação criminosa. Fique sabendo que queria sair, mas precisa ficar e ficará sendo um profissional sério. Fique merecendo o cargo de advogado público que exerce.

Hoje, 07 de março, em mais um dia para comemorar a Advocacia Pública, partilho os desafios que vislumbro em 2020: que sejamos capazes de evitar a desestruturação da nossa carreira e a contínua captura por interesses diversos do interesse público. Que saibamos que é preciso planejar os próximos passos para o aperfeiçoamento das atividades do contencioso e da consultoria. Que consigamos agir, resistindo à tentação de permanência em discurso abstrato, visto que “o bom é inimigo do ótimo” e que é melhor o “médio feito” do que “o ideal que ficou no papel”. Que como instituição saibamos barrar os sanguessugas e formemos espaços coletivos de decisão, com procedimentos de escolhas legítimas e comprometidas com a melhoria das condições de trabalho e de resultados. Que tenhamos coragem para quebrar com praxes antigas que não se sustentam em tempos de inteligência artificial. Aliás, que tenhamos cuidado ao adotar a IA para que esse recurso de fato traga benefícios no cumprimento das finalidades do Estado e não se limite a aumentar em progressão geométrica problemas graves e antigos, jamais enfrentados e que podem se esconder definitivamente sob o manto da suposta “objetividade tecnológica”. Que saibamos que trabalhar com afinco, enfrentando os nossos fantasmas pessoais e desafios externos, buscando motivação e força diariamente, encontrando um tanto de bom humor e alguma nova habilidade a desenvolver, é a melhor forma de resistir e fazer sobreviver uma referência absolutamente essencial às próximas gerações. Que descubramos como lidar com as diferenças de tantos perfis que integram a nossa carreira, tirando de cada um o que tem de melhor, com o reconhecimento disseminado das diversas habilidades, sem receio do brilho alheio e da partilha do sucesso. E que possamos merecer o reconhecimento pelo sucesso da nossa profissão.

Termino, repetindo minha esperança mais antiga e ainda sincera: “(…) uma Advocacia Pública forte, competente, independente, técnica e com atuação eficiente torna desnecessário boa parte do trabalho do Ministério Público e do Judiciário. O advogado público, próximo da realidade administrativa, evita que os problemas ocorram, o que dispensa o esforço dos órgãos de controle. No lugar de combater incêndios (com a atuação de órgãos do Judiciário, MP, Tribunais de Contas), que o Estado se convença da importância de NÃO DEIXAR RISCAR O FÓSFORO. E essa função, sem impedir a atividade administrativa, quem pode assumir com maior potencial de sucesso é o advogado público. O que se requer é a estruturação de um sistema em que o trabalho profissional dos membros das carreiras previstas constitucionalmente viabilize à Administração cumprir as suas obrigações, o mais celeremente possível, sem vícios que alimentem os temores e desesperança dos cidadãos.

Feliz dia da Advocacia Pública, queridos colegas.

 

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