Inconstitucionalidade pela Administração Pública: dificuldades e limites

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1. A juridicidade e a difícil determinação da norma incidente em cada caso

A própria ideia de juridicidade determina imposições e proibições que vinculam órgãos dos diversos Poderes no exercício das tarefas administrativas, sob pena de se colocar em risco o próprio ordenamento. Atualmente, uma das tarefas mais desafiadoras é exatamente definir qual a resposta normativa que decorre do ordenamento e que vincula a Administração Pública, além do Judiciário, na prestação da tutela jurisdicional. A própria inflação na edição de normas infra-legais, mediante o exercício do poder regulatório e regulamentar, e a explosão quanto aos princípios, explícitos e implícitos no texto constitucional, acirram as dificuldades na definição da norma a ser observada, em cada situação, pelo gestor público e pelo administrado.

Deve-se reconhecer a complexa realidade em que vivemos e na qual há pluralidade de normas: veiculadas na Constituição da República e na Constituição do Estado, nas leis, em atos regulamentares e regulatórios, em estatutos de empresas estatais e até mesmo em decisões judiciais. Paulo Otero reconhece a dificuldade de se fixar, atualmente, a norma que irá pautar o comportamento dos órgãos e agentes administrativos em situações nas quais há multiplicidade de centros produtores, sem restrição originária ao Legislativo. Segundo o jurista português, “Esta é a primeira – e, porventura, a mais difícil – questão que se depara hoje aos órgãos administrativos: saber qual é a norma reguladora de sua conduta”, uma vez que “Há hoje uma ‘proliferação de centros do poder e de produção de normas’ que, impregnando o sistema jurídico de uma considerável complexidade, gera um concurso de fontes.”[1]  De fato, “Naturalmente, que o Estado de Direito não se realiza de acordo com uma fórmula, não é obra de execução. Nem é edifício que se possua acabado, se se incluírem numa organização política da sociedade certas garantias técnicas, ao gosto das formalizações dum mecanismo jurídico. É fundamentalmente uma obra de intenção e de tensão, um <<trabalho>> simultâneo de Prometeu e Sísifo.”[2] E é esse o trabalho hercúleo que deve ser realizado pelos operadores do direito em situações como a ora em exame.

Ao tratar dessa tarefa de definir o direito diante de uma realidade, Paulo Otero qualifica como dramática a situação em que órgãos administrativos são chamados a determinar a norma aplicável no âmbito de uma pluralidade concorrente de fontes:

“A Administração Pública desempenha, por tudo isso, um papel activo na definição do próprio Direito que aplica, podendo dizer-se que mesmo a juridicidade heterovinculativa a que se encontra sujeita não deixa de ser ‘filtrada’ pelos órgãos administrativos: o sentido da legalidade vinculativa da Administração Pública, acabando por ter a sua aplicabilidade, a respectiva interpretação e densificação concretizadora, além da resolução dos seus conflitos normativos que suscita, determinadas pelos órgãos a que se destinava a pautar a conduta, encontra mais nas mãos da própria Administração do que na vontade do legislador.

(…) A Administração Pública passa aqui a gozar de um duplo conjunto de tarefas, além da actividade de prossecução do interesse público típica da função administrativa, tem agora de desenvolver uma nova tarefa que, sendo lógica e em momento temporal anterior, visa determinar ou encontrar a normatividade que irá pautar aquela sua intervenção decisória típica.”[3]

Em diversas realidades, o gestor público depara-se com a notícia de inconstitucionalidade ou mesmo com pronunciamento inicial de desconformidade com a Constituição ou, ainda, com decisões judiciais não oponíveis “erga omnes” que afirmaram ser determinado preceito legal ofensivo à CR. Nesse contexto, entende-se necessário evitar que “a conjugação da neofeudalização e da flexibilização da juridicidade heterovinculativa da Administração Pública” venha a fazer sucumbir a legalidade nas “mãos da própria Administração Pública, transformando-se numa juridicidade cujo sentido do respectivo conteúdo é determinado pelos órgãos administrativos.” [4]

 

2. As dificuldades de a Administração definir a norma aplicável e os limites da doutrina comparada

A Administração Pública, quando define o direito a ser aplicado no caso concreto não pode fazer debilitar o ordenamento de modo a assumir, com exclusividade, a definição da norma a que se vincula, com ignorância dos controles judiciais ainda pendentes, mormente quando já provocado o STF. Se excessos na prestação da tutela jurisdicional exigem postura de cautela por parte dos magistrados, o controle de juridicidade pela Administração Pública, em situações nas quais pendente decisão em sede de ação direta de constitucionalidade, ou só existente medida liminar em ação sem força genérica da decisão, não pode deixar transfigurada a distribuição de funções levada a efeito pela Constituição da República, nem mesmo produzir significativa instabilidade jurídica nos destinatários das normas, cujas vidas serão definitivamente afetadas pelo comportamento administrativo. Como vem sublinhando a doutrina comparada, se nenhum sistema é completo e fechado, também não se pode, por outro modo, aceitar a possibilidade de uma “adaptação constante à realidade que procura dominar vale como sinónimo de uma queda num casuísmo.”[5]

Retoma-se, mais uma vez, a lição de Paulo Otero:

“Sob pena de se instaurar uma verdadeira anarquia no interior da Administração Pública e do próprio ordenamento jurídico, acabando por se esvaziar a força heterovinculativa da juridicidade, os órgãos administrativos não possuem um poder genérico de recusar a aplicação de normas ilegais ou inconstitucionais, sem prejuízo de excepcionalmente, segundo razões fundadas, poderem rejeitar a aplicação de certo tipo de normas inválidas.

Num certo sentido, é ainda em homenagem a uma completa subordinação à Constituição e à lei, tal como o texto constitucional proclama no contexto de um entendimento tradicional sobre a separação de poderes, que os órgãos administrativos não se podem rebelar contra a juridicidade que os heterovincula, conferindo-se aos tribunais o poder genérico de rejeitar a aplicação de normas inválidas: (…).”[6]

Fixados os cuidados necessários para não centralizar exclusivamente na Administração o papel de gestora, determinante, intérprete e aplicadora concreta da normatividade, reconhece-se a celeuma em diversas matérias com que lida a Administração Pública. Independente de posição pessoal ou institucional da advocacia pública sobre cada ponto, reconhece-se ser predominante o entendimento de que não é lícito a um servidor simplesmente recusar obediência a uma norma jurídica ainda vigente. A maioria entende necessário preservar o ordenamento decorrente da atividade legislativa, consoante interpretação dos órgãos do Judiciário, principalmente do STF, mesmo porque seria desproporcional e fonte de incerteza jurídica ignorar os termos de uma regra constitucional ou legal, ainda não julgada pelo STF, já provocado. Já instaurado o controle concentrado cabível, veda-se que isoladamente se faça a suspensão da aplicação da norma:

“Em contrapartida, está absolutamente vedada aos órgãos administrativos qualquer competência de suspensão da aplicação de normas legais que reputem de inconstitucionais. A competência de suspensão provoca uma obstrução geral da aplicação da lei, interferindo por isso de forma intolerável na configuração constitucional das relações entre o legislador e a Administração. De todas as soluções concebíveis para os problemas suscitados à Administração pública pelas leis inconstitucionais, a admissão de uma competência de suspensão é a menos satisfatória.”[7]

A regra, portanto, é de que, em princípio, não se outorga o poder de rejeição de normas inconstitucionais às autoridades administrativas como algo ordinariamente legítimo. Segundo Celso Ribeiro Bastos, a rejeição de normas desconformes com a Constituição poderia estar consagrada no sistema, inclusive quanto ao descumprimento na hipótese de se concluir pela negativa da constitucionalidade. Contudo, “Tal situação não permitiria ao direito cumprir a sua eminente função de garantidor da ordem, da paz, da tranquilidade, que se expressa na presunção de legitimidade de todo ato público em geral. Ao conferir-se a qualquer uma a competência de declarar uma lei inconstitucional, como escusa para o seu descumprimento, chegaríamos ao absurdo de ver o Executivo deixar de cobrar tributos, de efetuar prisões, de interditar estabelecimentos, toda vez que reputasse a lei como contrária à Constituição.”[8]

 

3. Sobre a rejeição de normas inconstitucionais na esfera administrativa

A ideia central é a de que as autoridades administrativas não são especialmente vocacionadas à rejeição das normas do ordenamento, embora o juízo sobre sua legitimidade seja inerente ao exercício da sua função. Caso identificado indício de desvio, torna-se indispensável submeter a matéria ao conhecimento do órgão competente para avaliar a presença, ou não, de ofensa a direitos individuais ou ao interesse público, bem como de inconstitucionalidade a ser reconhecida na via adequada. Mesmo corrente mais moderna, com a qual se aquiesce, no sentido de que o poder extraordinário de rejeição de normas é cabível diante de determinadas situações excepcionais exige, para tanto, evidente inconstitucionalidade. Isso para evitar que, no lugar da preservação do ordenamento, interrompa-se o cumprimento de norma definida pelo Parlamento, com contornos por vezes já esclarecidos pelo Judiciário. Com efeito, o risco de se viabilizar uma anarquia administrativa impede que a rejeição de conteúdos normativos termine em grave insegurança jurídica.

Na situação de inconstitucionalidade de normas que tratam de direito administrativo no âmbito estadual e municipal ou de regras legais em nível federal, não se pode ignorar situações em que o STF – Corte precipuamente vocacionada à defesa jurídica da CR – ainda não realizou o juízo de constitucionalidade a que tenha sido provocado, ou não. Entende-se cabível assegurar que o Supremo realize tal controle de constitucionalidade, com importância fundamental já reconhecida e reforçada pelas normas do CPC de 2015, donde resulta clara a necessidade de cautela quando da interpretação das normas infralegais federais, bem como do ordenamento estadual e municipal, quando ainda pendente decisão da Corte Suprema.

Antes que o STF exare seu entendimento, nas hipóteses em que não se vislumbra uma grave ofensa ao interesse público e muito menos descumprimento grosseiro e flagrante de direitos e garantias fundamentais, que justifique o Estado, na esfera administrativa, recusar incidência a dispositivos infraconstitucionais, afasta-se o poder extraordinário de rejeição dos preceitos, visto que ausente circunstância esdrúxula na espécie.

 

4. A exigência de precaução e prevenção na atividade hermenêutica

Em situações em que a interpretação pode causar instabilidade jurídica, é imperioso que a Administração observe a necessidade de agir com precaução, evitando a ocorrência de danos que podem ser maiores do que os riscos e ônus então presentes. Segundo Juarez Freitas, o princípio da prevenção impõe um dever ao administrador de evitar danos que, com um mínimo de prudência, podem ser afastados. Referida cautela vale, também, para a atividade hermenêutica realizada pelos órgãos públicos a quem cabe antecipar e evitar riscos desnecessários:

“Já o princípio constitucional da precaução, igualmente dotado de eficácia direta e imediata, estabelece (não apenas no campo ambiental, mas nas relações de administração em geral) a obrigação de adotar medidas antecipatórias e proporcionais mesmo nos casos de incerteza quanto à produção de danos fundadamente temidos (juízo forte de verossimilhança).”[9]

Com efeito, a precaução requer com o uso de medidas adequadas, em especial o planejamento e limitações a determinado nível, com exclusão, na medida do possível, das repercussões negativas que são evitáveis. Conforme lição de Eberhard Schmidt-Assmann, em virtude do princípio da precaução, cabe exigir a minimização dos riscos incluindo-se aqueles casos em que as relações de causalidade não são suficientemente conhecidas ou demonstráveis por meios estatísticos ou empíricos. Cabe a possibilidade de uso dos meios de intervenção do Direito Público, de forma prudente, antes que se alcance o perigo.[10]

Não se pode reforçar a chamada “crise da generalidade e permanência das normas”, com foco exclusivo na resolução de demandas singulares e concretas, sem comprometimento com a solução de problemas abstratamente e a longo prazo, em favor da sociedade.[11] Cada vez mais reforça-se a preocupação com a estabilidade do sistema, reconhecendo os limites da atividade administrativa de controle. Em diversas situações, é verossímil que haja danos futuros, resultantes inclusive de insegurança jurídica, se realizado juízo interpretativo que culmine por afastar na esfera administrativa determinada prescrição legal. Não se trata de uma dose irrealista de precaução, mas do mínimo que se exige de uma Administração Pública prudente, que não se rende ao imediatismo e às pressões instantâneas. Há motivos idôneos para, nessa matéria, o Poder Público adotar o que a doutrina denomina, hoje em dia, de “lógica das estratégias prudentes de longa duração”[12], de modo a assegurar um mínimo de regulação estável, de longo prazo, na sociedade, sem os riscos da desagregação do próprio sistema. Afinal, “não se pode ignorar o seu papel preventivo, na justa medida em que obrigará a Administração e os seus agentes (bem como os beneficiários do acto administrativo) a desenvolver uma actuação mais conforme com os ditamos do ordenamento jurídico, sem esquecer que a responsabilidade civil pode ser vista como um mecanismo de externalização dos custos do processo decisional.

(…) Em poucas palavras, se o princípio da precaução requer uma jurisprudência afinada e prudentemente orientada pelo princípio da precaução, não deixará também de exigir uma Administração estrutural e procedimental orientada pela lógica da prevenção e da gestão dinâmica dos conhecimentos.

Numa frase, o jurista, antes de dar solução aos problemas, dá forma aos problemas (Gestalt).”[13]

 

5. Conclusão

À luz do princípio da precaução e das lições da doutrina comparada, entende-se incabível que, como regra, possa o gestor público, na esfera administrativa, decidir pulverizadamente pela inconstitucionalidade de normas sujeitas à CR/88, máxime se ausente uma situação teratológica em que se tenha evidente grave ofensa ao interesse público ou o descumprimento grosseiro e flagrante de direitos e garantias fundamentais.

 

[1] OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007, p. 439 e 441

[2] SOARES, Rogério Ehrhardt. Direito Público e sociedade técnica. Coimbra: Tenacitas, 2008, p. 164

[3] OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, op. cit., p. 700 e 701

[4] OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, op. cit., p. 702 e 703

[5] SOARES, Rogério Ehrhardt. Direito Público e sociedade técnica.op. cit, 2008, p. 41-42

[6] OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, op. cit., p. 713

[7] MATOS, André Salgado de. A fiscalização administrativa da constitucionalidade. Coimbra: Almedina, 2004, p. 488

[8] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 389

[9] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 101

[10] SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. La teoría general del derecho administrativo como sistema. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 133

[11] PASTOR, Juan Alfonso Santamaría. Principios de derecho administrativo general. v. I. 1ª ed. Reimp. Madrid: Iustel, 2005, p. 151

[12] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração, op. cit., p. 108

[13] ANTUNES, Luís Filipe Colaço. Para um direito administrativo de garantia do cidadão e da administração. Coimbra: Almedina, 2000, p. 144 e 149

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