Coronavírus: Quando o Estado mata mais do que a pandemia

Tempo de leitura: 26 minutos

1. Enfrentando a pandemia

O reconhecimento de que enfrentamos uma pandemia decorrente do novo coronavírus (COVID-19) significa admitir o risco potencial de a doença infecciosa atingir a população mundial de forma simultânea, não se limitando a locais que já tenham sido identificados como de transmissão interna. Os milhares de óbitos acontecem em países que demoraram e/ou ainda não encontraram estratégias eficazes de reduzir o contágio, tendo os sistemas de saúde entrado em colapso pelas demandas elevadas de internação e tratamentos de suporte em UTIs, inclusive com uso de ventiladores pulmonares por semanas em um mesmo paciente.

É clara a necessidade de viabilizar que medidas objetivas diminuam o risco de transmissão individual e a propagação do COVID-19 na população, atrasando o pico da epidemia, com potencial redução do número total de contaminados. Se eficientes as providências, os casos mais graves passam a ser absorvidos pelo sistema de saúde existente, sendo menor o número de óbitos. A principal medida identificada mundo afora foi o distanciamento social que, em alguns casos, implicou determinação pelo Estado de compulsório isolamento dos cidadãos.

Além da calamidade da saúde, manter milhões de pessoas dentro de suas casas em diversos países do mundo traz implícito o risco de recessão econômica. O desafio passa a ser como, cumprindo a prevenção e a precaução, tomar as providências indispensáveis à proteção da vida humana e tentar evitar o caos na economia, na atividade estatal e nas vidas dos cidadãos.

 

 2. As opções feitas pelo Brasil

Lá nos idos de 06 de fevereiro de 2020, quando um novo coronavirus ainda parecia algo distante e presente apenas em outros continentes, tivemos sancionada a Lei Federal nº 13.979 que em seu artigo 3º admitiu a adoção das providências de isolamento; quarentena; determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas, ou tratamentos médicos específicos; estudo ou investigação epidemiológica; exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da ANVISA, por rodovias, portos ou aeroportos (redação originária);  requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que registrados por autoridade sanitária estrangeira; e previstos em ato do Ministério da Saúde.

Com o aumento de casos em território brasileiro, algumas medidas começaram a ser tomadas nas diversas esferas. Um dos principais pontos é a estruturação dos serviços indispensáveis ao atendimento da população que, contaminada, pode adoecer e apresentar quadros graves. Para tanto, é necessário obter bens e insumos, sem os quais não é possível cumprir a tarefa de prestação dos serviços de saúde. Em alguns locais foram requisitadas pelo Estado estruturas hospitalares sem uso e vazias, como é o caso do “Hospital Espanhol” em Salvador, o mesmo ocorrendo em outros Estados com bens móveis e insumos essenciais. Assim procedeu-se em Minas Gerais, Estado que vem enfrentando a ausência de EPIs e álcool gel (que precisam ser distribuídos aos profissionais antes do pico de demandas nas unidades de saúde, provavelmente no início de abril) com o emprego de medidas legais que buscam equilibrar atendimento de necessidade social, estruturação de serviços indispensáveis, não comprometimento da atividade das empresas e preservação dos empregos. Estudos foram produzidos indicando os pressupostos de cada alternativa de gestão, bem como o seu regime jurídico, inclusive o pagamento dos terceiros, de modo a assegurar recebimento tempestivo de preço adequado, sem qualquer valor extorsivo imposto ao erário.

Apesar das saídas jurídicas claramente delineadas e adotadas na realidade de alguns entes federativos, aptas à satisfação das finalidades públicas sem comprometimento indevido de recursos do erário, alterações à Lei Federal nº 13.979/2020 foram feitas pela Medida Provisória nº 926, de 21.03.2020. Destacam-se a possibilidade de, mediante justificativa da autoridade competente, dispensar-se excepcionalmente a estimativa de preços na fase interna à contratação direta por licitação dispensável, com permissão expressa de que os preços obtidos não impeçam a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, sendo necessária justificativa nos autos (nova redação atribuída ao artigo 4º-E, §2º e § 3º da Lei Federal nº 13.979/2020). Resulta de tais determinações que o Poder Público está autorizado não só a deixar de fazer levantamento de preços na fase interna, mas, se o fizer, pode comprar os bens por preços excessivos cobrados por empresas, bastando que justifique nos autos que se está diante de “oscilações de mercado”. Ora, se havia no ordenamento anterior instrumentos adequados à aquisição sem pagamento de preços extorsivos às empresas (requisição administrativa ou contratação direta por licitação dispensada, ambas sujeitas ao pagamento de preço adequado), não se vislumbra razão juridicamente válida para se alterar a estrutura até então existente. Mudar a lei para prever que a licitação dispensável pode ensejar pagamento de preço superior ao do mercado é permitir que o Estado fique refém de práticas comuns ofensivas à economia popular (não é raro empresas aumentarem abusivamente os preços aproveitando-se de necessidades emergenciais), cujo combate, demorado, é inconcebível com a urgência das medidas as serem tomadas. Registre-se que, em alguns casos, como as luvas de proteção, o preço de uma caixa elevou-se em mais de 10 vezes o valor original, em poucos dias, ausente qualquer motivo razoável para cobrança de preço tão superior, considerando-se produtos que se encontravam em estoque, com custo de produção anterior preservado.

Não se ignore, ainda, a possibilidade de contratação de empresas que já tenham sido condenadas em decisão administrativa definitiva que as tenha declarado inidôneas, visto que, por força da redação atribuída pela MP nº 926/2020 ao artigo 4º-F da Lei Federal nº 13.979, na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente poderá, excepcionalmente e mediante justificativa, dispensar o cumprimento dos requisitos de habilitação, ressalvados prova da regularidade perante a Seguridade Social e o artigo 7º, XXXIII da Constituição.

Destaque-se que, a partir de agora, será difícil até mesmo a obtenção de informações sobre os valores dessas aquisições e eventual contratação de empresa inidônea ou sem outro requisito de habilitação, tendo em vista a publicação da Medida Provisória nº 928, de 23.03.2020. A referida MP 928 estabeleceu a suspensão dos prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos ou nas entidades da administração pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que, necessariamente, dependam de acesso presencial de agentes públicos encarregados da resposta; ou agente público ou setor prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da situação de emergência de que trata esta Lei. Considerando que o teletrabalho será a regra em boa parte das estruturas públicas das pessoas federativas, bastará ao agente afirmar que é necessário acesso presencial ou que está envolvido prioritariamente com o atendimento da pandemia (e quem não está?) para ninguém conseguir acesso à informação como, p. ex., “quanto a União está pagando em luvas para distribuir às unidades de saúde?” ou “a empresa já foi declarada inidônea por práticas de corrupção e, portanto, não poderia contratar com o Poder Público?”. Observe-se que sequer cabe recurso contra a resposta ao pedido de informação negado com base nos fundamentos indicados, tendo em vista a nova redação dos § 2º e § 3º do artigo 6º-B da Lei Federal nº 13.979/2020.

Resumindo: tínhamos até a MP 926/2020 um conjunto de normas que, interpretadas, possibilitavam a aquisição de bens imóveis, móveis e insumos necessários ao Poder Público para o atendimento da necessidade emergencial, com contratação de empresas idôneas e sem pagamento de preços extorsivos. Muda-se a Lei Federal nº 13.929/2020 para admitir que o Poder Público possa contratar diretamente mediante dispensa de licitação por preços excessivos, inclusive de empresas inidôneas, e ainda por cima altera-se a Lei de Acesso à Informação para facilitar que se impeça o conhecimento tempestivo de práticas indevidas em tais acordos. Não parecem constitucionais as novas regras com claro potencial ofensivo à moralidade administrativa e à publicidade, princípios constitucionais consagrados no artigo 37, “caput” da Constituição.

Também foi anunciado, no dia 24.03.2020, o “maior o Plano de Injeção de Liquidez de Capital da história do país”, tendo o Banco Central informado a liberação de R$ 1,2 trilhões no mercado para mitigar os efeitos econômicos do coronavírus, após a redução da alíquota de pagamentos compulsórios (parte dos depósitos que as instituições bancárias são obrigadas a manter em reservas). Afirmando que o arsenal do Banco Central é suficiente para combater qualquer tipo de crise, a autoridade monetária disponibilizou 16,7% do PIB para o mercado, o que é considerado “agressivo” até mesmo para economistas liberais. Trata-se de uma escolha pública clara de salvar instituições financeiras e bancos, como se verificou historicamente em outras épocas e, inclusive, em outros países. Uma política dessa natureza requer análise de conformidade com os deveres constitucionais e prioridades resultantes dos direitos fundamentais protegidos em cláusulas pétreas, o que certamente será objeto de discussão junto ao Judiciário, em especial perante o Supremo Tribunal Federal.

 

3. O que o governo e o Congresso planejam fazer

Lembre-se que o governo estabeleceu na Medida Provisória 927/2020 a suspensão dos contratos de trabalho por 04 (quatro) meses, sem remuneração, revogando a seguir o referido dispositivo. Já está em discussão no Congresso a PEC que acrescentaria o artigo 115 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, possivelmente redigido nos seguintes termos:

“Art. 115. Durante o período de estado de calamidade pública decretado em razão da pandemia de coronavírus, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios reduzirão, temporariamente, a jornada de trabalho dos ocupantes de cargos eletivos, dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público e dos ocupantes de cargos comissionados de todos os Poderes em 20%, com adequação proporcional dos subsídios e vencimento à nova carga horária.

§1º. Os recursos economizados devem ser integralmente direcionados para ações de combate à evolução da COVID-19 e de redução do impacto negativo na economia brasileira.

§2º O disposto neste artigo não se aplica aos agentes públicos cuja remuneração bruta seja igual ou inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

§3º O desconto incidente sobre a remuneração bruta dos agentes públicos não pode reduzi-la a valor inferior a R$ 5.000 (cinco mil reais).”

Reconhecendo que serão acirradas as discussões antes da aprovação de uma PEC dessa natureza no Congresso Nacional, não resisto exteriorizar a incompreensão com a insistência em, diante de qualquer crise ou dificuldade, a primeira e principal resposta do governo significar corte de gasto de pessoal, mediante redução do montante pago aos servidores. Nem mesmo uma pandemia é capaz de evidenciar o erro dessa escolha, pasmem! Não se cogita de reduzir o trilhão destinado aos bancos e às instituições financeiras. O que se cogita é reduzir a remuneração dos servidores porque “cada um precisa dar sua cota de sacrifício”… Os servidores, exatamente aqueles que precisam assumir a linha de frente numa situação de caos para que a população possa sofrer um pouco menos, são eles os convocados a suportar a primeira guilhotina solta pelo Estado. Pede-se mais, paga-se menos, desestrutura-se melhor.

E vejam bem: com a aproximação do caos, o mercado recolhe os investimentos e os lança em títulos que considera seguros como aqueles do Tesouro lá dos Estados Unidos, bem longe das aplicações nacionais. Ficamos os tupiniquins, pois, sem qualquer capacidade de investimento e recorremos a quem? Ao Estado brasileiro, lógico. Quando tudo dá certo, o discurso é de que é preciso melhorar a economia e garantir o lucro do mercado: privatiza, concede, PPP com pouca margem de risco para o parceiro e coisa e tal. Mas se dá errado, não se trata de uma álea empresarial; todos correm de pires na mão para os cofres públicos, alimentados pelo povo brasileiro, esperando seu quinhão de dotação orçamentária compensatória.

O Poder Público, que faz “de um tudo” que o mercado precisa e lhe entrega atividades diversas para execução lucrativa (e o mercado abandona o barco no primeiro sinal de risco real, pois de fato ele busca lucro), é convocado a reassumir as tarefas, agora deficitárias, investir em empresas diretamente, com destinação de recursos “a fundo perdido” porque, afinal de contas, é dever do Estado “manter os pratos girando”!

Então no meio de uma pandemia, exatamente quando a população precisa contar com servidores públicos que variam de advogados públicos aos profissionais de saúde, o que fazemos? Cortamos sua remuneração, lógico. Aumentamos o seu trabalho, colocamos a vida deles em risco e explicamos que eles precisam receber menos. E o que mais? Entregamos muito dinheiro para bancos e instituições financeiras, além de comprarmos por preços excessivos de empresas que podem até ser inidôneas. Ótimo. Tá certinho… Faz todo sentido.

(advertência: o último parágrafo contem ironia)

 

4. O que o Brasil não faz

O Brasil não segue exemplo de países como a Itália e Reino Unido. A Itália proibiu as empresas de despedir seus empregados durante meses e o Reino Unido vai pagar os salários dos trabalhadores para evitar demissões. Nos Estados Unidos republicanos e democratas negociam uma injeção de 2 trilhões na economia, mediante remessa de cheques àqueles que tem renda inferior a determinado valor (1.200 dólares por pessoa, 2.400 dólares por casal, mais 500 dólares por cada criança, para quem faz menos de 75k/ano ou 150k/ano para o casal). A única discordância é o fato de, no pacote, estar prevista ajuda de bilhões às grandes empresas que os democratas querem fiscalizar e, por óbvio, os republicanos preferem isenção de controle. Quanto à transferência direta de renda para a população, todos estão de acordo, inclusive os conservadores e liberais republicanos.

Aqui, além de não se cogitar de tal providência, não se instituiu o Imposto sobre Grandes Fortunas, embora já haja projetos de lei que o prevejam, com alíquotas progressivas de 1%, 2% e 3% sobre o patrimônio que exceder R$ 20 milhões, R$ 50 milhões e R$ 100 milhões respectivamente. Também não se cogita seriamente de uma Contribuição Social sobre Altas Rendas das Pessoas Físicas (CSPF) que incida sobre rendimentos que mensalmente ultrapassem valores como, p. ex., R$ 80.000,00, o que, segundo estimativas, implicaria arrecadação de R$ 72 bilhões anuais, de 0,7% dos contribuintes (pouco mais de 194 mil). Não seria descabida a criação de alíquota extraordinária, com vigência temporária, de 30% de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), p.ex., para bancos e instituições financeiras, além de se admitir aumento de alíquota em face de mineradoras e de setores lucrativos que empreguem baixo número de pessoas.

Ainda não temos decisões lúcidas sobre o que fazer com os contratos administrativos de terceirização firmados pelo Estado. Parece simples cogitar de rescisão ou de suspensão do vínculo com base na legislação vigente, ou mesmo aguardar o fim do período contratual sem renovação subsequente, principalmente em um tempo no qual a visão estritamente financista e míope somente enxerga o imediato impacto no caixa. Gestão pública, contudo, requer levantar os olhos além do mês seguinte, ainda mais quando se trata de uma pandemia de imenso impacto na população. É preciso uma visão sistêmica e interpretação do ordenamento como um todo, bem como analisar as repercussões a médio e a longo prazo. Qualquer suspensão ou rompimento de vínculo do Poder Público com a empresa terá como provável consequência a dispensa dos empregados. Isso trará, à obviedade, falta de recursos à sua sobrevivência, com piora de uma qualidade de vida em regra já baixa. As dificuldades em adquirir alimentos, manter condições de higiene mínimas e sobreviver dignamente acarretam, em regra, baixa imunidade, o que, em período de contaminação pelo COVID favorece o adoecimento grave, com ocupação de leitos de UTIs e dos respiradores que agrava o colapso do sistema de saúde. Em última instância, o custo a ser suportado pelo próprio Estado pode ser maior com a suspensão/rescisão do contrato do que com sua continuidade. Isso para fazer um raciocínio eminentemente econômico, sem qualquer preocupação com “detalhes” como dignidade da pessoa humana, direito à saúde e à vida, além de outros direitos fundamentais. Resumindo: o Poder Público não tem o direito de gerir contratos com o objetivo exclusivo de economizar no próximo mês, sem atentar para as repercussões das suas decisões nos cidadãos já afetados por uma pandemia que sacrificará saúde das pessoas e economia do país.

Precisamos pensar como gerir a paralisação de tantas atividades, inclusive as que são exercício de competências públicas fundamentais como poder de polícia e poder disciplinar. Além de uma pandemia vamos deixar ilícitos ambientais, sanitários e disciplinares transformarem-se em uma grande pizza, com a perda do poder de punir do Estado? Vamos deixar prazos decadenciais e prescricionais escoarem durante as suspensões, com perda de competências públicas e pretensões diversas, numa estabilização de ilícitos que só agrava uma cultura de ilegalidades?

Como gerir as dotações orçamentárias? Como alterar a destinação de verbas para a saúde após aprovada LDO e o orçamento anual? Como assegurar a legalidade e assim evitar a judicialização excessiva de medidas administrativas, muitas autoexecutórias, que precisam ter suas consequências estáveis na realidade brasileira? Como planejar? Como agir? Como fazer? Como acompanhar? Como fiscalizar sem destruir todos os resultados positivos irresponsavelmente?

É imenso o dever de casa que o Brasil precisa fazer. O bom é que temos um tempo de recolhimento em casa para encarar cada tarefa.

 

5. Desenhando com o “ó” da garrafa

Em um momento de pandemia, seguir com a opção de um país que é um “Robin Hood” às avessas é não só criminoso, como burro. Limitar direitos da base da pirâmide social, sem impor qualquer sacrifício a quem está no topo é, muito além de descumprir a Constituição, comprometer de vez a economia. Aliás, inúmeros são os economistas, inclusive liberais, que entenderam que acabar com a proteção dos pobres e da classe média, preservando a qualquer custo os ganhos dos muito ricos, é comportamento, além de homicida, kamikaze.

Nesse contexto, dar dinheiro para bancos (1 trilhão e duzentos bilhões) e admitir que União, Estados, DF e Municípios comprem os insumos necessários ao enfrentamento da pandemia sem limite de preços ao praticado no mercado (o que permite aquisição por valores extorsivos) significa privilegiar quem está no topo da pirâmide econômica que, mais uma vez, sairá lucrando. Os trabalhadores? Quase tiveram seus contratos de trabalho suspensos por 4 meses sem remuneração e parece que poderão ter corte de jornada e de remuneração (a ver como se haverá compensação pelo governo e, em caso positivo, como e em que tempo se realizará). Os servidores? Poderão ter quebrada a garantia da irredutibilidade e sofrerão cortes em sua remuneração quando são mais requisitados em seu trabalho cotidiano. Os que dependem da Seguridade Social? Acabaram de lhe ter imposta uma reforma previdenciária perversa e, por muito pouco, não perderam benefícios como o BPC (benefício de prestação continuada), essencial a proteção de pessoas frágeis como deficientes de baixa renda. Que país é esse que numa pandemia tira o dinheiro público para dar aos ricos e deixa abandonados pobres, servidores que fazem o sistema público funcionar (como o SUS) e quem mais precisa como deficientes?

Numa das mais recentes conversas de whatsapp escrevi:

Vocês entendem que é uma escolha de Estado?

O dinheiro do Estado é do povo. Afinal, o orçamento público vem do dinheiro que o Estado arrecada das pessoas físicas e jurídicas.

O povo está com a saúde e vida ameaçadas.

O atual sistema permite que se use o dinheiro do povo para adquirir bens necessários (de que o povo necessita) sem ferrar as empresas que serão indenizadas por preço adequado até mesmo em caso de requisição administrativa.

Aí você pega dinheiro do povo e dá aos borbotões aos bancos e, pior, usa a violência de uma Medida Provisória, legitimada pela comoção de uma pandemia, para criar regras que mudam o sistema e em razão das quais o dinheiro do povo estará entregue a uma parcela do mercado (a de sempre) que enriquecerá.

Não se está usando o dinheiro para melhorar serviços de que o povo, mais do que nunca, precisará;

Nem para pagar salários aos trabalhadores ou transferir renda direta aos cidadãos como a Inglaterra fará e os EUA discutem fazer (e com isso conseguirão melhorar a economia para empreendedores pequenos e médios, também para as grandes empresas);

A gente usa o dinheiro do povo brasileiro para pagar preços excessivos para a cúpula econômica e para entregar aos bancos, grupos que SEMPRE CAPTURAM O PODER DE MANDO. Agora, capturaram o maior poder de mando e violência inimaginável: Medidas Provisórias reguladoras de pandemia. Estamos vendo o mercado capturando a força mais violenta do Estado e escolhendo um lado. Que é de poucos. Que é de alguns empresários. Assistimos o silêncio se esgueirando como uma possibilidade nas frestas das estruturas administrativas que sempre buscam a manutenção do poder, não importa a que custo. Ainda que o pagamento seja em vidas humanas.

É muita perversão.

É deixar como vítima certa uma gente sem defesa, apática, sem espírito crítico e sem formação educacional que lhe permita ao menos compreender o mal que lhe está sendo feito.

O horror. A matrix.

Com a pandemia, o de sempre: Pobre morre. Empresário e bancos enriquecem. Servidores que trabalham se ferram.

Esse é o sistema que não se vence de dentro (e eu não paro de lembrar o “Tropa de Elite 2”). Porque quem ganha o tem nas mãos e o manipula para ganhar cada vez mais. Ganhar dinheiro. Ganhar poder. Calar vozes dissonantes (e eu não paro de lembrar o “Jardineiro Fiel”). Esmigalhar e assediar quem ameaça o pacto de silêncio.

Pagar bancos e empresários com dinheiro do povo (repito: erário é uma ficção para dinheiro do povo) e ter menos recursos para os serviços públicos que podem salvar pessoas é crime. Não dá para silenciar agora, desculpem.”

Que as instituições, seus agentes e as pessoas não se omitam. Essa pandemia veio para revelar cada um de nós. Quem é capaz de negociar a própria alma, os generosos, os irresponsáveis, aqueles que seguem comprometidos com o bem comum, os arrogantes que não cogitam dos seus erros, os medrosos que transferem a responsabilidade da sua sobrevivência ao outro, os imprudentes que se acham intocáveis, os cautelosos que organizam estruturas complexas, os dedicados incansáveis, os vaidosos que só sabem conjugar a primeira pessoa do singular com as narinas abertas, os honestos, os bandidos e tantos outros. Erros, defeitos e vícios são expostos impiedosamente. Ignoramos moradores de rua? Eles estão aí, frágeis à contaminação e expondo a todos. Fingimos que não falta água e condições sanitárias mínimas nas comunidades? Seus moradores estão aí, sem conseguir lavar as mãos, na iminência de contaminação disseminada que colocará em risco toda população. Sucateamos orçamentos do SUS e aceitamos passivamente emendas de limitação de gastos com saúde? Estamos agora na dependência da inacreditável dedicação e competência de profissionais de saúde que não desistiram do sistema (sabe Deus porquê), mas sem insumos e equipamentos públicos suficientes para atender as demandas. Queremos acabar com os “parasitas” que “não trabalham e só sabem ganhar à toa seu salário”, tirando-lhes garantias fundamentais como estabilidade e irredutibilidade? São os parasitas que trabalhamos (e trabalharemos) incansavelmente para que um mínimo de legalidade e serviço público eficiente se mantenha em época de caos pandêmico.

Repito: grandes crises surgem e revelam o nosso melhor e o nosso pior. Nossas falhas, inclusive aquelas que negamos desde sempre em alto e bom som, e nossas virtudes, conquistadas duramente em batalhas internas e externas, num caminho de evolução nem sempre fácil. É bom lidar com essa realidade. É bom que saibamos que essa realidade nos condiciona para que possamos minorar os problemas daí decorrentes e ampliar os benefícios possíveis.

Vamos lembrar que precisaremos, no futuro, lidar com as decisões tomadas agora, com todos os limites e sob a pressão do receio de que também no Brasil aconteçam milhares de mortes. Assim acontecerá, p. ex., quando formos examinar decisões que impuseram obrigações e limites, por atos da Administração Pública individuais e colegiados, sem muita distinção com as inovações que, até então, exigiam lei formal para integrar o ordenamento, numa clara desconstrução da democracia e risco à segurança jurídica embasados no atendimento urgente de necessidades básicas da própria sociedade. Entre não se render à inércia, que comprometeria gravemente os interesses públicos presentes, e respeitar limites mínimos, sem excessos ditatoriais, está o desafio de quem assume normatizações, pratica atos administrativos e os executa.

Não há lugar para imprudentes, nem para covardes. Não se admite lentidão, nem celeridade irresponsável. Sem arroubos e sem paralisação. O desconhecimento e a ignorância não perdoam, pois sequer há tempo disponível para ir até o saber ou para construí-lo. É preciso acessar o conhecimento de quem se dedicou antes. Cabe-nos confiar na ciência. Picaretas devem ser mantidos sob controle. É preciso agir com base em saber sólido, resultado de estudos científicos. Não cabe paralisia ou atraso. Nesse contexto, requer-se dos estudiosos e dos profissionais toda dedicação e comprometimento. Sorte que os temos, em bom número de humanos que enfrentam suas próprias sombras, alimentam a sua própria luz e seguem tentando acertar diariamente.

No dia 12 de março de 2020 publiquei em um “story” do instagram: o mundo não será o mesmo. Essa pandemia será mais importante para história da humanidade do que foi o ataque às Torres Gêmeas nos Estados Unidos. Não faço a menor ideia do que de fato acontecerá. Mas estou certa que a principal mudança é a oportunidade de percebermos o funcionamento do sistema em um momento tão crucial para a humanidade e, então, agir resgatando ideias fundamentais como solidariedade, empatia, comprometimento e Estado Fraterno.

E que Deus nos abençoe.

 

12 Comentários


    1. Agradeço o contato, prezado Luis Nassif. Considerando o trabalho na advocacia pública mineira, a opção pessoal é pelo exercício das atribuições restrito à AGEMG e o magistério, com partilha de conhecimento jurídico. Desejo-lhe um ótimo trabalho, em tempos tão turbulentos como os que estamos enfrentando. Meu abraço,

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  1. Ótimas informações! Nesse momento precisamos de ideias e dicas com essa para superar a crise! Parabéns pelo conteúdo!

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  2. Artigo inteligente , técnico e crítico provocando uma reflexão relevante para aqueles que militam na política, economia e justiça. Parabéns!

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  3. Adorei seu post!

    Recentemente fiz um post falando como minha vida mudou depois que comecei a trabalhar em casa, sem complicação e não senti os efeitos da quarentena no meu bolso, a galera está gostando muito!

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