Retenção de pagamento: proibição de enriquecimento ilícito e de arbitrariedade governamental

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EMENTA: A obrigação de pagar por objetos contratuais regularmente recebidos tem por objetivo evitar o enriquecimento ilícito da entidade administrativa que se beneficiou dos serviços, bens e obras contratados, excluindo-se, sob pena de arbitrariedade governamental, a possibilidade de retenção de pagamento (ainda que denominada suspensão cautelar de pagamento), tendo em vista a ausência de hipóteses permissivas de autoexecutoriedade no ordenamento vigente.

 

Existem situações em que se impõe o reconhecimento, pela Administração, de vício na licitação e a nulidade do procedimento induz a do contrato. Nesse contexto, em relação aos serviços prestados, bens entregues e obras realizadas, o Estado deve pagar os valores devidos com base no contrato administrativo firmado, ausente prova de desvio, ilegalidade nos valores acordados ou de superfaturamento. Com efeito, principalmente se os valores não se mostram desproporcionais em face daqueles praticados no mercado, a obrigação de pagar por objetos contratuais recebidos tem por objetivo evitar o enriquecimento ilícito da entidade administrativa.

Segundo o professor Celso Antônio Bandeira de Mello: “Enriquecimento sem causa é o incremento do patrimônio de alguém em detrimento do patrimônio de outrem, sem que, para supeditar tal evento, exista uma causa juridicamente idônea. É perfeitamente assente que sua proscrição constitui-se em um princípio geral de direito.”[1]

Analisando, inclusive no direito comparado, a teoria do enriquecimento injusto nos contratos administrativos, José Alfredo de Oliveira Baracho explicitava que “Questões como o empobrecimento (no caso do enriquecimento sem causa ou na repetição do indébito), a eventual responsabilidade do demandante (na hipótese da gestão de negócios) servem como motivo para apontar soluções restritivas”, ao que acrescia:

“A luta contra o enriquecimento administrativo, moralmente reprovável, encaminha as discussões para o enriquecimento injusto e a justiça material, nos contratos administrativos, no que toca à equivalência das prestações e preço justo.  (…) As funções e modalidades da ação de enriquecimento no direito administrativo vinculam-se às condições da prestação e dos contratos que não tenham sido validamente concluídos: enriquecimento por prestações realizadas, em conjunto de contratos inválidos; nulidade ou anulabilidade do contrato; igualdade de conseqüências ante o enriquecimento injusto; restituição do enriquecimento em casos em que não cabe a devolução in natura; retroatividade dos efeitos do contrato inválido; consolidação dos efeitos contratuais particularmente, em atenção à boa-fé do empobrecido.

Desde que a administração dá causa à mobilidade do contrato, procura-se configurar o enriquecimento e a responsabilidade, destacando-se, ainda, a responsabilidade pessoal das autoridades que deram origem a contratos irregulares e ao enriquecimento injusto da administração.

Pode ocorrer o enriquecimento por prestações de contratos não concluídos ou já extintos, possibilitando o enriquecimento da administração por prestações contratuais anteriores à perfeição do contrato ou à própria extinção do contrato.

O enriquecimento sem causa da administração pode ocorrer, também, por meio de obrigações do contratante, superiores ao que estava determinado. O contratante realiza em favor da administração prestações superiores e mais custosas do que as que foram pactuadas. É o fenômeno da “extralimitação contratual”, por meio de prestações superiores ao que foi pactuado.

Várias são as formas do enriquecimento sem causa por parte da administração pública, decorrentes de sua atuação, originárias de fundamentos contratuais e extracontratuais. Torna-se, cada vez mais, necessário completar a elaboração doutrinária do instituto, para que se possa romper com os abusos da administração pública, frente aos administrados ou aos cidadãos.”[2]

Não se pode admitir a pretensão pública de, depois de se beneficiar do objeto contrato, nos termos em que estipulou no edital de licitação, queira o preço pago a título de remuneração de volta, mormente se não há evidência de qualquer vício na conduta da empresa e sem prova de desvio no tocante às obrigações assumidas.

Ao analisar o artigo 59, parágrafo único da Lei de Licitações, o Superior Tribunal de Justiça decidiu: “Ademais, a Administração não pode locupletar-se indevidamente em virtude de nulidade de contrato administrativo, devendo indenizar o particular pelos serviços prestados ou pelas obras realizadas. Agravo regimental improvido.” [3]

De fato, os Tribunais Superiores vêm insistindo que a declaração de nulidade do contrato por vício em seus termos ou na licitação decorrente do planejamento administrativo “somente pode ser imputado à Administração, nunca ao particular que com ela contratou” e, se o contratado “vinha cumprindo todas as suas obrigações contratuais”, é certo que “não lhe pode ser imputado o prejuízo por qualquer vício do contrato, cabendo-lhe a remuneração pelos serviços já prestados até a data da anulação. Não se pode admitir que a Administração Pública se enriqueça às custas do administrado, que não deu causa à anulação da avença, recebendo serviços gratuitamente, sem o correlato pagamento previsto no contrato até a data da anulação. Caso contrário, haverá ofensa inequívoca ao postulado que veda o enriquecimento sem causa e, em última análise, ao princípio da moralidade administrativa.”[4]

Em recente decisão o STJ expressamente excluiu a possibilidade de retenção de pagamento pelo Poder Público, mesmo estando comprovada a falta de requisito previsto em lei: “III. O entendimento adotado no acórdão recorrido destoa da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que é firme no sentido de que, apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência (STJ, AgInt no REsp 1.742.457/CE, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 07/06/2019). Nesse sentido: STJ, AgInt no AREsp 1.161.478/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 06/12/2018; AgInt no AREsp 503.038/RJ, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 31/05/2017; AgRg no AREsp 277.049/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 19/03/2013; AgRg no REsp 1.313.659/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 06/11/2012.[5]

De fato, não só o postulado da vedação ao enriquecimento sem causa, mas também a impossibilidade de cobrança indireta serve de amparo à posição consolidada na jurisprudência do STJ sobre a impossibilidade de a Administração, “sponte própria” ou provocada por órgão de controle interno, reter pagamento por serviços efetivamente prestados.[6]

Não se ignora posicionamento anterior proclamado pelo STJ, com base na incidência subsidiária de normas de direito privado, o que autorizaria a retenção pelo Estado, com compensação de obrigações simétricas em face do contratado.[7] Também se tem conhecimento de recente decisão do STJ, isolada, favorável à retenção em situação excepcional, na qual havia elementos indicadores de significativos desvios por empresa construtora, na reforma do Estádio Maracanã, conforme apurado na Operação Lava Jato.[8]

Malgrado tais julgados dissidentes, tem-se majoritário entendimento que exclui a possibilidade de a Administração promover retenção de créditos oriundos de contratos administrativos. Perceba-se que reter créditos significa comportamento autoexecutório do Poder Público sem autorização legal e sem que se tenha uma situação de urgência que assim o autorize, o que não se entende não ter fundamento no ordenamento vigente.

Não importa que algumas entidades façam um claro o esforço administrativo de não fazer referência à expressão “direito de retenção”, mas sim “suspensão cautelar de pagamento”. Ora, se a Administração segue recebendo (ou já recebeu) o objeto e pretende não pagar por isso, o nome é retenção de pagamento. Ou, em outras palavras: no lugar de ajuizar uma ação para discutir a ocorrência, ou não, de infrações na execução do contrato buscando fazer prevalecer as consequências que entende devidas, a Administração “faz justiça com as próprias mãos” (ou seja, exerce autoexecutoriedade), sem autorização legal, ausente a situação de urgência.

Tecnicamente, a autoexecutoriedade atributo em razão do qual o Poder Público obriga direta e materialmente o terceiro a cumprir a obrigação imposta por um comando, sem a necessidade de intervenção judicial prévia. Não se trata, aqui, de mera imposição de um dever ao administrado, o que consubstancia a imperatividade administrativa. A autoexecutoriedade implica força direta e material que constrange o terceiro a que o ato administrativo seja executado, exatamente como ocorre quando o Poder Público retém o crédito de um contratado que prestou serviços. Esse “plus” está presente quando o Estado pode constranger materialmente alguém, sendo necessário obedecer todas as normas do regime jurídico administrativo, inclusive princípios implícitos como a proporcionalidade e explícitos como a legalidade.[9] É Celso Antônio quem lembra que a executoriedade não se confunde com a exigibilidade, pois esta não garante, só por si, a possibilidade de coação material, de execução do ato. Assim, há atos dotados de exigibilidade, mas que não possuem executoriedade. Nos casos de executoriedade, pelo contrário, a Administração, por si mesma, compele o administrado.[10]

É exatamente por ser extraordinário que a Administração Pública possa agir materialmente e constranger o universo jurídico de alguém (como um contratado) que a autoexecutoriedade existe nas seguintes hipóteses: a) quando a lei prevê expressamente e[11] b) quando a executoriedade é condição indispensável à eficaz garantia do interesse público confiado pela lei à administração – casos de urgência[12]. Se não se vislumbra uma realidade de intensa gravidade e incontornável urgência que justifique a retenção de créditos e, mais, se não há autorização legal para a suspensão de pagamentos dos preços devidos pelo objeto realizado, é de se afastar a autoexecutoriedade.

Sob pena de violação ao princípio da moralidade administrativa e de prática de comportamento autoexecutório ilícito, uma vez recebido o objeto pelo contratado, não pode a Administração locupletar-se indevidamente e, com fundamento em alegado vício contratual, suspender pagamentos retendo créditos, ausente prova que justifique retenção ou devolução de valores pagos.

Não se trata aqui de espaço de discricionariedade para a Administração contratante e nem pelo controlador que venha a analisar o processo. Se a discricionariedade começa quando, finda a atividade hermenêutica, sobram alternativas igual­mente admitidas perante o direito, no tocante ao conteúdo ou ao motivo do ato público, a arbitrariedade principia exatamente onde acabam as escolhas discricio­nárias e, portanto, legítimas. O arbítrio tem início quando a ação administrativa vai além dos limites da ordem jurídica consagrava[13]. Com a máxima vênia, não ter evidência de um ilícito imputável a um contratado e, nesse contexto, suspender cautelarmente pagamentos, pretender a devolução de valores pagos por objeto recebido e a rescisão do vínculo consistem comportamento ilícito, pois fora dos limites do ordenamento.

Desde a fase originária do Estado de Direito sob orientação do liberalismo então vigente, a missão estatal basilar, ainda que de um ponto de vista predominantemente formal, era proteger direitos fundamentais como a liberdade e a propriedade individual. A exclusão da arbitrariedade estatal e a inviolabilidade da liberdade de toda pessoa assentavam-se também nos ideais de segurança e certeza do direito. A evolução do modelo de Estado não significou, à obviedade, espaço para medidas arbitrárias, típicas de Estados totalitários, incompatíveis com o modelo de Estado Democrático de Direito que se busca implantar no Brasil. Daí a necessidade de se afastar o arbitrário e inaceitável jugo da vontade do particular ou do cidadão por um interesse da Administração destituído de fundamento suficiente para o amparar.

Repita-se: O Estado não pode atuar arbitrária e irracionalmente, estando proibidos o excesso e a insuficiência da ação administrativa. Exige-se da Administração Pública, seja ela gestora ou controladora, o exercício adequado da competência, observados os limites do ordenamento em face da realidade em que atua. Descumprir tais parâmetros no exercício da função de controle interno significa, por óbvio, ilegalidade administrativa.

Por fim, adverte-se que há possibilidade de determinação em sentido diverso se assim fixado em nova lei de licitações e contratações administrativas. Por hora, no artigo 142 do projeto aprovado no Senado Federal, tem-se apenas o seguinte preceito: “Art. 142. No caso de controvérsia sobre a execução do objeto, quanto a dimensão, qualidade e quantidade, a parcela incontroversa deverá ser liberada no prazo previsto para pagamento”. Cumpre aguardar a interpretação que será dada ao dispositivo e à ausência de permissão clara e expressa no texto quanto ao direito de retenção, sempre objeto de significativas controvérsias.

 

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Boletim de Licitação e Contratos Administrativos. São Paulo: NDJ, abril de 1998, p. 193.

[2] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O enriquecimento injusto como princípio geral do direito administrativo. Revista dos Tribunais, vol. 755/1998, p. 11-57, set.1998, Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo, v. 1, p. 853-912, nov/2012.

[3] Agr. Regimental no REsp nº 303.730-AM, Relator Min. Paulo Medina, 2ª Turma do STJ, DJU 17/09/2002.

Não é em outro sentido a jurisprudência do TJMG:

“Uma vez comprovada a realização de serviço por empresa e seu correspondente não pagamento pela Administração, sobressai sua altaneira responsabilidade em cumprir com suas obrigações, sob pena de intolerável enriquecimento ilícito, ainda que aquela tenha dado motivo à rescisão do contrato.” (Apelação Cível nº 346.502-8, rel. Des. Dorival Guimarães Pereira, 5ª Câmara Cível do TJMG)

“Ação de Cobrança c/c Perdas e Danos. Licitação. Nulidade do Contrato. Não pagamento da última parcela avençada. Conclusão dos serviços. 1. Embora considerado nulo o contrato de execução dos serviços, por inobservância do competente processo licitatório, o pagamento relativo à execução dos serviços se impõe, sob pena de locupletamento ilícito da Administração, posto que estes passaram a integrar o patrimônio da Municipalidade. 2. Em reexame necessário, confirmar a decisão, prejudicado o recurso voluntário.” (Apelação Cível nº 199.568-7, rel. Des. Célio César Paduani, 4ª Câmara Cível do TJMG, julgada em 17.05.2001)

[4]  REsp nº 1.306.350-SP, rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma do STJ, DJe de 04.10.2013.

[5]  Agravo Interno no RMS nº 57.203-MT, rel. Ministra Assussete Magalhães, 2ª Turma do STJ, DJe de 05.05.2020.

[6]  AgRg no REsp 1169052-MG, rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma do STJ, DJe de 10.04.2019.

Confira-se, também: REsp nº 730.800/DF, rel. Ministro Franciulli Netto, 2ª Turma do STJ, DJU de 21.03.2006, p. 115

[7]   “ADMINISTRATIVO – CONTRATO ADMINISTRATIVO – DECLARAÇÃO DE NULIDADE – EFEITOS – COMPENSAÇÃO – LICITUDE – PRONUNCIAMENTO JUDICIAL – DESNECESSIDADE.

I- A DECLARAÇÃO DE NULIDADE ALCANÇA TODOS OS EFEITOS JA PRODUZIDOS PELO CONTRATO, DESCONSTITUINDO-OS (LEI 8.666/95, ART. 59).

II- AS DISPOSIÇÕES DO DIREITO PRIVADO APLICAM-SE, SUPLETIVAMENTE, AOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS (LEI 8.444/95, ART. 54).

III- SE O ESTADO E, A UM SO TEMPO, CREDOR E DEVEDOR DE ALGUEM, CUMPRE A ADMINISTRAÇÃO COMPENSAR-SE, RETENDO O PAGAMENTO, NA MEDIDA DE SEU CREDITO.

IV- A COMPENSAÇÃO OPERA AUTOMATICAMENTE, EXTINGUINDO AS OBRIGAÇÕES SIMETRICAS, INDEPENDENTEMENTE DE QUALQUER PRONUNCIAMENTO JUDICIAL (C. CIVIL, ART. 1009).” (MS nº 4.382-DF, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª Seção do STJ, LexSTJ, v. 86, p. 30)

[8]  ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. OPERAÇÃO LAVA JATO. ESTÁDIO MARACANÃ. CONSTRUTORA. TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL. CAUTELAR. RETENÇÃO DE CRÉDITO. LEGITIMIDADE. PRINCÍPIO DA SIMETRIA. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. PREVALÊNCIA DO INTERESSE PÚBLICO.

HISTÓRICO DA DEMANDA 1. Cuida-se de inconformismo de construtora investigada pela Operação Lava Jato na reforma do Estádio Maracanã, com o indeferimento de Mandado de Segurança que objetivava a anulação de item de acórdão proferido pelo Tribunal de Contas estadual que determinou o bloqueio do valor de R$ 198.534.948,80 devido à recorrente pelo Estado do Rio de Janeiro.

  1. O processo administrativo em questão versa sobre o Contrato 101/2010 (Elaboração de Projeto Executivo e Execução de Obras de Reforma e Adequação no Complexo Maracanã), no Rio de Janeiro – RJ.
  2. Na origem, foi impetrado Mandado de Segurança por Andrade Gutierrez Engenharia S.A. contra ato dos Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, item VIII, a partir da fl. 2.918 do processo TCE-RJ 106.660-0/13, nos seguintes termos: “VIII – Da Retenção do Crédito VIII.1 – Pela COMUNICAÇÃO ao atual Secretário de Estado de Fazenda, a ser efetivada nos termos da Lei Orgânica deste Tribunal, em vigor, para que adote providências no sentido de reter créditos, de forma solidária, que as empresas Construtora Norberto Odebrecht S/A, Construtora Andrade Gutierrez S/A e Delta Construções S.A., em quaisquer de seus CNPJ’s, ainda que, em participação de Consórcios, tenham com o Estado, no valor de R$ 198.534.948,80 (cento e noventa e oito milhões, quinhentos e trinta e quatro mil, novecentos e quarenta e oito reais e oitenta centavos), informando, no prazo de 15 dias, as medidas adotadas, alertando-o de que o não atendimento injustificado sujeita-o às sanções previstas no inciso IV do art. 63 da Lei Complementar 63/90”.
  3. A decisão impugnada no mandamus e objeto do recurso foi proferida no ensejo de provimento cautelar inaudita altera parte, da lavra do órgão de contas do Estado, com fundamento no artigo 123 da Constituição do Estado, para a preservação do patrimônio público que, em juízo preliminar, teria sido lesado quando da reforma do Estádio Maracanã em 2014, tudo apurado em robustos – ainda que preliminares – pronunciamentos técnicos.
  4. A retenção, decidida na seara administrativa em caráter cautelar, deu-se para fins de salvaguardar o erário dos danos decorrentes de irregularidades praticadas durante a execução do Contrato 101/2010, segundo o TCE-RJ. Tais anormalidades foram objeto de Acordo de Leniência celebrado entre a impetrante e o Ministério Público Federal, ainda não homologado pelo Supremo Tribunal Federal.

DIREITO LÍQUIDO E CERTO

  1. A documentação acostada não permite concluir, de forma cabal e inequívoca, a verossimilhança da argumentação inicial da impetrante, mormente porque os atos do TCE decorreram de detalhado e cuidadoso trabalho de fiscalização das gigantescas obras realizadas no Estádio Maracanã, apontando diversas irregularidades, tendo a impetrante (ao lado das outras empresas envolvidas na empreitada civil) participado de todo o procedimento administrativo verificador.
  2. Ao contrário do que alega, a construtora reconheceu a prática de infrações e ilícitos, nos termos do Acordo de Leniência firmado com o Ministério Público Federal (fls. 99-115).
  3. Tampouco é vingável o argumento de que a retenção imposta também teria abrangido créditos oriundos de avenças estranhas àquela submetida à apreciação específica do Tribunal de Contas. Em rigor, essa alegação nem mesmo foi confirmada pelos elementos de prova coligidos aos autos, sendo oportuno reiterar o descabimento da dilação probatória em via mandamental.
  4. É impossível o acolhimento das argumentações da parte impetrante sem dilação probatória, que, aliás, está sendo realizada perante o órgão administrativo fiscalizador competente, no bojo do procedimento administrativo. Naquela seara, a documentação passará pelo exame prévio do Corpo Instrutivo da Corte de Contas, do Ministério Público e seguirá as demais etapas dispostas em lei.
  5. Destaque-se que a decisão administrativa contestada é fruto de estudos técnicos preliminares advindos do TCE-RJ, Procedimento Prévio de Tomada de Contas Especial, que, de acordo com o artigo 7º, III, da Lei Complementar 63/1990, possui a finalidade de apurar os fatos, identificar os responsáveis por eventuais irregularidades e quantificar o dano.

RETENÇÃO DE CRÉDITOS NO CONTRATO 101/2010 11. Ressalve-se que o valor a ser bloqueado não será da totalidade dos recebíveis da recorrente em todos os seus contratos públicos, mas apenas dos créditos no valor daquilo que foi apropriado indevidamente do Erário no Contrato 101/2010.

LEGITIMIDADE DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RJ PARA DETERMINAR A PRESENTE MEDIDA CAUTELAR 12. Quando a Corte de Contas se vale do poder geral de cautela, isso não implica substituição da função jurisdicional. Constitui-se, em verdade, no instrumento que se destina a conferir eficácia final às manifestações estatais e encontra-se em consonância com a própria razão de existir daquele órgão, a fim de zelar pelos interesses do Erário estadual.

  1. O STF já reconheceu a atribuição de poderes explícitos e implícitos ao Tribunal de Contas para legitimar a incumbência de índole cautelar que permite à mesma Corte adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências estabelecidas nos artigos 33, § 2º, 70, 71, 72, § 1º, 74, § 2º, e 161, parágrafo único, todos da Constituição Federal de 1988. (MS 24.510/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 19/11/2003; Ministro Luiz Fux MS 30.924; MS 33.092, Rel.: Min.

Gilmar Mendes, Segunda Turma, Processo eletrônico DJE-160, Publicado 17/8/2015; MS 25.481-AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, Data de julgamento 4/10/2011).

  1. A medida adotada em desfavor da impetrante não viola o contraditório e a ampla defesa quando, excepcionalmente, previne a ocorrência de dano ao Erário. Ao contrário, apenas ocasiona seu diferimento na marcha processual. Tal ocorre uma vez que o processo 106.660-0/13 encontra-se ainda em fase preliminar, sendo certo que será viabilizado pleno exercício do contraditório e da ampla defesa a todos os envolvidos – o que, por óbvio, inclui a recorrente – na fase seguinte do processo (Precedentes: MS 26.547 e MS 26.547, Rel.

Min. Celso de Mello).

  1. Cumpre realçar que, com a decisão vergastada, o TCE não sustou contrato em caráter liminar, ante o que tampouco haveria falar em violação da competência do Legislativo para suspender contratos administrativos. Note-se, inicialmente, que em momento algum o acórdão atacado pela recorrente impõe a sustação do Contrato 101/10, mas somente determina ao Poder Público a retenção de créditos titularizados pela impetrante perante o Estado.
  2. O STF, em caso similar, entendeu que os Tribunais de Contas têm atribuição para determinar a retenção de valores, cautelarmente, como no julgamento do MS 30.924, Rel. Min. Luiz Fux, data de julgamento 20/10/2011. PRINCÍPIO DA SIMETRIA 17. O art. 75 da CF/1988 determina explicitamente que o mesmo formato do TCU também deve ser aplicado, no que couber, aos Tribunais de Contas no âmbito estadual e no municipal. 18. No tocante ao TCE/RJ, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro assim estabelece quanto à fiscalização contábil, financeira e orçamentária, in verbis: “Art. 122 – A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Estado e das entidades da Administração Direta e Indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pela Assembleia Legislativa, mediante controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder. Parágrafo único – Prestará contas qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos, ou pelos quais o Estado responda ou que, em nome deste, assuma obrigações de natureza pecuniária. Art. 123 – O controle externo, a cargo da Assembleia Legislativa, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ao qual compete: VII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, dentre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário”.
  3. Logo, com respaldo no princípio da simetria entre as instituições, é patente a competência legal da Corte de Contas estadual para adotar a presente Medida Cautelar, precatando-se contra possível indisponibilidade de bens, com a finalidade de garantir o ressarcimento ao Erário dos danos em apuração em contratos firmados com o poder público. PREVALÊNCIA DA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO EM DETRIMENTO DO INTERESSE IMEDIATO DO PARTICULAR DE RECEBER SUPOSTOS CRÉDITOS 20. O aspecto que se sobreleva é que a índole acautelatória da ordem de retenção, aliada à também já enfatizada primazia do interesse público, aponta para a necessidade de se velar pela máxima aptidão da medida para garantir a preservação do Erário, razão pela qual deve ela abarcar numerário bastante para assegurar o atingimento desse desiderato. 21. Ilegal e irresponsável repassar verbas públicas a empreendimento em que há forte denúncia de desvio. Ora, consta do processo administrativo do TCE-RJ e do Pacto de Leniência a existência de irregularidades na execução do contrato das obras do complexo do Maracanã. 22. Recurso Ordinário não provido.” (RMS nº 59.078-RJ, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe 18/10/2019)

[9]  AgrMC n° 4.193-SP, rel. Min. Laurita Vaz, 2ª Turma do STJ, julgamento em 23.10.2001, DJU de 04.02.2002

[10]  MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros: 2009, p. 413-414

[11]  A propósito, o alemão Harmut Maurer aduz que “sob execução administrativa deve ser entendida a imposição por meio de coerção de deveres jurídico-públicos do cidadão ou de um outro sujeito jurídico pela autoridade em um procedimento administrativo”, o que distingue Administração Pública e particular: “A autoridade pode, ao contrário, executar mesma suas pretensões – sem intercalação de um tribunal julgador e órgãos de execução especiais -, ela mesma deitar a mão. Também essa execução própria da administração pressupõe um título executivo, mas a autoridade pode, por meio da promulgação de um ato administrativo, constituir mesma o título executivo necessário. Com isso o ato administrativo também se converte no conceito central do direito administrativo executivo. Somente quando e à medida que a administração está autorizada a determinar pretensões jurídico-administrativas por ato administrativo, entra em consideração uma execução jurídico-administrativa.” (MAURER, Harmut. Direito administrativo geral, op. cit., p. 562-563)

[12]  Segundo Dromi, se se está em uma situação urgência, a Administração, na defesa do interesse coletivo, não pode paralisar sua ação diante do direito dos particulares. O estado de necessidade, em que se exige a conservação do interesse da coletividade, autoriza o exercício coercitivo do poder estatal: “A coletividade necessitada ou beneficiada, através dos órgãos estatais que expressam a sua vontade e constituem o sujeito da relação jurídica, executa o ato diretamente, dadas as razões de interesse público.” (DROMI, José Roberto. Instituciones de derecho administrativo. 2ª ed. Buenos Aires: Astrea, 1983. p. 240)

[13]  Como leciona César A. Guimarães Pereira, “não se concebe a noção de Direito fora do regime de legalidade e do regime de observância dos princípios constitucionais. Por fim, o exercício da Administração Pública na denominada área de livre decisão não significa arbítrio, pois pressupõe sempre uma lei a conferir essa margem de liberdade à Administração Pública.” (Revista de Direito Administrativo, v. 231, p. 243).

 

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