Brumadinho: uma tragédia e muitos problemas (parte 6)

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1. A situação de crise

Quando acontece uma catástrofe como a de Brumadinho, algumas instituições públicas precisam atuar simultaneamente. Além daquelas cuja tarefa é lidar com as consequências imediatas (como o Corpo de Bombeiros, a Defesa Civil e as Polícias Militar e Civil), temos órgãos essenciais à Justiça (como a advocacia pública e a defensoria pública), inclusive os de controle (como o Ministério Público estadual e federal, os órgãos e as autarquias fiscalizadoras nos diversos níveis federativos e, quando provocado, o Judiciário). A independência das competências previstas no ordenamento para cada uma das instituições autoriza o trabalho dos seus membros na tentativa de minorar os danos e o sofrimento da população. Contudo, é clara a necessidade de uma articulação mínima, sob pena de atividades desordenadas originarem uma confusa teia estatal, sem os resultados necessários aos cidadãos.

Não se ignore a dificuldade de se estruturar a coordenação indispensável, tendo em vista a ausência de legislação brasileira que fixe os parâmetros para situações de crise em que o Estado tenha de agir, a pressão inerente a situações trágicas em que o sofrimento humano desloca a racionalidade e potencializa justificadamente reações múltiplas de inconformismo, a inevitável disputa pelo protagonismo comum nas diversas esferas de poder, o que aflora e se multiplica diante de cobranças duras da imprensa e da imensa comoção nacional, além da independência constitucionalmente assegurada a alguns órgãos como o Judiciário e o Ministério Público.

Em situações de crise extensa que desafia o equilíbrio dos diversos agentes públicos envolvidos, é preciso superar os problemas para se alcançar um mínimo de articulação e racionalidade estatal. As imagens do porta voz do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Minas Gerais representam, em boa parte, a serenidade, a resiliência e o comprometimento indispensáveis para o bom desenvolvimento do trabalho, inclusive com o reconhecimento da importância das tarefas realizadas por outros órgãos e entidades, com partilha do espaço de divulgação para que os interessados sejam informados. A credibilidade que resulta do exercício profissional nesses moldes assenta-se em habilidades essenciais no quadro funcional do Estado, bem como na veracidade e correção das atitudes e das informações.

No direito comparado, já se tem estudos sólidos sobre a ponderação e a prudência que se requer dos agentes públicos. Nesse sentido, François Monnier e Guy Thuillier escrevem que a prudência é, talvez, o primeiro vetor do administrador, na medida em que todos os outros vetores são regrados por este:

“É a prudência que o faz discernir o que é bom de fazer, bom de dizer, escolher, praticar, sustentar e o que não é. Ela o recorda sem cessar que ele não deve estar muito engajado, que ele deve ser discreto em suas opiniões, não portar julgamentos absolutos, sobre os outros mas também sobre si mesmo, sob pretexto de clarividência interior, não se manifestar quando não é muito competente. A prudência é um dos elementos fundamentais da razoabilidade, do bom senso do burocrata  (…) O administrador que se confronta a cada dia com a arbitragem entre interesses antagônicos, com dificuldades materiais e financeiras da gestão, com as pressões políticas, com protestos públicos e com acidentes sociais de toda sorte, deve exercer seu papel com seriedade. (…) A ponderação é também, para o administrador, saber conter seu poder. A tentação está lá, para ele, de fazer subir sua autoridade, mais do que simplesmente aplicar, a fim de tirar certas satisfações puramente pessoais. Saber medir e ajustar os meios aos objetivos perseguidos, saber moderar seu poder ao justo necessário não é algo dado a todos e requer uma certa dominação, um certo controle de si mesmo (…) Assim, quando se lança no estudo de uma questão, de um sistema, de uma instituição, de uma organização, deve ter interesse de reparar nas zonas de riscos, aquelas relativas ao provável, ao duvidoso, à incerteza. Não é possível se contentar de sair à demanda social e política, que reclama coisas claras, determinadas, certezas sob as quais é possível repousar, quando o analista, que seja pouco exigente e dotado de um mínimo de conhecimento da vida, somente encontra confusão, desordem e caos. A coisa administrativa é complicada.  Ela não se limita a questões jurídicas, normativas, nem à descrição dos organismos. O analista não é, não deve ser um fabricante de sistema, um doutrinador, um espírito rígido, incapaz de compreender a realidade (…). Ele deve colar à realidade, tal qual existe, mostrar o que faz a administração e como ela vive. É preciso se colocar em um estado de compreensão antes de comentar.” [1]

Atributos como prudência, capacidade de atuação conjunta das diversas esferas de poder, inclusive as de controle, construção de um “Estado em Rede” para enfrentamento da crise, com o uso de recursos adequados, serão objeto de análise no presente artigo.

 

2. Os desafios da emergência e os atributos para enfrentamento da crise

Imediatamente após um evento como o rompimento da barragem da Vale, medidas iniciais devem ser tomadas para reduzir a amplitude dos danos causados. Destaque-se, no caso de Brumadinho, a atuação da Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais que, oito horas após a tragédia ocorrida em 25.01.2018 (sexta-feira), ajuizou ação cautelar no bojo da qual obteve liminarmente o bloqueio de 1 bilhão de reais, tendo sido acordado no dia seguinte com o representante da empresa o depósito judicial em conta específica para realização das providências inicialmente necessárias, o que foi cumprido na segunda-feira subsequente, sendo o montante gerenciado para viabilizar uma série de medidas operacionais imediatas e indispensáveis na esfera administrativa e social. Em situações dessa natureza, o próprio aprendizado com crises anteriores implica conhecimento especializado para lidar com a gravidade do problema, sendo perceptível a urgência de determinadas providências as quais, tomadas, evitam ampliação indevida de uma realidade trágica.

À obviedade, o processo de gestão de uma crise dessa monta é demorado, com sofrimentos insuperáveis, intercorrências várias e problemas subsequentes a serem monitorados e objetivamente enfrentados. Para tanto, é preciso que se organizem equipes e se admitam parceiros para realizar as operações necessárias, as quais devem integrar um plano capaz de responder às demandas. O foco, muito além da avaliação da situação, deve se manter em concretamente realizar as medidas indispensáveis a que se minorem os prejuízos causados, com apoio aos atingidos e envolvidos nas operações, o que requer um mínimo de coordenação e tempestividade, respeitada a urgência de certas medidas.

Autores como Cabral de Moncada elucidam que as tarefas técnicas do Estado Social lhe colocam um óbvio problema de eficácia. “A actividade material própria do Estado Social administrativo, ao ritmo da efectivação dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais depende, portanto, da capacidade da orgânica interna da Administração e da idoneidade dos meios utilizados.”, ao que acresce:

“O modo como está organizada a Administração e o teor (técnico) da respectiva actividade material, numa perspectiva objectiva, são vitais para a efectividade dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, e repercutem-se imediatamente no todo social e não apenas nas esferas jurídicas individuais. (…) Daqui resultam todo um conjunto de novos deveres administrativos de natureza positiva, juridicamente irrelevantes até então, posto que imersos sob o véu anódino dos receitos da <<boa administração>> indiferentes ao direito, mas para os quais a atenção está agora completamente desperta. (…) Tais novos deveres passam a integrar um novo tipo de legalidade administrativa com reflexos para o interior da orgânica da Administração e na qualidade e eficácia dos meios técnicos usados, no pressuposto da respectiva relevância imediata na condição social dos cidadãos.”[2]

É essa construção de uma nova legalidade, de um modo contemporâneo a viabilizar a atividade do Estado, que se requer em situações de crise como a enfrentada em Brumadinho. Algumas condições são indispensáveis ao sucesso da empreitada sem sacrifício das exigências constitucionais, mas, ao contrário, buscando lhes dar concretude, senão vejamos.

3. A atuação articulada e coordenada: o Estado “em rede”. Um desafio para os órgãos administrativos e de controle.

Conjugar a atuação de órgãos tão diversos como do Corpo de Bombeiros à defensoria pública atrai o conceito de “Estado em Rede”, na qual vários órgãos e autoridades atuam, cada um na sua seara, mas de forma coordenada de modo a assegurar a proteção ao interesse público primário. Nesse sentido, a administrativista Maria Coeli Simões Pires leciona:

“O Estado em Rede, sob denominações diversas, é uma arquitetura político-administrativa de difusão do poder decisório da esfera pública em uma rede articulada de governança, na qual o ente estatal compartilha sua autoridade internamente e com instituições, instâncias, organizações e atores diversos, conexionados por pontos nodais que sustentam múltiplas relações de distensão do poder em lógica pluricêntrica.”[3]

Ao analisar a noção de Administração em Rede, a professora mineira invoca o princípio da coordenação “que permite integrar e unificar a ação administrativa, mediante mecanismos de compartilhamento de informações e alinhamento de diretrizes e objetivos, evitando sobreposição de competências e duplicação de níveis decisórios”.[4]

É preciso evitar a duplicação de níveis decisões, viabilizar compartilhamento de informações que tornem possível a realização tempestiva das medidas necessárias, de forma correta (juridicidade), com o maior grau possível de estabilidade (segurança jurídica) e capacidade de evitar danos futuros (precaução e prevenção), além de minorar os prejuízos já ocorridos (objetivo ressarcitório). Como bem acentuou a professora Maria Coeli,

“a administração em redes deve buscar os chamados nós de convergência, identificando as diversas forças sociais e políticas que sobre ela atuam, para, sob a arquitetura institucional própria, construir os ambientes propícios à tomada de decisões.

Não se defende aqui uma comunicatividade formal e estéril, mas o soerguimento de estruturas e expedientes administrativos plenos de conteúdo.”[5]

A interação entre os órgãos públicos deve se dar da forma mais simples possível, dando concreção às exigências constitucionais de eficiência e economicidade. Tem-se como instrumento adequado o uso dos recursos eletrônicos disponíveis em razão do recente e acentuado desenvolvimento tecnológico. Em determi­nadas searas, ferramentas como o uso de sistemas de dados, comunicação por email e redes internas, bem como consulta à informação disponibilizada na internet podem ser eficazes para o aperfeiçoamento da ação administrativa.

Com fundamento na doutrina italiana e francesa, o Procurador do Estado Érico Andrade, no artigo intitulado “A simplificação administrativa”, adverte que a importância da simplificação administrativa sobe de importância quando se percebe, hoje, que o cidadão tem toda a sua vida permeada pelo direito público, valendo-se da doutrina francesa, para frisar que “a ideia da simplificação é ligada às preocupações da época atual, que exige a adequação do direito à sociedade: intelegibilidade, acessibilidade, conhecimento e simplificação.” (ANDRADE, Érico. Simplificação administrativa. In: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves et al. Tendências e perspectivas do direito administrativo. Coordenadores Onofre Alves Batista Júnior; Sérgio Pessoa de Paula Castro. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 31-57)

A premissa da simplificação, a necessidade de tempestividade nas atitudes e o princípio da eficiência aliados à ideia de “Estado em rede” constroem o paradigma de governança institucional, planejamento e execução de competências comprometida com a cidadania, ao que se acresce o resultado do aperfeiçoamento no exercício das competências públicas, de modo a concretizar o próprio controle responsivo de legalidade.

Especificamente quanto ao controle, cabe trazer a lúcida observação do professor Paulo Modesto:

“O controle não é um fim em si mesmo. Ele é um instrumento para o aperfeiçoamento da Administração e para a busca de eficiência e efetividade. A presunção de que o controle valha por si só, como se a mera existência de estruturas de controle seja suficiente para a Boa Administração trai uma visão formalista do controle. (…) Ademais, será um bom sistema de controle se aferir também os resultados das políticas públicas e das ações administrativas, verificando o quanto elas estão a reverter para a sociedade.

Neste sentido é que se diz que o controle deve ser responsivo ou que deve ter um viés pragmático ou consequencialista. Em uma palavra, qualquer órgão ou agente incumbido do controle (Tribunal, órgão administrativo ou Corte de Contas) deve sempre perquirir e avaliar as conseqüências da medida de controle antes de adotá-la. Não para tornar o controle mais lasso, mas para modular as medidas corretivas ou acautelatórias no sentido de que elas tenham o menor impacto para o interesse público mais denso envolvido no caso.”[6]

Em situações de comoção extensa, não só no país como em todo o mundo, é preciso especial foco no controle responsivo. Se as esferas fiscalizatórias não atentarem para uma atuação coordenada e comprometida com o resultado de efetivamente ressarcir os prejuízos e evitar novos danos, teremos múltiplas ações casuísticas, sem qualquer possibilidade de concretização dos objetivos buscados, numa briga por protagonismo ou fundada na certeza da “melhor solução individualmente concebida” que certamente ampliará a dor dos atingidos. É necessário um efetivo compartilhamento de dados e informações, entre os distintos atores que exercem competência na seara, ao que se acrescente uma articulação institucional entre os órgãos, mesmo aqueles a quem a Constituição assegura a indispensável independência técnica dos membros. Em catástrofes, com grande sofrimento humano, é descabido que agentes públicos se pretendam heróis “domquixotescos” com atuações isoladas, visto que a coordenação é um caminho inevitável a ser percorrido.

A doutrina já vem advertindo que os envolvidos em lutas da Administração Pública devem evitar usar sua posição e sua instituição para alcançar reconhecimento ou vantagens pessoais, sendo necessário que se tenha profissionalismo nos quadros funcionais:

“(…) a administração democrática requer profissionalismo, que adere à ética profissional, e padrões de excelência: evita causar dano, mantém-se atualizado, cuida de projetar sua imagem e garantir sua reputação pela competência, produtividade, disciplina e constante aperfeiçoamento. (…) Acredita-se que pressões internas, combinadas com pressões externas de um número cada vez maior desses idealistas, mais a persistente proposta de mudança, possam transformar todo o cenário em um mundo melhor, menos perverso.”[7]

De quem estuda e operacionaliza o direito público requer-se a explicitação desse novo prisma de Estado e da juridicidade necessária à reconstrução subsequente a uma grande tragédia. Para tanto, não se pode opor os órgãos públicos e as entidades administrativas à sociedade, nem tampouco imaginar que as soluções de que se necessita imediatamente e a médio prazo encontram respostas em regras legais específicas já em vigor. Como já escreveu Rogério Ehrhardt Soares, “Sendo assim, o conceito amplo de Estado não se opõe a sociedade, nem o Estado receia ou ameaça a sociedade. Ele é a própria sociedade. Não, porém, no sentido de que se identifique com qualquer grupo de pessoas ou com a personificação do grupo. Apenas no sentido de que com isso queremos significar uma organização de relações que se orientam por valores políticos.” O Estado não deixar organizar-se em termos duma perfeita correspondência material das funções a um sistema de órgãos:

“O legislativo vê-se constrangido a assumir tarefas que caberiam, ao executivo; o executivo utiliza instrumentos legislativos, quer no que toca ao uso de poderes regulamentares (que só não cabem num conceito político de lei), quer na utilização cada vez mais frequente de delegações; e finalmente o judicial pode tomar medidas de carácter executivo, senão mesmo legislativo. (…)

É ao jurista, encarregado da aplicação do direito, que cabe não perder a intenção de diuturnamente actuar a promessa encerrada na constituição.

É ao jurista teórico que incumbe o dever de, nas suas construções, se fazer eco do grito de alarme de moralistas, sociólogos e politólogos.

Se tal fizer, o Estado de Direito poderá continuar a ser no mundo de hoje uma ideia carregada de sentido; e, em vez do baço domínio da lei, estender-se-á a rule of law.” (Estado de Direito = Estado de Justiça) (p. 164)

“Naturalmente, que o Estado de Direito não se realiza de acordo com uma fórmula, não é obra de execução. Nem é edifício que se possua acabado, se se incluírem numa organização política da sociedade certas garantias técnicas, ao gosto das formalizações dum mecanismo jurídico. É fundamentalmente uma obra de intenção e de tensão, um <<trabalho>> simultâneo de Prometeu e Sísifo.”[8]

Resulta claro que o enfrentamento de catástrofes como a de Brumadinho nos coloca diante de uma nova realidade jurídica que, mais que um “Direito Administrativo da Crise”, nos coloca diante da complexificação das relações sociais e públicas, exigindo adequada alocação orçamentária, estruturação das prioridades a serem atendidas, respeito à procedimentalização indispensável a um mínimo de correção dos atos praticados, com exclusão de eventual apropriação indevida de recursos comprometedora da moralidade, eficiência e imparcialidade estatal. Estruturar normas que tornem concreto o Estado de Direito em situação extraordinária não pode significar comprometimento das exigências principiológicas constitucionais, nem mesmo o atendimento emergencial ignorar a visão estratégica de médio e de longo prazo indispensável em tragédias de extensas consequências, inclusive temporais. É certo que ações ousadas e à margem da literalidade das regras legais específicas serão realizadas, com o rompimento inevitável da cultura da legalidade estrita, o que implica certa margem de risco. No entanto, também é certo ser inevitável que os envolvidos precisam render-se à tarefa, equalizando os perigos, utilizando suas habilidades profissionais e assumindo novas responsabilidades inevitáveis na situação excepcional. Somente assim a turbulência, que não se limita ao momento inicial da crise, poderá ser superada pela atuação “em rede” dos diversos órgãos e autoridades dos diferentes Poderes, cada um na sua seara, mas de forma coordenada buscando assegurar a proteção aos interesses da sociedade (fim do autismo institucional).

De cada um dos servidores públicos se pede aperfeiçoamento, dedicação, humildade e disponibilidade para construir uma nova realidade estatal. Conforme o clássico ensinamento de Rafael Entrena Cuesta, se o êxito ou o fracasso de uma Administração vem determinado não somente pelas leis que a regulam, senão, fundamentalmente, pela qualidade do pessoal que a ela se integra, está claro que poucos aspectos de uma política da função pública revestirão na prática tanta importância como a seleção dos funcionários públicos e sua preparação e aperfeiçoamento para que em cada momento possuam os conhecimentos e a experiência necessários para o adequado desenvolvimento das tarefas que se lhes encomendam.[9]

3.1. Da distinção entre “construir um Estado em Rede em situação emergencial” e “autorizar atividade à margem do ordenamento” ao argumento de um “estado de necessidade administrativo”

No direito público, as ideias de juridicidade e de Estado Democrático de Direito prestam-se a excluir o arbítrio dos comportamentos estatais. Compreendido o ordenamento em sua integralidade, almeja-se, mediante atividade hermenêutica que reconstrói o sentido das normas diante de cada realidade, a ausência de lacunas, de modo a evitar o autoritarismo e garantir segurança jurídica, além da realização dos objetivos sociais.

Reconhece-se que as normas que integram o regime administrativo são concebidas, em regra, a partir de uma situação de normalidade pública e social. Destinam-se a essas realidades em que não há turbulências excessivas, nem mesmo situações de crise e muito menos tragédias ambientais. É certo, no entanto, que os países, ao longo da história, passam por emergências de natureza diversa, sejam de origem política, econômica ou até mesmo em razão de guerras. Estados-membros como Minas Gerais têm enfrentado, com reiteração absurda, crises extensas por tragédias ambientais que colocam demandas impossíveis de serem satisfeitas pelas regras específicas editadas para o cotidiano de normalidade social Discute-se, então, qual o Direito a ser aplicado em tais circunstâncias. Qual o conjunto de normas que se aplica às relações jurídicas na hipótese de uma crise que causa significativa anormalidade empírica?

Afirmou-se, de início, que a legalidade concebida para períodos normais não deve prevalecer em momentos graves de crise, principalmente se há risco quanto à manuten­ção da própria ordem jurídica e do equilíbrio social. Uma realidade excepcional, que implique graves riscos para a sociedade, não poderia, pois, submeter-se à normação instituída para o cotidiano habitual das relações jurídicas. Diante do que se convencionou chamar “Estado de Crise”, “Direito Administrativo Excepcional”, “Direito Administrativo Extraordinário” “Direito Administrativo da Crise”, surgiu a chamada “Teoria das Circunstâncias Excepcionais”.

No direito francês, há quem entenda a teoria das circunstâncias excepcionais como uma exceção ao princípio da legalidade. Outros falam, ainda, em correção do princípio da legalidade.[10] Não há dúvida quanto à sua origem a partir da jurisprudência do Conselho de Estado francês, durante a primeira guerra mundial, entre 1914 e 1918. O contencioso administrativo entendeu por bem liberar as autoridades públicas da obrigação de cumprir normas que habitualmente vinculariam o exercício das suas competências, em virtude das circunstâncias peculiares à guerra. Assim, reconheceu a agentes de polícia poderes cujo exercício não admitiria em tempos de paz. No arrêt Heyriès, invocou as circunstâncias excepcionais da guerra para autorizar o governo suspender, por decreto, determinações legais (lei de 22.04.1910), o que seria antijurídico em circunstâncias normais.[11] Durante a guerra de 1939, a jurisprudência do Conselho de Estado teve nova oportunidade para fazer incidir a teoria dos poderes de guerra, em especial para declarar legítimas medidas admi­nistrativas exorbitantes editadas por autoridades locais (ex: requisições, taxações, interdições, suspensões de funcionários sem observância da forma e dos pressupostos legais). Fora do período de guerra, também admitiu a existência de circunstâncias excepcionais capazes de liberar a Administração de executar sentenças, tendo em vista risco de desor­dens políticas e sociais graves. Foi o entendimento que prevaleceu quando do julgamento da recusa, pela Administração, de expulsar tribos indígenas instaladas na Tunísia, a des­peito de haver decisão judicial nesse sentido. Afirmou-se que a execução da decisão judicial tinha como risco provocar uma revolta no sul tunisiano, circunstância excepcional autorizadora da negativa administrativa em promover a expulsão.[12]

Em situações anômalas, portanto, foi suspensa a obrigatoridade de cumprir regras legais que normalmente vinculavam os agentes públicos, ampliando-se suas competências administrativas. Entendeu-se que, diante de situações extraordinárias e urgentes, eram necessárias respostas extraordinárias do Poder Público, nem sempre conformes a “legalidade normal”, e não seria cabível falar em ilicitude na espécie.

A partir de tais ponderações, a doutrina francesa enumerou os requisitos sem os quais não é possível falar em teoria das circunstâncias excepcionais: a) é preciso que haja uma situação fática anormal, exorbitante da realidade administrativa cotidiana; em outras pala­vras, é necessário que se esteja diante de uma situação realmente excepcional; b) em face das circunstâncias excepcionais, é mister que a Administração não possa agir conforme as regras legais que normalmente incidiriam no caso; em outras palavras, é forçoso que esteja caracterizada a necessidade absoluta de subtrair o comportamento público da “legalidade comum”; c) é indispensável caracterizar que a incidência da “legalidade comum” à situação extraordinária coloca em risco um interesse público de fato relevante; ou seja, deve-se estar diante de um significativo risco social; d) por fim, a medida excepcional tomada pela Administração deve ser uma resposta adequada para a proteção do interesse público que justifica a subtração à regra legal comum; em outras palavras, exige-se vínculo de adequação entre a situação empírica anômala e a providência administrativa excepcional.

Presentes estas condições simultaneamente, entendeu-se lícito ao Conselho de Estado suspender a “legalidade normal” vinculante da Administração e dos terceiros, com a remoção, se necessário, de certas obrigações e obstáculos impostos pela lei. Nesse contex­to, incabível que o juiz considere irregular o ato administrativo contrário à regra legal comum, ausente a viabilidade de responsabilização pública.

Como consequências dessa teoria, foram indicados os seguintes efeitos possíveis: a) uma autoridade pode exercer competência que não lhe foi outorgada por nenhuma regra escrita e, ainda, desrespeitar regras de forma ou de fundo em vigor, sem ilegalidade; b) uma autoridade administrativa, mesmo sem autorização legal, pode transferir competência que lhe foi atribuída por lei, sem qualquer irregularidade; c) uma autoridade administrativa pode tomar as medidas que sejam necessárias para o enfrentamento das circuns­tâncias excepcionais como, p. ex., a suspensão do cumprimento de uma lei.[13] Segundo René Chapus, satisfeitas as exigências para a incidência da teoria das circunstâncias ex­cepcionais, as autoridades administrativas encontrar-se-ão investidas do poder de tomar medidas impostas pelas circunstâncias, as quais poderão justificar inobservância não so­mente das regras de procedimento e forma, mas também da repartição de competência entre as autoridades administrativas, assim como ignorância das regras de fundo.[14]

À luz de tais consequências, a doutrina francesa adverte que não é o conjunto da legalidade que é automaticamente suspenso, mas apenas a competência que o Conselho de Estado declara ampliada. E isto apenas ocorre pelo fato de o legislador não ter previs­to, de modo expresso, para o período de crise, a extensão dos poderes da Administração. Surge, então, a teoria das circunstâncias excepcionais para reparar a lacuna jurídica existente. A despeito da sua incidência, a atividade administrativa continua submetida ao controle judicial, sendo possível a interposição de recursos ao juiz administrativo que examinará se ocorreu, ou não, excesso aos limites da legalidade ampliada.[15]

Há quem entenda que a teoria das circunstâncias excepcionais revive, na verdade, uma concepção mais antiga e mais geral: a chamada teoria da necessidade.[16] O “estado de necessidade administrativo” serviria para fundamentar quaisquer medidas extraordinárias praticadas com o objetivo de romper situações de crise e proteger a segurança social. Doutrinadores esclarecem que sobretudo a literatura italiana identifica a “necessidade” como fonte autônoma de direito, que sequer necessita de consagração em normas formais da Constituição.[17] Também assim já se entendeu quanto a construções acadêmicas que se referem ao “Direito Administrativo da crise”, “Direito Administrativo extraordinário” ou “Direito administrativo especial”.

É manifesto o perigo inerente a teorias dessa natureza, sendo irrelevante a nomenclatura de que se revestem em cada país. Viabilizam que agentes administrativos suspendam exigências legais, sem fundamento normativo que lhes sirva de amparo. Autorizam ofensa a liberdades e garantias individuais, o que em período normal seria vício grave caracterizador de ilegalidade insanável e responsabilização imperiosa em diversas searas (penal, civil e administrativa). Vislumbra-se, em seus termos, espaço para medidas arbitrárias, típicas de Estados totalitários, incompatíveis com o modelo de Estado Democrático de Direito perseguido em países como o Brasil.

Não se ignora a necessidade de, em situações de crise (guerra, desastres ambientais de grandes proporções, tumultos, calamidade pública), afastar normas que, embora sejam normalmente adequadas para regulação dos vínculos administrativos, comprometeriam o interesse público colocado em risco naquelas específicas circunstâncias extraordinárias.[18] Também se reconhece a importância de formatar vínculos não habituais que ensejem as providências necessárias diante da situação de emergência, com normatização administrativa adequada à realidade. Reconhecer isso não equivale, contudo, a autorizar que o exercício de competências públicas fique à margem da juridicidade. É preciso definir qual o modo constitucional de se fazer frente aos períodos de crise grave enfrentados pelos diversos Estados. A resposta certamente não implica recusar força normativa à Constituição, nem mesmo usurpar competência privativa do legislador. Afinal, a emergência grave, presente em dada realidade, não pode levar, por si só, à gênese de um novo Poder do Estado, com funções reconhecidas sem quaisquer limites prévios dispostos no ordenamento.

Recusa-se à teoria das circunstâncias excepcionais ou ao estado de necessidade administrativo ou ao direito administrativo da crise a função de válvula de escape por meio de que se reconheceria ao agente público competências sequer consideradas pelo direito vigente. Como aduz Adolfo Merkl, “Trata-se, no fundo, de algo inconcebível, porque uma violação do direito nunca será juridicamente possível, nem pode ser consagrada pela ciência jurídica (…).”[19]

O mínimo que se espera de um Estado Democrático de Direito é que no seu ordenamento estejam estabelecidas quais normas, mesmo de significado aberto, serão aplicáveis em tempo de crise. Como assevera Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o Estado de Direito procura fixar as normas destinadas a ensejar o restabelecimento da ordem, da normalidade presumida e projetada, quando isso não puder ser feito pelos meios ordinários. Afinal, como escreveu Maquiavel, “Uma república não será perfeita (…) se sua legislação não tiver previsto todos os acidentes que podem ocorrer com os respectivos remédios”.[20]

Sendo assim, em princípio espera-se que a ordem jurídica consagre os poderes extraordinários que serão reconhecidos aos agentes públicos, na exata medida em que se mostrar necessário para enfrentar momentos extraordinários de crise. Em relação aos atos administrativos contrários às regras legais comuns, a exclusão da sua ilicitude depende de previsão normativa nesse sentido, inserida em específica figura jurídica com base constitucional. A ausência de normas de menor densidade normativa, essenciais na operacionalização de um sistema jurídico aberto, necessário na construção do Estado de Direito em realidades como a de Brumadinho, requer observância dos princípios constitucionais e a elaboração de vínculos dentro dos limites das competências previstas no ordenamento, de modo a equilibrar o atendimento das demandas urgentes com um mínimo de juridicidade.

Em situações críticas como as de catástrofe ambiental com perda de centena de vidas humanas, é preciso buscar no próprio ordenamento os instrumentos extraordinários adequados à proteção das necessidades sociais. Assim procedendo, não se estará tratando de um mero “estado de necessidade administrativo”, mas de um verdadeiro “direito de necessidade administrativo”, porquanto não apenas decorrente da realidade, mas também embasado na ordem jurídica de regência, embora extraordinariamente.

Com habitual lucidez, Canotilho aduz que esse direito de necessidade reconduz-se, fundamentalmente, ao seguinte: previsão e delimitação normativo-constitucional de instituições e medidas necessárias para a defesa da ordem constitucional em caso de situação de anormalidade que, não podendo ser eliminada ou combatida pelos meios normais previstos na Constituição, exigem recurso a meios excepcionais. “Trata-se, por conseguinte, de submeter as situações de crise e de emergência (guerra, tumultos, calamidades públicas) à própria Constituição, ‘constitucionalizando’ o recurso a meios excepcionais, necessários, adequados e proporcionais, para se obter o ‘restabelecimento da normalida­de constitucional’.” Explica o constitucionalista português que o que se busca é a consa­gração de um “direito de necessidade constitucional” e não de um simples “estado de necessidade desculpante”. Não se trata de atribuir à disciplina extraordinária uma “causa de justificação” eventualmente excludente de culpa por fatos ou medidas praticadas (o que pressupõe sua ilicitude constitucional). Trata-se de uma “causa justificativa” que exclui a ideia de ilicitude dos fatos e medidas (o que implica reconhecer o direito e o dever das autoridades competentes recorrerem aos meios excepcionais necessários a afastar a crise que ameaçam a ordem constitucional democrática).[21]

Isso significa afastar a possibilidade de se falar em um estado de necessidade “supra ou extra constitucional”, preservando íntegra a juridicidade vinculante de todos os comportamentos públicos. Cria-se um direito de necessidade administrativo, convertido em um direito de exceção capaz de substituir a legalidade normal, se presentes as condições pré-determinadas pelo ordenamento e com integral respeito a pressupostos constitucionais inafastáveis como os princípios vinculantes da Administração Pública.

São claras as dificuldades de se pormenorizar institutos que, por essência, destinam-se a tratar de momentos imprevistos e extraordinários da vida social. Malgrado tais dificuldades, é indispensável que referida disciplina normativa integre a ordem jurídica.

Como leciona Canotilho: “O direito de necessidade constitucional não é um direito fora da Constituição, mas um direito normativo-constitucionalmente conformado. O regime das ‘situações de exceção’ não significa ‘suspensão da Constituição’ ou ‘exclusão da Constituição’ (exceção de Constitui­ção), mas sim um ‘regime extraordinário’ incorporado na Constituição e válido para situações de anormalidade constitucional.”[22]

Superadas as demandas urgentes e extraordinárias do momento de crise decorrente da tragédia colocada à gestão do Estado e sendo possível o retorno ao cotidiano ordinário da Administração, incidirá a “legalidade normal”. Enquanto perdurar a emergência inerente ao momento de crise, situação extraordinária a ser enfrentada pelo Poder Público, cabe-lhe valer dos institutos e medidas excepcionais previstos no ordenamento em vigor, bem como construir dentro das exigências constitucionais e distribuição de competências do ordenamento vínculos e providências capazes de atender as peculiaridades de situações de crise. Em nenhuma das hipóteses é legítimo falar em exceção ao princípio da juridicidade. Em todas elas, tem-se um claro desafio para os envolvidos. Mais um. E não é o último.

[1] MONNIER, François. THUILLIER, Guy. Administration: vérités et fictions. Paris: Economica, 2007, p. 305-306; 310-312; 332-333.

[2] MONCADA, Luís S. Cabral. A relação jurídica administrativa: Para um novo paradigma de compreensão da actividade, da organização e do contencioso administrativos. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 547;549-550.

[3] PIRES, Maria Coeli Simões. Transparência e Responsabilidade na Gestão Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 81, n. 4, ano XXIV, out./dez. de 2011, p. 61.

[4] PIRES, Maria Coeli Simões. Transparência e Responsabilidade na Gestão Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, op. cit., p. 66.

[5] PIRES, Maria Coeli Simões. Transparência e Responsabilidade na Gestão Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, op. cit., p. 67.

[6] MODESTO, Paulo (Coord.). Nova Organização Administrativa Brasileira. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 207.

[7] VALDÉS, Daisy de Asper y; CAIDEN, Gerald E. Corrupção: o excesso de peso nas costas do cidadão. Boletim Científico: Escola Superior do Ministério Público da União. Brasília: Ministério Público da União. Ano 5. nºs 20/21, julho/dezembro de 2006, p. 272-273.

[8] SOARES, Rogério Ehrhardt. Direito público e sociedade técnica. Coimbra: Tenacitas, 2008, p. 117; 135 e 164.

[9] CUESTA, Rafael Entrena. Curso de derecho administrativo. v. 1/2. 11ª ed. Reimp. Madrid: Editorial Tecnos, 1996, p. 272-273.

[10] LAUBADÉRE, André et al. Droit administratif. 15ª ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1995, p. 91.

[11] VEDEL, Georges ; DEVOLVÉ, Pierre. Droit administratif: 12ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. t. 1, p. 504.

[12] LAUBADÉRE, André et al. Droit administratif. op. cit., p. 92.

[13] MOREAU, Jacques. Droit public: théorie générale de l’État et droit constitucionnel droit administratif. t. 1. 3ª ed. Paris: Economica, 1995, p. 294-296; VEDEL, Georges ; DEVOLVÉ, Pierre. Droit administratif: 12ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. t. 1, p. 505.

[14] CHAPUS, René. Droit administratif général. 10ª ed. Paris: Montchrestien, 1996, p. 994.

[15] LAUBADÉRE, André et al. Droit administratif. op.cit., p. 93/95. VEDEL, Georges ; DELVOLVÉ, Pierre. Droit administratif, op. cit., t. 1., p. 507.

[16] MOREAU, Jacques. Droit public: théorie générale de l’État et droit constitucionnel droit administratif. t. 1. op. cit., p. 294.

[17] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1996, p. 1147.

[18] Como bem assevera Garcia Pelayo, “o legislador que em tempos de distúrbios e transtornos aspira governar com as leis comuns é um imbecil, o que em tempos de distúrbios e transtornos aspira governar sem lei é um temerário.” (In: COMADIRA, Julio Rodolfo. Derecho administrativo: acto administrativo, procedimento administrativo, otros estudios. 2ª ed. Buenos Aires: Lexis Nexis, Abeledo-Perrot, 2003, p. 229.)

[19] MERKL, Adolfo. Teoría general del derecho administrativo. Granada: editorial Comares, 2004, p.214.

[20] In: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.110.

[21] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, op. cit., p.1145-1146.Também Adolfo Merkl diz que “A teoria dominante tem razão enquanto se nega a incluir na administração manifestações não condicionadas juridicamente e que, por esta razão, são impropriamente qualificadas de direito necessário.” (MERKL, Adolfo. Teoria general del derecho administrativo, op. cit., p.70)

[22] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional.  op. cit., p.1154; 1146.

 

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