A era dos acordos

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Acordos na esfera administrativa: novos instrumentos

 

No século XXI, a adoção de instrumentos de acordos pelo Estado cresceu, em substituição ao exercício unilateral de poderes de comando e de controle, exclusivamente por meio de atos administrativos. Novos mecanismos foram incorporados às técnicas de ação do Estado, o significou admitir desde mediação e arbitragem (art. 32 da Lei nº 13.140/2015 e artigo 1º, § 1º da Lei Federal nº 9.307/96, com a redação da Lei nº 13.129/2015), termos de ajustamento de conduta em processos disciplinares (figura prevista em leis estaduais e municipais), acordo de leniência (artigo 86 da Lei Federal nº 12.529/2011, artigos 16 e 17 da Lei Federal nº 12.846/2013) e termo de compromisso de cessação (artigo 85 da Lei Federal nº 12.529/2011), transações para prevenir e terminar litígios (artigo 1º da Lei Federal nº 9.469/97), culminando na negociação processual (artigo 190 do CPC/2015), com incidência nos processos administrativos.

Identifica-se a profusão de instrumentos que consagram a possibilidade de celebrar acordos com o reforço da ideia de processualidade na esfera da Administração Pública. Na medida em que se processualiza essa atividade do Estado, revela-se a importância de incorporar, na própria formação da vontade administrativa, a participação de quem se relaciona com o Poder Público. Além do potencial de democratização, é certo que aquele que vê suas ponderações consideradas antes de se sujeitar a determinada decisão tem um maior potencial de adesão ao comando imposto. Além disso, reduz-se o risco de vícios contaminarem a própria decisão, visto que a autoridade somente faz o juízo depois de analisar os diversos aspectos nela envolvidos: os relativos aos interesses do Poder Público e os pertinentes aos interesses dos terceiros, sejam eles cidadãos, empresas contratadas ou servidores públicos. E isso ocorre depois de todos terem oportunidade de, em um espaço de negociação, colocar e analisar os múltiplos elementos que condicionam a situação.

Em uma nova forma de gestão, portanto, ganha reforço a alternativa do consenso, negociação e parceria como mecanismo simultâneo às decisões unilaterais do Estado. A cultura do diálogo acresce-se ao exercício de competências irrenunciáveis pela Administração Pública, sendo necessário aferir, em cada situação, se se mostra necessária a atividade administrativa unilateral ou se buscar a convergência entre a vontade pública e a do terceiro, com procedimento de negociação entre as partes, é o meio para alcançar maior efetividade na proteção dos interesses públicos.

 

 

Acordo exclui atividade unilateral?

 

É preciso cautela para, diante desse universo de instrumentos de negociação disponibilizados à Administração, não se considerar que a melhor saída é sempre o Estado abrir mão das decisões unilaterais. Vivemos num tempo em que hierarquia e autoridade são vistas como centralismo e autoritarismo a serem combatidos. Também se pressupõe que um acordo que ultime uma decisão negociada sempre satisfaz as necessidades de legitimidade da atividade administrativa, já que implica partilha das responsabilidades na realização do interesse público entre Estado e terceiro. Além de se apontar a facilidade prévia à defesa do direito dos administrados, indica-se a redução da necessidade de controle repressivo perante o Judiciário, o que traria ganhos de economicidade e rapidez na atividade executiva.

Na verdade, há searas em que, de fato, o Estado dificilmente alcança os propósitos desejados se não consegue convencer o cidadão de que a norma de conduta requer concretização. Esse convencimento é facilitado quando, no lugar da subordinação, adota-se a parceria e se incorpora o pluralismo heterogêneo de interesses na complexa relação jurídico administrativa. Isso sem mencionar a simplificação administrativa que pode resultar desse modo consensualizado de agir, com economia de custos na estrutura orgânica do Estado.

Não se pode negar, contudo, que há outras situações em que cabe ao Estado a função de dirigente, sem que isso configure qualquer ação arbitrária. Autoridade não é autoritarismo e o seu exercício adequado, em determinadas situações, consiste no meio adequado de se ter eficiência e chegar às finalidades pretendidas. Sendo assim, exercer autoridade, nos termos de competências que são impostas pelo ordenamento jurídico e indispensáveis à sociedade, não significa automático abuso de um Estado autoritário, nem mesmo ineficiência de amarras burocráticas e disfuncionais. Ao contrário, existem realidades em que ao Poder Público é vedado abrir mão dos deveres de atuação unilateral que lhe cabem, sendo irrenunciável a obrigação de levar a termo os procedimentos necessários à satisfação dos interesses públicos, tão como protegidos e consagrados na ordem jurídica. Cumprir essa tarefa não implica ser indiferente à realidade social e econômica, nem mesmo considerar um administrado um “súdito” e muito menos transformar o exercício de uma competência legal em legalismo estéril. A atividade do Estado está sempre limitada pela responsividade e pela solidariedade social, além da sujeição à exigência de processualidade administrativa.

Em poucas palavras: comemorar o surgimento de instrumentos de acordos, nas mais diversas searas do Estado, e ver experiências de sucesso com sua implantação, não significa abandonar a atividade unilateral como instrumento também adequado de ação pública, conforme as especificidades da realidade em questão. Quando da prática de atos administrativos, o Poder Público exerce prerrogativas que lhe são reconhecidas pelo ordenamento como instrumento dos deveres que impõe sejam alcançados, não havendo arbítrio ou autoritarismo pressuposto, mas somente exercício responsável e processualizado de competências estatais. Além desse clássico modo de agir administrativo, cumpre reconhecer as vantagens da consensualidade e a racionalidade que pode resultar da colaboração e cooperação entre as partes da relação jurídico administrativa. Com efeito, acordos podem trazer a modernização para o exercício do controle, da atividade sancionatória e de outras competências executivas do Estado; celebrá-los obriga órgãos e entidades administrativas a ter claras suas responsabilidades, os poderes irrenunciáveis e as searas em que a negociação pode ser o meio mais eficiente de alcançar o objetivo perseguido.

 

Doutrina contemporânea sobre a consensualidade administrativa

 

Em excelente artigo sobre o tema, a administrativista Juliana Bonacorsi de Palma coloca, diante da alternativa da consensualidade, o dever de o Estado escolher o meio mais adequado para determinar decisões eficientes no caso concreto, com prévia ponderação dos meios à disposição da Administração pública. Assim, a decisão eficiente seria aquela cujos meios se mostrem adequados, tendo em vista determinada finalidade pública: “A consensualidade pode, então, ser compreendida como um desses meios. No caso concreto, o acordo administrativo pode ser considerado o meio mais adequado para satisfazer determinada finalidade pública segundo critérios de eficiência previamente estabelecidos. (…) Saliente-se que esse enfrentamento apenas é possível nos casos discricionários, dada a inviabilidade de celebração de acordos administrativos nas situações e vinculação.” [1] Analisando a consensualidade nestes termos e em sentido restrito, a autora reconhece que o Direito Administrativo contempla dois tipos de acordos administrativos: os acordos integrativos e os acordos substitutivos.

“A principal marca dos acordos integrativos é a não substituição do provimento final, uma vez que se destinam a determinar o conteúdo discricionário da decisão administrativa, a qual, contudo, continua sendo unilateral e imperativa. Também denominados ‘acordos endoprocedimentais’, os acordos integrativos podem condicionar a edição de um ato final a uma obrigação consensualmente estabelecida (que no caso brasileiro pode ter especial utilidade para o processo de licenciamento ambiental), complementar o ato administrativo final ou mesmo substituir um específico ato do procedimento administrativo.”[2]

“Os acordos substitutivos, por sua vez, são compreendidos como acordos firmados entre Administração Pública e particulares para terminação consensual do processo administrativo mediante substituição do ato ao final do processo administrativo, suspensão da tramitação do processo administrativo mediante celebração de acordo ou, ainda, impedimento a instauração de processo administrativo. Também neste tipo de acordo há a negociação da prerrogativa estatal”.[3]

 

Cautelas e desafios

Cumpre àqueles que, na celebração dos referidos acordos, adotam instrumentos como transação, acordos de leniência e TAC’s, evitar a captura do interesse público primário por interesses privados ou governamentais transitórios. A seriedade, firmeza, honestidade e capacidade técnica são exigidas com muito mais rigor dos envolvidos na celebração dos acordos que, sem sacrifício das finalidades públicas, buscam como as realizar da melhor forma possível. Reconhece-se que as partes produzem soluções de um modo não automático, visto que não resultantes da subsunção legal, mas oriundas de um processo negocial criativo e operativo do interesse público, a representar uma construção coletiva da decisão final. Não se admitem desvios de legalidade, cumpre atentar à razoabilidade do consenso tendo em vista os limites postos ao exercício da negociação, além de ser indispensável assegurar publicidade mínima e motivação suficiente como mecanismos de transparência que permitam o controle efetivo da juridicidade.

Somente se alcançará sucesso se houver conceituação clara e objetiva de cada figura jurídica, evitando a superposição de esferas que termine numa esquizofrenia estatal. A pluralidade de instrumentos de acordo, surgidos a partir de diplomas editados em momentos diversos e sem preocupação sistêmica, requer de quem os aplica uma operacionalização responsável que evite um desempenho institucional aleatório, sem preocupação com as situações em que cada um se adequa com maior potencial de efetividade. É preciso clareza quanto ao papel de cada figura jurídica, de cada órgão competente para adotá-la e da participação dos interessados. Além de alinhar as diretrizes de cada atividade negocial, é indispensável planejar a atuação dos diversos órgãos com competência legislativa, mesmo porque acordos não podem se tornar uma verdadeira panaceia nem espetáculo excessivo, ineficiente e lamentável do século XXI.

Devem ser tecnicamente preparados e devidamente capacitados os agentes públicos dos órgãos e das entidades que receberam a prerrogativa de firmar acordos como método de alcance das suas competências. Dentre noções tradicionais do regime jurídico administrativo, conceitos como “atuação sistêmica do Estado”, “Administração em rede”, “dever de coordenação e de articulação entre órgãos com competências simultâneas e distintas” são requisitos indispensáveis em todas as etapas de operacionalização dos novos institutos: desde o planejamento e a execução do acordo até as etapas de fiscalização e de controle de resultados.

Cumpre adotar medidas preventivas de desvios de finalidades, bem como evitar a assimetria de informações que coloque o Poder Público em flagrante desvantagem por não dominar o conhecimento técnico necessário para gerir, adequadamente, os elementos e espaços de negociação. Os riscos existem e são inevitáveis quando se incorpora nova forma de agir no Estado, especialmente considerando-se a cultura administrativa brasileira de transformar mecanismos com excelente potencial de ganho para sociedade em meio de atender interesses privados, numa substituição criminosa e progressiva de interesse público primário por interesses privados, socialmente excludentes.

A doutrina moderna vem advertindo que “Não se deseja, obviamente, que os acordos sejam fruto de conluio da Administração com o administrado, em uma utilização irregular dos acordos administrativos com fins escusos e alheios às motivações indicadas. Um mero simulacro.” Destaca a necessidade de se impedir uma “negociação às escuras”, com garantia de uma negociação efetivamente processual, sujeita à “publicação das atas de negociação entre Poder Público e particular, ainda que ex post, o que não necessariamente implica em transcrição das tratativas que poderia minar a estratégia negocial da Administração tanto no presente processo sancionador quanto nos casos futuros.”[4]

Identificar os riscos nas novas figuras jurídicas e se prevenir quanto à sua ocorrência não significa condenação de instituto incorporado no ordenamento brasileiro, mas atuar de acordo com os procedimentos consagrados na lei e adotar cautelas indispensáveis, em cada caso, ao não desvirtuamento do novo instrumento. Os acordos podem se tornar o espaço em que o Direito Administrativo venha enfim alcançar o equilíbrio na democratização do agir do Estado, sem demonização nem santificação de instrumentos que, como toda figura jurídica, requerem coragem de implantação, cautela ao evitar os perigos inerentes e disposição para tornar realidade os benefícios sociais.

 

Considerações finais

 

Conclui-se, portanto, que o Estado contemporâneo tem ao seu dispor formas distintas de manifestação em relação a competências administrativas que variam da organização das fases de prestação de um serviço público ou da estruturação do processo administrativo até a punição cabível diante de ilícitos cometidos por servidores ou empresas: a) a primeira forma de agir é o exercício unilateral das suas competências, mediante atos administrativos; b) a segunda de agir é a celebração de acordos não mais restritos a contratos administrativos, mas também abrangentes de instrumentos como termo de ajustamento de conduta, termo de compromisso de cessação, mediação, acordo de leniência, transação e negociação processual. Em cada situação, cabe o juízo de legalidade, razoabilidade e eficiência que permita definir o comportamento adequado ao atendimento dos interesses públicos presentes.

[1] DE PALMA, Juliana Bonacorsi. Como a teoria do ato administrativo pode ser aproveitada na prática da consensualidade? in MEDAUAR, Odete et al. Os caminhos do ato administrativo. MEDAUAR, Odete. SCHIRATO Vitor Rhein (Organizadores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 244.

[2] DE PALMA, Juliana Bonacorsi. Como a teoria do ato administrativo pode ser aproveitada na prática da consensualidade? in MEDAUAR, Odete et al. Os caminhos do ato administrativo. op. cit., p. 245.

[3] DE PALMA, Juliana Bonacorsi. Como a teoria do ato administrativo pode ser aproveitada na prática da consensualidade? in MEDAUAR, Odete et al. Os caminhos do ato administrativo. op. cit., p. 246.

[4] DE PALMA, Juliana Bonacorsi. Como a teoria do ato administrativo pode ser aproveitada na prática da consensualidade? in MEDAUAR, Odete et al. Os caminhos do ato administrativo. op. cit., p. 257.

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