Brumadinho: uma tragédia e muitos problemas (parte 5)

Tempo de leitura: 26 minutos

1Atuação unilateral do Estado ou participação privada e acordo/consensualização?

O direito ambiental é uma das searas mais próximas do direito administrativo a sofrer consequências diretas de algumas das suas “revoluções cíclicas”.  Se a discussão a propósito da atuação unilateral do Estado em atividades como controle prévio e posterior do meio ambiente já havia cedido lugar à participação do cidadão e das empresas na formação da vontade pública, agora é provável que iniciemos um outro momento. Isso porque o fato de o Estado não ter feito o acompanhamento devido dos dados privados trazidos para o licenciamento, omitindo-se na fiscalização das barragens de resíduos de minério pela agência responsável, com uma tragédia da monta de Brumadinho como  resultado, coloca em xeque a amplitude da participação do setor privado na formação do juízo administrativo que permite determinadas atividades e obras de risco, deixando clara a imprescindibilidade da atividade pública unilateral comprometida e responsável com as atribuições de polícia administrativa impostas pelo ordenamento.

Para se compreender do dilema entre “atuação unilateral do Estado ou “participação privada e acordo/consensualização”, é preciso fazer alguns esclarecimentos de natureza jurídica, inclusive com uma visão histórica na própria seara da Ciência Jurídica.

1.1 O ato administrativo de natureza ambiental como manifestação unilateral do Estado: críticas e defesa

A doutrina majoritária em países como a Alemanha já defendeu a primazia dos atos administrativos como meio basilar de expressão da vontade pública em se tratando de competências típicas do Estado (p. ex., polícia administrativa). Segundo Otto Mayer, o “Estado só manda unilateralmente”, sendo o contrato “uma forma repugnante à própria essência do Direito Público. Autores de inspiração francesa defenderam a possibilidade de o Estado adaptar o contrato quando travasse relações de Direito privado. Em momento subsequente, adotou-se o contrato administrativo como sinal de modernidade, representando a evolução no sentido de uma Administração contratualizada. “O contrato administrativo surgiu quando a Administração começou a sentir-se ‘espartilhada’ nos esquemas contratuais rígidos do Direito Privado, nos quais não podia mover-se a seu bel-prazer nem podia, nomeadamente, alterar as cláusulas ao sabor das variações do interesse público. (…) No entanto, também repugnava que à Administração fosse permitido em tais casos, o recurso à solução unilateral e autoritária. Por estas duas razões, a única solução possível foi a da criação do ‘expediente’ do contrato administrativo que, sob a forma contratual, escondia uma realidade na qual a Administração poderia, em última instância, recorrer às suas prerrogativas de controle.”[1]

No direito administrativo brasileiro identifica-se a primazia da atuação unilateral do Estado e das pessoas de direito público, mediante atos administrativos. Desde o final do século XX, entretanto, cresce o movimento de “consensualização” em relação às funções administrativas do Estado. A ideia de uma Administração dialógica, que busque previamente o acordo com aquele que será atingido pela competência administrativo, é adotada em algumas searas como, v.g., no exercício do poder disciplinar e de polícia (mediante celebração de TACs), no andamento dos processos administrativos (com a negociação processual aplicável subsidiariamente após a vigência do Novo CPC), dentre outros instrumentos. Parte da doutrina brasileira passa a criticar a própria figura do ato administrativo. Torna-se comum questionar: “O ato administrativo morreu?”

Não se ignorem críticas aos próprios atributos dos atos administrativos, vinculando-os a um período ditatorial da história do Brasil: “Os atributos dos atos administrativos, embora reconhecidos e justificados majoritariamente pela doutrina como compatíveis com os direitos individuais, foram exacerbados em regimes ditatoriais a fim de justificar as arbitrariedades impostas – especialmente nas décadas de 1960 e 1970.” A ideia é a de que, como no final século XX, exacerbaram-se a valoração dos direitos fundamentais e afirmação da força normativa da Constituição, o que traz o acordo como alternativa de atividade administrativa.[2]

De fato, generalizou-se a crítica ao ato administrativo como instrumento tradicional de atividade administrativa: “Na verdade, seja como objeto, seja como conceito a noção de ato administrativo está a desafiar uma revisão da literatura. A meu ver, isso não ocorre da imprestabilidade do conhecimento acumulado em torno do tema, mas do fato de que a noção de ato administrativo sofre o impacto de uma série de transformações.” Essa a lição de Floriano Azevedo Marques Neto segundo quem a visão tradicional refletia a ideia da autoridade como fonte do ato administrativo e o administrado com pouca – talvez nenhuma – importância, reduzido a sujeito do provimento administrativo, seja como beneficiário, seja como detentor de direitos a sofrer ablação. A teoria do ato administrativo teria, assim, forte influência positivista, privilegiando-o como manifestação unilateral de vontade da autoridade, com importância dos requisitos internos de validade, sem considerar as interações com os interesses e atores externos ao sistema. A participação dos interessados na formação do ato, o juízo de otimização (proporcionalidade) como condição para validade, a ponderação dos interesses envolvidos, sua utilidade para respeito ou consagração a direitos fundamentais não tem, sob esse ponto de vista, lugar de destaque na teoria tradicional. Daí o professor da USP falar em “ato administrativo autista”, com um brutal déficit de comunicação com o meio ambiente cultural, social, econômico, ao que acresce manifesta indiferença com administrados e sociedade (destinatários e razão de ser desses atos) e quanto ao meio: “Aquilo que num primeiro momento procura imunizar o ato das interferências da política, da economia, da cultura e, para tanto, coloca o administrado na condição de mero espectador e destinatário do ato. (…)

Nesta acepção, o ato administrativo autista poderia ser definido como a manifestação unilateral da Administração Pública, por intermédio de agente competente, no exercício de poder extroverso e praticado em cumprimento estrito de um comando legal, sujeitando-o ao controle judicial quanto aos aspectos de legalidade.[3]

Nesse sentido, o que se denomina “ato administrativo autista” torna-se manifestação do poder autoritário, visto que se produz no âmbito interno do sistema jurídico: (i) interpretar ordem jurídica composta por comandos legais dúcteis e abertos, retirando dela autorização para agir; (ii) interpretar os fatos, selecionando-os e avaliando-os retirando deles o suporte fático justificador do ato; (iii) identificar qual o interesse público a ser consagrado; (iv) eleger a espécie, a forma, e a intensidade do ato a adotar; e (v) cuidar de dar eficácia ao ato praticado. Tudo isso, segundo o professor paulista, se faz sem comunicação com os interesses dos administrados e sem preocupação com os impactos da prática nos sistemas econômico, social e cultural. Daí ser necessária a transição para novo paradigma em que se atente para o princípio da proporcionalidade, dever de motivação ampla e concomitante à prática do ato, submissão à processualidade administrativa e aos deveres de transparência, somada aos desafios de participação popular na Administração, à crescente pressão pelo controle judicial do “antes insindicável mérito administrativo”, à relativização da autoexecutoriedade a situações previstas em lei, à contraposição da imperatividade ao princípio da confiança legítima, aos questionamentos apoiados nos módulos consensuais na atividade administrativa. Nessa perspectiva a consensualidade é qualificada como uma resposta à demanda de articulação por acordo ditada pela crescente complexidade da atuação administrativa em alguns segmentos econômicos, passa a integrar na função de polícia.[4]

Mesmo em se tratando de atividades como a função de polícia ambiental, com características como o atingimento de universos jurídicos de terceiros que não o Estado (como as empresas e os cidadãos) a indicar a pertinência do comportamento unilateral da Administração Pública, já se tem a incorporação da participação privada na formação da vontade estatal e, também, a possibilidade de acordo até mesmo em caso de punição decorrente de ilícitos diversos. A esse respeito, adverte-se que, como tudo defendido como reação radical e pendular máxima a extremismos anteriores, não se trata de alternativa com um razoável potencial de resultados positivos.

A propósito da utopia do consenso como sendo o caminho perfeito de atuação da Administração Pública, sem o uso de manifestações unilaterais do Estado, invoca-se o magistério de Harmut Maurer, em clara defesa da figura do ato administrativo:

“A opinião declarada na literatura, sobretudo no tempo do pós-guerra, mas também hoje ainda ocasionalmente, mais ou menos claramente, que o ato administrativo é um meio de poder estatal-autoritário, desenvolvido ao tempo da monarquia constitucional, que não se ajusta à administração de uma coletividade democrático-estatal-jurídica, passa por cima do significado real do ato administrativo. Ela já ignora, que Otto Mayer já criou o ato administrativo para vinculação e delimitação estatal-jurídica da atividade administrativa. Essa função estatal-jurídica o ato administrativo também hoje ainda possui. Ela deve, todavia – com vista ao conhecimento, que o particular está defronte da administração não como súdito, mas como cidadão (comparar supra § 2, número de margem 16) – ser completada por direitos de participação do cidadão no procedimento administrativo e por proteção jurídica efetiva. De resto, deve ser observado, que a eficácia jurídica independente de vício e força de existência em atos administrativos beneficente – portanto, no âmbito amplo da administração de prestação – particularmente favorece o cidadão.”[5]

No Brasil, Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara defendem que o regime jurídico especial dos atos administrativos se justifica, uma vez que eles se destinam à proteção do interesse público; isto mesmo quando, aparentemente, os atos são produzidos para ampliar a esfera de direitos dos particulares (ex: licença, ato de registro). Nesse contexto, uma série de prerrogativas é atribuída aos atos administrativos, “para que sirvam de modo eficaz como instrumento para a realização do interesse público. Dentre as prerrogativas mais importantes figura a presunção de que esses atos são legítimos (obedecem ao direito).”[6]

1.2. A alternativa da consensualidade

Reconhece-se que no século XXI houve um crescimento da adoção de instrumentos de acordo pelo Estado em substituição ao exercício unilateral de poderes de comando e de controle, exclusivamente por meio de atos administrativos novos mecanismos como mediação, termos de ajustamento de conduta em processos disciplinares (figura prevista em leis estaduais e municipais), acordo de leniência, termo de compromisso de cessação, transações para prevenir e terminar litígios, culminando na negociação processual, com incidência nos processos administrativos). O próprio reforço da ideia de processualidade na esfera da Administração Pública traz a importância de incorporar, na própria formação da vontade administrativa, a participação de quem se relaciona com o Poder Público. Assim, tem-se o robustecimento à alternativa do consenso, negociação e parceria como mecanismo simultâneo às decisões unilaterais do Estado.[7]

Em excelente obra sobre a matéria, o administrativista mineiro Eurico Bitencourt escreveu:

“Os modos consensuais de atuação da Administração Pública contemporânea se têm consolidado, tendo sido superadas, em boa parte, as resistências em se admitir o uso do contrato e de outros acordos administrativos. A Administração concertada eleva a negociação e a produção de acordos ao patamar de meio ordinário de coordenação administrativa, incidindo sobre relações com particulares e relações interadministrativas – entre entidades públicas, e também no campo das relações interorgânicas.

Se ultrapassados alguns dogmas clássicos do Direito Administrativo, como: a) uma concepção antropomórfica da personalidade jurídica do Estado, considerando-se a sua complexidade e a compreensão dos órgãos como plexos de competências, dotados de capacidade jurídica parcial, no âmbito das relações internas; b) uma visão radical da unidade material interna da Administração, admitindo-se que os órgãos públicos possuem distintos graus de autonomia e muitas vezes, titularizam interesses públicos diversos e conflitantes; c) uma perspectiva absolutista da hierarquia administrativa, compreendendo que, em muitos casos, mesmo que se possa ordenar, o acordo entre órgãos é o modo mais eficaz de se alcançarem melhores resultados e, por consequência, de se prosseguir o interesse público, se superados tais dogmas, pode-se considerar que a concertação administrativa interorgânica se constitui em modo normal de atuação interna.

É que a Administração contemporânea, entrecruzando interesses variados e experimentando novas formas de organização, muitas vezes, não se satisfaz mais com os modos tradicionais de atuação concentrada, hierarquizada e atomizada. E tal quadro não se deve simplesmente a preferências político-administrativas, mas, como demonstrado ao longo do texto, à incapacidade dessas formas tradicionais em dar respostas satisfatórias em boa parte – não todos, por óbvio – dos casos em que a Administração é instada a atuar.”[8]

Ao examinar o movimento de consensualização, tem se reconhecido que ele “atingiu diversas searas de competências estatais, desde o exercício de poderes sancionatórios (como o poder disciplinar e o poder de polícia) até o exercício das políticas públicas e fixação do modo de prestação de serviços públicos. Dentre as vantagens da consensualidade, são indicados:

– colaboração e cooperação entre entidades públicas e sociais;

– racionalização da distribuição de competências dentro do Estado (subsidiariedade);

– redução de custos para o Estado com simplificação da sua máquina gestora (racionalidade);

– modernização mediante a renovação das modalidades de prestação de serviços público;

– subsidiariedade e eficiência no exercício das competências estatais;

– definição de responsabilidades entre órgãos e entidades envolvidos (estabelecem-se resultados desejados a serem induzidos e controlados);

– estímulo à reflexão institucional sobre pontos fortes e fragilidades do sistema;

– freios contra abusos (proteção à legalidade), atenção a todos os interesses (maior justiça e alcance melhor da isonomia real), proporcionar decisão mais sábia e prudente (legitimidade), desenvolvimento de responsabilidades pessoais (civismo), comandos mais aceitáveis e facilmente obedecidos por todos (adesão às definições pactuadas);

– ampliação da capacidade do governo de implantar políticas públicas setoriais ou de executar atividades que, por sua essencialidade ou relevância para a coletividade, foram assumidas pelo Estado, de forma compartilhada com a iniciativa privada e com o terceiro setor;

– vinculação dos recursos ao alcance dos objetivos e metas negociados;

– estabelecimento potencial de um processo organizado e sistêmico de acompanhamento e avaliação do alcance de metas (melhor supervisão);

– publicidade do instrumento de acordo e dos resultados dá transparência à ação pública e favorece o controle social;

– ganho de eficiência e de melhor governança na ação administrativa;
– potencial criativo e operativo dos entes da sociedade e do Estado.”[9]

Não se ignora que a consensualização “também enseja problemas potenciais, sendo apontadas as seguintes fragilidades pelos estudiosos:

a) ausência de uma conceituação clara a respeito de contratualização de desempenho institucional que estabeleça seus objetivos, instrumentos e situações em que é recomendável;

b) falta de clareza quanto ao papel: de cada partícipe; para a etapa de planejamento (afeta o alinhamento das metas aos objetivos e diretrizes setoriais do governo; a geração de indicadores pertinentes);

c) preparo técnico insuficiente dos órgãos e entidades contratados para a implantação do modelo de gestão por resultados e para aplicação de metodologias adequadas para a condução da etapa de avaliação do desempenho e dos resultados; para as etapas de fiscalização e de relacionamento com os órgãos de controle interno e externo;

d) problemas mais frequentes no gerenciamento de contratos de resultados: metas pouco ambiciosas; indicadores mal elaborados; falhas na supervisão do cumprimento de metas; não inclusão de atividades importantes da organização contratada no instrumento de contratualização; objetivos vagos; não existência de sanções para metas não cumpridas; maior influência das organizações contratadas na elaboração dos contratos de resultados do que de seus órgãos supervisores (ou a persistência da assimetria de informações, entre a entidade prestadora de serviços e o órgão responsável pela política pública perante a sociedade);

e) há contratos em que as imprevisibilidades são tantas que não é eficiente transferir os riscos aos particulares;

f) permitir-se que a busca da eficiência enfraqueça a busca da justiça em matéria de ações da Administração;

g) arriscar-se ver a ‘res publica’ ser progressivamente substituída pelas formas difusas de uma cidadania privada;

h) riscos de transformar, com a administração por contratos, o governo num comprador (ambiente de conflito: particular com espírito de lucro – pretensão de recuperar, depressa os investimentos).”[10]

As próprias experiências demonstram que a consensualidade desafia inúmeras cautelas quando adotada como o caminho da atividade administrativa, destacando-se:

– A Administração subordina-se à lei e é necessário observar a reserva legal (inovação primária pelo Parlamento);

– eficiente sistemática de acompanhamento e avaliação do instrumento de contratualização;
– aprendizagem com experiências em outras searas e entidades e que enfrentaram obstáculos, superando desafios;

– reconhecimento de que não há incompatibilidade entre a celebração de acordos e a preservação das decisões unilaterais como alternativa de atuação do Estado, devendo-se verificar a alternativa mais adequada a cada realidade;

– tentativa de colaboração e convivência civilizada entre os partícipes, com atuação conforme a boa-fé objetiva exigida de quem se dispõe a convergir esforços;
– admitir que ‘não é possível governar por contrato’, sendo necessário preservar um núcleo mínimo decisório na estrutura do Poder Público competente para atuar no setor;

– investir em informações sobre tecnologia, condições de produção, requisitos essenciais para atingimento de metas e aspectos basilares do mercado ou setor social com quem se pretende firmar parceria;

– em se tratando de competências públicas (irrenunciáveis e necessárias), é necessário cumprir as exigências de prevenção e precaução, mantendo um plano capaz de, em situação de emergência, satisfazer as demandas sociais, sem grave sacrifício imposto aos administrados e ao interesse público primário.”[11]

A interação entre órgãos da Administração Pública e os cidadãos e o mercado deve se dar da forma mais simples possível, dando concreção às exigências constitucionais de eficiência e economicidade. Tem-se como instrumento adequado o uso dos recursos eletrônicos disponíveis em razão do recente e acentuado desenvolvimento tecnológico. Em determi­nadas searas, ferramentas como o uso de sistemas de dados, comunicação por email e redes internas, bem como consulta à informação disponibilizada na internet podem ser eficazes para o aperfeiçoamento da ação administrativa. Todo esse conjunto não serve para se ignorar a necessidade de se ter cautelar mínimas, com atenção especial às fragilidades com alto potencial de risco em atividades relevantes como o exercício da polícia administrativa em setores como controle ambiental.

É preciso, ainda, trazer à luz doutrina contemporânea sobre a consensualidade administrativa segundo a qual Direito Administrativo contempla dois tipos de acordos administrativos, a saber, os acordos integrativos e os acordos substitutivos. “A principal marca dos acordos integrativos é a não substituição do provimento final, uma vez que se destinam a determinar o conteúdo discricionário da decisão administrativa, a qual, contudo, continua sendo unilateral e imperativa. Também denominados ‘acordos endoprocedimentais’, os acordos integrativos podem condicionar a edição de um ato final a uma obrigação consensualmente estabelecida (que no caso brasileiro pode ter especial utilidade para o processo de licenciamento ambiental), complementar o ato administrativo final ou mesmo substituir um específico ato do procedimento administrativo.” “Os acordos substitutivos, por sua vez, são compreendidos como acordos firmados entre Administração Pública e particulares para terminação consensual do processo administrativo mediante substituição do ato ao final do processo administrativo, suspensão da tramitação do processo administrativo mediante celebração de acordo ou, ainda, impedimento a instauração de processo administrativo. Também neste tipo de acordo há a negociação da prerrogativa estatal”.[12]

Na seara ambiental, vislumbram-se acordos integrativos (em que o ato unilateral final ainda é exarado pela Administração Pública) e acordos substitutivos previstos para hipóteses de punições aplicadas pelo descumprimento da legislação específica. Na celebração de quaisquer acordos, é preciso a) evitar a captura do interesse público primário por interesses privados ou governamentais transitórios; b) conceituar clara e objetivamente a figura jurídica que instrumentaliza o consenso, evitando a superposição de esferas que termine numa esquizofrenia estatal (definir o papel de cada figura jurídica, de cada órgão competente para adotá-la e da participação dos interessados); c) reconhecer que acordos não podem se tornar uma verdadeira panaceia nem espetáculo excessivo, ineficiente e lamentável do século XXI; d) preparar e capacitar os agentes públicos dos órgãos e das entidades que receberam a prerrogativa de firmar acordos como método de alcance das suas competências; e) adotar medidas preventivas de desvios de finalidades, bem como evitar a assimetria de informações que coloque o Poder Público em flagrante desvantagem por não dominar o conhecimento técnico necessário para gerir, adequadamente, os elementos e espaços de negociação.

Ademais, falar em cultura do diálogo não significa recusar o exercício de competências unilaterais irrenunciáveis pela Administração Pública. Aliás, o acordo não exclui atividade unilateral como regra: nem sempre a melhor saída é o Estado abrir mão das decisões unilaterais. Há searas em que cabe ao Estado a função de dirigente, sem que isso configure qualquer ação arbitrária. Frisa-se que autoridade não é autoritarismo e o seu exercício adequado, em determinadas situações, consiste no meio adequado de se ter eficiência e chegar às finalidades pretendidas. Em poucas palavras: comemorar o surgimento de instrumentos de acordos, nas mais diversas searas do Estado, e ver experiências de sucesso com sua implantação, não significa abandonar a atividade unilateral como instrumento também adequado de ação pública, conforme as especificidades da realidade em questão.[13]

3. O desafio do equilíbrio na escolha do modo de agir no controle ambiental

O Estado contemporâneo tem ao seu dispor formas distintas de manifestação em relação a competências administrativas que variam da organização das fases de exercício do poder de polícia, prestação de um serviço público ou da estruturação do processo administrativo até a punição cabível diante de ilícitos cometidos por servidores ou empresas: a) a primeira forma de agir é o exercício unilateral das suas competências, mediante atos administrativos; b) a segunda de agir é a celebração de acordos não mais restritos a contratos administrativos, mas também abrangentes de instrumentos como termo de ajustamento de conduta, termo de compromisso de cessação, mediação, acordo de leniência, transação e negociação processual, sem ignorar a possibilidade de participação privada antes da Administração Pública exarar sua vontade final. Em cada situação, cabe o juízo de legalidade, razoabilidade e eficiência que permita definir o comportamento adequado ao atendimento dos interesses públicos presentes.

O que não se admite, e a tragédia pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho deixa isso evidente, é ignorar que: a) não é cabível sonhar que o Estado pode transferir às empresas privadas e às pessoas naturais o ônus de, sozinhas e sem acompanhamento/fiscalização, fornecerem toda a base fática com base em que o juízo administrativo será realizado; b) em atividades como a de licenciamento ambiental, fiscalização de atividades econômicas como exploração minerária, embargo de obras e punições pelo descumprimento de obrigações ambientais, é pertinente ao Poder Público adotar como meio de agir o ato administrativo em sentido restrito, mediante manifestação unilateral de vontade do órgão ou autoridade competente nos termos do ordenamento de regência, admitida a participação privada com observância da prudência e controle devido; c) dependendo da gravidade da desconformidade e do ilícito encontrado no exercício do poder de polícia, da reiteração na inobservância do ordenamento por parte do infrator, da seriedade dos interesses públicos comprometidos pelo ilícito identificado, é preciso rigor restritivo ao cogitar de acordo como forma de operacionalização das consequências jurídicas punitivas e ressarcitórias incidentes na espécie, não sendo descabido buscar a autoexecutoriedade administrativa (quando presentes as hipóteses autorizativas) e até mesmo a força máxima estatal, reconhecida pelo inciso XXXV do artigo 5º da CR ao Poder Judiciário.

A melhor doutrina de Direito Ambiental já vem advertindo que “Os calorosos debates teóricos jusambientalistas são prejudicados pelo reiterado esquecimento de institutos de Direito Administrativo há anos consolidados como a autoexecutoriedade e a presunção de legitimidade dos atos administrativos, o planejamento estatal e a responsabilização dos agentes públicos por condutas omissivas.”[14]

De fato, a atividade unilateral da Administração Pública em se tratando de controle ambiental e o próprio reconhecimento da legitimidade dos atributos do ato administrativo merecem um olhar revisitado no presente momento: entre o lixo e o cetro, há um espaço que a eles potencialmente reservado com equilíbrio. Não se trata de abortar a consensualidade, o acordo e o consenso como uma forma de agir possível ao Estado. Também não é o caso de demonizar qualquer atuação unilateral como se fosse equivalente à prática de um Estado Autoritário. Como em regra é preciso em todas as searas Direito Público, cabe aferir qual caminho de atuação é o procedimentalmente mais adequado para se alcançar a realização do interesse público a ser protegido na espécie, ponderando-se os diversos aspectos da realidade fática e do ordenamento em vigor.

 

 

[1] ESTORNINHO, Maria João. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 2003, p. 42-44.

[2] TOGNETTI, Eduardo. Atributos do Ato Administrativo In Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 344-345.

[3] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A superação do ato administrativo autista in Os caminhos do ato administrativo. MEDAUAR, Odete. SCHIRATO Vitor Rhein (Organizadores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 94-97.

[4] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A superação do ato administrativo autista in Os caminhos do ato administrativo. op. cit., p. 107-111.

Confira-se ainda, sobre consensualidade: PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís. A convergência entre cooperação processual e consensualidade administrativa na gestão do Estado Democrático de Direito. Fórum Administrativo – FA. Belo Horizonte, ano 16, n. 190, p. 44-48, dez. 2016

[5] MAURER, Harmut. Direito Administrativo Geral. 14ª ed. Barueri, SP: Manoele, 2006, p. 236

[6] Revista de Interesse Público, v. 16, p. 27

[7] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. A era dos acordos. Disponível em http://raquelcarvalho.com.br/2018/03/30/a-era-dos-acordos/. Acesso em 13.08.2018.

[8] BITENCOURT NETO, Eurico. Concertação Administrativa Interorgânica. São Paulo: Almedina, 2017, p. 431-432.

[9] Post divulgado em 01.11.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.

[10] Post divulgado em 02.11.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.

[11] Post divulgado em 03.11.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.

[12] DE PALMA, Juliana Bonacorsi. Como a teoria do ato administrativo pode ser aproveitada na prática da consensualidade? in Os caminhos do ato administrativo, op. cit., p. 245-246.

[13] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. A era dos acordos. Disponível em http://raquelcarvalho.com.br/2018/03/30/a-era-dos-acordos/. Acesso em 13.08.2018.

[14] SIQUEIRA, Lyssandro Norton. Qual o valor do meio ambiente? Rio de Janeiro: Lumen, 2017, p. 148.

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *